Todos os dias, as catracas da linha 7-Rubi giram por volta de 300 000 vezes para receber passageiros que seguirão por um caminho que margeia condomínios de luxo, favelas, indústrias, Mata Atlântica, fazendas, estádio de futebol e até um lago.
O repórter Guilherme Queiroz, da Vejinha, reuniu boas histórias desse trajeto para o seu trabalho de conclusão de curso, no fim de 2020, e resgatou um passado onde os trilhos que partem do Brás levavam os paulistanos até as praias da Baixada Santista — sem o congestionamento da Imigrantes. É o que conta a seguir.
Linha mais longa da CPTM, a 7-Rubi, que liga a capital a Jundiaí, é uma herança do passado cafeicultor paulistano. O mesmo traçado, os mesmos buracos, as mesmas estações: tudo começou no século XIX. Hoje com 60 quilômetros de extensão, a 7-Rubi foi criada nos anos 1990 sobre um trecho da antiga São Paulo Railway, ou “a Inglesa”, como era chamada.
A moça de nome chique, inaugurada em 1867, chegava até Santos. Bairros como Lapa, Brás e Pirituba se desenvolveram por conta das vigas de ferro que passaram a atravessar seus territórios. Não faltam boas histórias sobre a obra, considerada um marco da engenharia à época. A grande conquista da “Inglesa” foi vencer a Serra do Mar.
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Entre a capital e Santos, há um desnível de quase 800 metros. Antes do trem, o percurso era feito por mulas em vias como a Calçada do Lorena, inaugurada em 1792, uma “rodovia” para os animais que levavam a mercadoria que descia e subia a serra, indo ou voltando do Porto de Santos. Imagine a trabalheira.
Você goste ou não de café, precisa lembrar que a bebida atualmente vendida por 2 reais nas lanchonetes da estação Barra Funda é a razão pela qual aquele complexo de trens e ônibus existe. “São Paulo, antes do café, era uma vilazinha isolada”, diz a arquiteta Cecília Rodrigues dos Santos, coautora do livro De Santos a Jundiaí.
Com a expansão do plantio, calcula-se que em 1865 a chamada Estrada de Cubatão, que também ligava o interior a Santos, tenha recebido perto de 500 000 mulas que levavam as sacas com o grão. Em 1872, vale lembrar, a capital tinha 31 329 habitantes. Era mula para burro. Claramente, percebia-se a necessidade de uma ferrovia que ligasse o interior a Santos. Em 1829, o engenheiro inglês Robert Stephenson criou a arrojada Rocket, uma locomotiva a vapor que chegava a 50 quilômetros por hora. A máquina animou os ingleses, que passaram a construir ferrovias em tudo que era canto de seu país.
Em 1830, quando inauguraram a primeira ferrovia para a Rocket, entre Manchester e Liverpool, a companhia que administrava a viagem fez sucesso — os acionistas ganhavam mais dinheiro que empresa de delivery na quarentena. Um figurão brasileiro, durante uma visita a amigos ingleses, ficou de boca aberta com aquele cenário. Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, estupefato e cheio da grana, decidiu: hora de importar mais que roupas da Inglaterra.
Levou na mala também alguns engenheiros. Mauá inaugurou sua primeira ferrovia brasileira em 1854, entre a atual cidade de Petrópolis e a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Foi um sucesso.
O barão decidiu testar a empreitada em terras paulistas, naquilo que seria uma das obras mais ousadas da época. Anote aí: Decreto Imperial no 1 759, de 26 de abril de 1856. Nele, dom Pedro II autorizava a construção da estrada de ferro. Durante meses, engenheiros europeus responsáveis pela “Inglesa” se embrenharam na Mata Atlântica para descobrir o melhor caminho para a via.
“A equipe de exploradores permanece na selva três semanas de cada vez, vivendo em barracos cobertos com folhas de palmito. Da garganta mais profunda ao pico mais elevado, é coberta com floresta virgem quase inacessível, através da qual o explorador tem de se guiar por trilhas estreitas”, relatou o engenheiro inglês Daniel Fox, em 1870.
A SP Railway chegou a ter 5 000 homens trabalhando nas obras. Eram, em boa medida, imigrantes europeus. “Os brasileiros têm uma indisposição para o trabalho, em parte pelo falso orgulho engendrado pela escravidão. Artesãos nativos, tais como carpinteiros, pedreiros e ferreiros, são inferiores”, anotou Fox.
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As obras duraram de 1860 a 1867 (nada mau, se pensarmos no tempo que leva atualmente a construção de um metrô). Os ingleses lidaram com deslizamentos de terra, greves e acidentes feios. Em 1865, uma composição de testes descarrilou perto do Rio Tamanduateí, no centro da cidade, e um maquinista morreu. Em 19 de janeiro de 1867, o cabo de aço de um serra-breque (vagão que funcionava com o freio de emergência) se rompeu. O serra-breque desceu descontrolado por 400 metros, machucando funcionários e destruindo trilhos pelo caminho.
Menos de um mês depois, com estações precárias e trechos de segurança duvidosa, a operação foi inaugurada. Os negócios começaram bem. Em 1869, a SP Railway transportou 69 186 passageiros e 78 065 toneladas de carga. Em pouco tempo, a companhia chegou a 75 000 pessoas transportadas anualmente. O sucesso era esperado: a empresa tinha o monopólio do acesso ferroviário ao litoral. O dinheiro entrava, mas investir na infraestrutura das estações de passageiros? Qual nada.
A carga, durante décadas, foi a prioridade. (Embora nem os ramais para escoar a produção do interior os ingleses bancassem: eles eram feitos pelos fazendeiros.) As estações em São Paulo e na serra eram capengas. A situação só começou a melhorar no final do século XIX, quando, após queixas, a SP Railway publicou o folheto Estações de Terceira Classe — Condições Geraes e Especificações, uma padronização das paradas.
Nessa época de mais investimentos surgiu a ainda deslumbrante Estação da Luz, projetada pelo inglês Charles Henry Driver.Tinha a fachada virada para o Jardim da Luz, o parque mais antigo da cidade, de 1825. “A estação veio toda desmontada da Inglaterra, a gente não tinha condições de construir algo assim aqui”, diz Cecília.
A SP Railway, naquele início de século XX, se tornou luxuosa. Cadeiras estampadas com imagens de parreiras de uvas, lustres, espelhos e teto branco: assim era o vagão presidencial em 1922. O monopólio do acesso a Santos por trilhos foi quebrado em 1938, com a inauguração da linha Mairinque-Santos, da Companhia de Estradas de Ferro Sorocabana. Baque para os ingleses, já acostumados ao privilégio monopolista. Para piorar, a partir de 1940 os automóveis começaram a fazer sucesso em São Paulo.
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Em 1946, veio o ultimato. O prazo de concessão de noventa anos acabou e o governo bateu à porta para perguntar: vai ou fica? E os ingleses foram embora. Entre 1946 e 1956, a rede de estradas federais aumentou 136% e as ferrovias, 5%. “As ferrovias no Brasil começaram a ser abandonadas em 1945. Após a II Guerra, a classe média resolveu comprar carros”, diz Ralph Giesbrecht, pesquisador da história ferroviária brasileira. Em 1966, já no governo militar, um decreto federal determinou “a substituição de trechos e ramais ferroviários antieconômicos por estradas de rodagem”.
O trecho da SP Railway, porém, nunca deixou de operar — e é uma das únicas ferrovias do Brasil que mantém o traçado original. Em 1992, o governo paulista criou a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a CPTM. As linhas férreas passaram para a administração estadual. A atual 7-Rubi vai de Jundiaí até o Brás, e a 10-Turquesa liga o centro a Rio Grande da Serra, na Grande São Paulo. É o traçado da antiga “Inglesa”.
O trecho de Paranapiacaba também opera, mas como expresso turístico, um trem que sai do Brás nos fins de semana e feriados. O ramal até Santos, infelizmente, serve só para cargas desde 1995. O motivo seria o baixo número de passageiros. Hoje, talvez muita gente comprasse os bilhetes ferroviários para não ter de descer a Imigrantes em um feriado. Fica a dica, CPTM.
Este texto faz parte da pesquisa Nas Janelas do trem: as histórias da linha mais longa da CPTM, escrito pelo repórter com orientação do Prof. Dr. Fabio Cypriano
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Publicado em VEJA São Paulo de 03 de fevereiro de 2021, edição nº 2723