Terceirizar nossas angústias não é um bom negócio
É linda, potente e desafiadora a percepção de ir na direção oposta ao hábito de terceirizar a responsabilidade daquilo que dentro de nós nos aflige
É comum em muitos de nós o hábito de, assim que nos sentimos mal, angustiados, tristes ou frustrados, elegermos responsáveis por esse mal-estar. É quando dizemos que a culpa é da cidade, do governo, do vizinho, da sogra, do marido, da filha, da esposa, do cachorro, do time que não vence, do frio, do calor, do passado, do futuro, do mundo.
Esse é um hábito que aprendemos na escola, em casa, nos filmes, livros e conversas que nos cercam ao longo da vida, nas quais sempre escutamos alguém se queixando de alguém ou de algo.
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Uma das belezas de uma prática genuína de autoconhecimento é que ela está mais apoiada na arte de fazer perguntas certas do que no hábito de disparar certezas. E então a gente tenta se propor certas perguntas a aspectos que percebemos em nós e na vida. Nem sempre para obter respostas. Mas para farejar caminhos mais sábios.
E eu, então, me pergunto sobre esse hábito de eleger culpados daquilo que nos aflige: quanto isso nos conduz a uma relação de paz com a vida? Quanto isso de fato melhora ou resolve situações internas ou externas? Quanto esse hábito não nos afunda em uma forma conflitante de nos relacionarmos com os outros, com nós mesmos e com a vida?
Na direção oposta ao hábito de terceirizar a responsabilidade daquilo que dentro de nós nos aflige está uma percepção linda, potente e desafiadora: a percepção de que temos total responsabilidade e poder de escolha em relação aos pensamentos e sentimentos que nutrimos. O mundo pode estar em guerra, mas eu posso escolher responder a ele com a resiliência de um coração em paz. E vice-versa. Posso estar dentro de uma casa, com comida, protegido, com o som de pássaros lá fora, e me dilacerar com meus próprios pensamentos. Isso não é nenhuma novidade.
Quantas vezes já não pudemos reparar, em nossas vidas ou na vida dos outros, que às vezes uma situação completamente pequena, como uma gaveta emperrada, é capaz de nos enraivecer desproporcionalmente quando não conseguimos abri-la? E o contrário também: quantas vezes já não nos vimos, ou vimos os outros, reagindo inesperadamente bem, com calma, resiliência e compaixão, diante de situações complexas e duras?
Um dos principais ensinamentos que pude colher em alguns anos em que me dediquei ao voluntariado, em contextos sociais dos mais diferentes e vulneráveis, foi ter encontrado seres que, mesmo em condições que não julgamos nada próprias à possibilidade de paz e de alegria, manifestavam seus seres com paz e alegria.
Eu, pessoalmente, acho uma grande maravilha humana sermos assim: não temos um agir predefinido. Pode até parecer que a escola já nos definiu, nossos pais, nossa cultura, nossos antepassados, nossa genética, nosso enredo. Mas em última instância, a canetada final é nossa. Quem nos define somos nós. Aqui e agora.
E a liberdade de escolha desse agir é simplesmente vasta. Sem nenhum limite. O limite, ou a ausência de limite, somos nós quem nos impomos. E quem de nós, sinceramente, não gostaria de se colocar diante de si mesmo de uma maneira mais vasta? De uma maneira mais livre? De uma maneira em que a gente se sinta inspirado pelo simples fato de percebermos que estamos decidindo caminhar na direção de uma estrutura interna mais emancipada de gatilhos que agem contra nós e contra a vida?
Se ainda somos capazes de vislumbrar a possibilidade de infinito que há dentro de nós (pois a natureza da nossa mente é simplesmente infinita), é impossível passarmos impunes por esse vislumbre: sentimos, nem que seja uma gota, do gosto da liberdade. E esse gosto, quanto mais vivo em nós, parece que mais combustível nos fornece para mergulharmos em processos sinceros de busca e transformação.
E um dia, quem sabe, sejamos capazes de perceber que terceirizar a responsabilidade daquilo que nos incomoda dentro de nós não é um bom movimento. Pois ele não resolve as situações, nem dentro de nós nem fora. E quando não mais terceirizamos o nosso estado interno, a gente liberta o mundo e as pessoas da obrigação de serem do jeito que gostaríamos que eles fossem. Passamos a ser do jeito que a gente gostaria de ser. Certamente, mais alegres.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
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Publicado em VEJA São Paulo de 8 de junho de 2022, edição nº 2792