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A paz não está nos pensamentos

"— Mas você, que é a ideia Paz, não me faz sentir paz? Ela baixou os olhos, encabulada", escreve Satyanatha, autor do livro Seja Monge

Por Satyanatha
Atualizado em 17 abr 2020, 11h56 - Publicado em 17 abr 2020, 06h00
 (Andy Ryan/Getty Images/Divulgação)
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Ele morava na grande cidade. Era, parecia, o único habitante de carne e osso; era gente. Os outros eram etéreos, translúcidos, ideias e opiniões que passavam e voavam. Além dele, só moravam pensamentos ali. Ia todo dia ao trabalho, caminhando entre conjecturas apressadas e hipóteses aflitas. Tomava o metrô com planos altivos e inquietos, que falavam sozinhos sem cessar. Descia da estação e chegava ao edifício, para subir de elevador acompanhado por impressões inseguras, descobertas otimistas, pesares arrependidos e objeções veementes. Só havia povo assim naquela cidade.

Nela vivia, e era ela apenas que conhecia. Um filme novo visto ou um livro lido traziam a ela novos habitantes. Dançava com alguns, argumentava com outros. Os pensamentos bailavam, distraíam, encarceravam: dependia. Ele rodopiava em discussões fantásticas que nunca teria, declarações de amor que nunca seriam ditas e projetos grandiosos que jamais transformariam nada. Vivia lá, na própria cabeça, na grande cidade da mente. Talvez ele tivesse uma vida fora dali, não se sabe.

Nunca estava só; pensamentos atravessam paredes, e eles invadiam sua privacidade e seu descanso. Traziam companhia, ligados uns aos outros, e, quando ele via, os pensamentos haviam adentrado sua noite e seu dia. Era incessante; era desgastante.

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Nem era porque esses pensamentos fossem ruins. Havia vários agradáveis e belos, ótimas companhias, inspiradores na conversa e na presença. Havia memórias douradas de verão, de colo de mãe e vó, de tricô e bolo quentinho. Havia delírios de romance, de beijos roubados, de roupas atiradas ao chão e promessas eternas que se dissolviam pela manhã. Havia viagens não feitas, imaginadas e perfeitas, para ser executadas um dia. Alguns pensamentos vinham de autores famosos, vestidos de frases impactantes e com cara de epígrafe. Outros eram epifanias, brilhantes e ousadas, novas.

Algumas vizinhanças da cidade da mente eram perigosas. Ressentimentos moravam ali. Raivas e suas gangues, revanche e rancor. Outros bairros guardavam pensamentos de derrota e desespero. Outras partes eram mais amenas, de esperanças e ideais, de encorajamentos e alegrias.

A cidade era gigantesca; ela parecia não ter fim.

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Mas um dia, ele sentado no banco de uma praça, um raio de sol escapuliu por entre nuvens escuras e veio acariciar seu rosto. Sentiu algo diferente, mas não entendeu. E então, decidido, se levantou e foi procurar uma ideia. Era raro que isso acontecesse: era ainda mais raro que ele fosse até o fim. As distrações eram muitas e a cada esquina algo novo queria sua atenção. Mas ele queria aquela ideia, especialmente ela.

Exausto e intrigado, subiu por ruas íngremes, até um local que nunca havia visitado. Passou pela vila filosófica, pelo parque dos iluministas, pelas ruas da filantropia — e foi ainda além. Era um gramado bonito e um pouco florido, no alto de um morro. Ali estava sentada uma ideia que ele ainda não conhecia.

— Você é a Paz? — ele perguntou.

— Sou! — ela respondeu, serena.

— Queria muito encontrar você. Como você poderá fazer parte da minha vida?

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Solícita, sorridente, a Paz começou a falar. Discorreu sobre as razões de Kant, as sugestões de Epicuro, as meditações de Marco Aurélio. Contou sobre as raízes do sofrimento, as descobertas de Buda, a ética e a aceitação. Explicou a compaixão, o perdão, a solidariedade. Falou do Sermão da Montanha, dos pequenos que se tornam grandes, dos mansos que herdam os céus.

Ele ouviu, interessado. Achava lindo e enriquecedor. Ela falava, ele aprendia. Mais pensamentos vinham, convidados por ela; mas ele não desviava a atenção. Queria mesmo a paz. Depois de um tempo, porém, parou. Algo o incomodava. Perguntou:

— Paz? Com licença. Estou aqui com você, não estou?

Ela interrompeu a aula longa.

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— Sim, estamos juntos.

— E por que não sinto… isso? A paz?

A Paz parou, sem conseguir responder. Seu rosto parecia paralisado; a boca se abria e palavras não saíam. Enfim disse:

— Você sabe que eu sou a ideia paz, certo? Eu sou o pensamento, apenas — ela disse, envergonhada.

— Você não é a Paz? — ele perguntou, confuso.

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— Sou o seu conceito de paz, aqui na sua mente. Achei que você sabia.

— Mas você, que é a ideia Paz, não me faz sentir paz? Ela baixou os olhos, encabulada.

— Claro que não. Como a ideia Mar não vai deixar você molhado. Para isso, é preciso ir além.

Ele se sentiu desolado. Não sabia o que fazer. Só conhecia aquilo, a mente, as informações, as ideias. Achava que encontraria absolutamente tudo ali, nas permutações infinitas. Além? O que existia além? Mergulhou tristonho em si mesmo, os braços sobre o peito, o queixo para baixo. Pensamentos sorrateiros, de derrota e angústia, começaram a aparecer. Ele parou.

— Paz? Para onde eu devo ir para realmente sentir isso que você significa?

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Ela pareceu hesitante. Ponderou e disse:

— Olhe, eu nunca fiz… Não conseguiria sair daqui. Mas você… você não é um pensamento. É uma pessoa.

Ela tomou fôlego, suspirou e continuou:

— Além da cidade, existe o temível deserto do silêncio. Ele costuma enlouquecer quem vive aqui há muito tempo e depois se aventura por lá. Mas, depois do silêncio, há aquilo que você procura. A Paz. Não a ideia, nem a sensação. Ela mesma, a Paz, mas nem sei como ela seria — disse a ideia Paz, humildemente.

Ele agradeceu. Levantou-se e saiu a caminhar, até os limites da cidade. Alguns pensamentos o acompanharam o tempo todo. O medo uivava em seus ouvidos conjecturas trágicas e hipóteses desencorajadoras. A arrogância soprava que ele não precisava, que já tinha o que queria, que era o melhor de todos. Pensamentos de despedida voavam ao seu redor; e julgamentos de si mesmo o reprovavam. Em direção à saída da grande cidade da mente, ele era acossado e apinhado de pensamentos, que pareciam mais do que nunca querer agarrá-lo. Gritavam, urravam. Hesitou, cercado de dúvidas, inquietações e possibilidades.

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E assim ele chegou à fronteira, o fim da cidade. Ali, em frente, o deserto do silêncio. Não era um silêncio de fala: era o silêncio dos pensamentos, que ali não poderiam entrar. Deu um passo adiante. Estava no deserto.

Os pensamentos ainda o chamavam. Pediam, negociavam, imploravam. Mas algo acontecia, um evento único. Seus pés estavam na areia do deserto. Como nunca antes, ele sentia. A atenção, desvinculada de pensamentos, aguçava sua capacidade de sentir mil vezes. Sentia-se vivo, como nunca antes. A areia acariciava seus pés, escorria pelos vãos dos dedos. Ele respirava!, percebeu, e nunca tinha notado como era bom respirar. A atenção estava no agora; no presente. Era plena. A sensação da areia nos pés era indescritível, era real como nenhum pensamento poderia ser. O ar entrava em suas narinas. E, dentro dele, o silêncio do deserto. Deu mais um passo.

Começou a caminhar. Quanto mais entrava no deserto, mais poderoso o silêncio se tornava. Sentiu-se só. Onde estavam seus colegas, seus amigos, os pensamentos bons, interessantes e encorajadores? Onde haviam ficado as ideias que o definiam, que o tornavam interessante, capaz, forte, potente? Nada deles, nada de pensamento algum. Respirou. Sentiu a areia. O silêncio estava em todo o espaço. Continuou a andar.

Já caminhava longe. De seus pensamentos, da cidade da mente, ele nada ouvia. Aquele instante, sagrado e secreto, era mais real que qualquer coisa que já tivesse vivido. Sentia-se leve, puro e pleno. A areia era a guardiã da trilha. O silêncio era o caminho em si. Ele era parte daquilo, um convidado esperado desde sempre. A atenção plena o guiava.

Um som suave chamou sua atenção. Andou mais, e mais, até encontrar. Era um oásis. Água brotava suave, na fonte da intuição. O lago cintilava luz. O viajante suspirou: havia atravessado o deserto do silêncio e chegado no oásis da alma. Ele encontrava ali propósito e significado, ambos alheios a palavrórios e explicações. E a paz? A paz, ele descobriu, estava nele mesmo, o tempo todo, quando ele, liberto da mente, a quisesse ter.

Satyanatha
(Camila Svenson/Divulgação)

Satyanatha (@satyanatha) deixou os pensamentos da cidade grande para aprender, no monastério de Kauai, como atravessar o deserto do silêncio. É autor do app Vivo Meditação, do livro Seja Monge e do podcast Conversas do Silêncio.

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