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Fogo em Borba Gato reacende debate sobre o que fazer com monumentos contestados

Destruir, levar para museu ou incluir placas que expliquem sobre sequestros, assassinatos e estupros?

Por Tatiane de Assis Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 30 jul 2021, 20h48 - Publicado em 30 jul 2021, 06h00
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  • Na terça (27), de manhã, com uma mangueira a jato e desengraxante, um funcionário ligado a uma empresa contratada pela prefeitura se esforçava para remover a fuligem da Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro. Perto de seus pés, encontrava-se um ramalhete de flores, deixado no domingo (25). Não se sabe se como um gesto de ironia ou de solidariedade ao que ocorreu no dia 24, quando o monumento, de aproximadamente 13 metros de altura, incluindo o pedestal, foi incendiado por um grupo de cerca de vinte pessoas.

    “Foi tudo muito rápido, eles chegaram em um caminhãozinho daqueles de frete, desceram, jogaram pneus e atearam fogo”, relata um frentista de um posto de gasolina em frente ao local onde se deu a ação, em uma das faixas da Avenida Adolfo Pinheiro. “Os clientes chamaram a polícia, ficaram com medo do que viram e de o fogo chegar até aqui”, acrescenta o funcionário, que prefere não ser identificado. Entre as chamas e a fumaça escura que tomaram conta do lugar por volta das 13h30, era possível ler em uma faixa alaranjada uma mensagem do grupo: “A periferia vai descer e não vai ser Carnaval”.

    imagem dividida em duas. à esquerda, estátua de borba gato em chamas, à direita, estátua de borba gato antes das chamas
    Estátua de Borba Gato antes (à dir.) e depois (à esq.) das chamas (Gabriel Schlickmann/Mário Rodrigues/Divulgação)

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    No clima de discussão que se formou depois, estavam a estátua, que perdeu o revestimento de sua base e teve suas botas e vestes chamuscadas, e internautas com opiniões contrárias. Um lado chamava os manifestantes de “vândalos, criminosos”. O outro, de “heróis, revolucionários”. Nas palavras de um dos integrantes da ação, o entregador de aplicativo Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo, que se apresentou voluntariamente à polícia na quarta (28), o que o grupo queria era abrir um debate sobre a história de um genocida. Galo e sua mulher chegaram a ter a prisão decretada nesse mesmo dia.

    Não é a primeira vez que a Estátua de Borba Gato, inaugurada em 1963 e assinada pelo escultor Júlio Guerra (1912-2001), sofre investidas. Em 2020, de forma artística, ganhou a companhia de réplicas de crânio, em uma intervenção do Grupo de Ação. Em 2016, a peça de 20 toneladas de concreto, revestida de pastilhas de basalto e mármore e que tem na estrutura trilhos de bonde, recebeu um banho de tinta colorida. O mesmo ocorreu com o Monumento às Bandeiras, do ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), no Parque Ibirapuera, que, em 2013, também foi marcado por pigmento vermelho. O que unia os manifestantes nas diferentes datas e lugares? Uma contestação às homenagens aos bandeirantes. Manuel de Borba Gato era um deles, viveu entre 1649 e 1718. Segundo Vida e Morte do Bandeirante, o livro de Alcântara Machado lançado em 1929, esses expedicionários exploravam territórios no interior do país, então colônia, nos séculos XVI e XVII, capturando e escravizando indígenas e negros e estuprando e traficando mulheres.

    Monumento às Bandeiras, representando os bandeirantes, de Victor Brecheret.
    O Monumento às Bandeiras foi alvo de ações de manifestantes que discordam da homenagem a figuras contestadas da História em 2013 e 2016 (Luiz Aureliano/Divulgação)
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    Acerca do questionamento dessas figuras, o professor do Departamento de História da USP Carlos Bacellar diz: “Com o tempo, a sociedade vai mudando e esses heróis do passado vão sendo reavaliados. O Duque de Caxias é o patrono do Exército, por exemplo. Um símbolo para militares. Claro, agia em nome da monarquia, reprimia rebeliões, matava quem se opunha”. Sobre a retirada de estátuas, ele pondera: “Tirar ou não tirar, para mim, é secundário. O mais importante é contextualizar. Se você perguntar a alguém quem foi Borba Gato, ninguém vai saber. Era preciso, mas o poder público não faz, colocar uma placa ao lado da peça e explicar quem foi aquele personagem, o que fez e como é visto hoje”.

    Artista e também professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Giselle Beiguelman traça um panorama dessa onda contra monumentos. Ela diz que é possível falar de urban fallism, em inglês, ou derrubacionismo, em português. O termo remete ao pedido de estudantes para a remoção de uma estátua de Cecil Rhodes (1853-1902) do câmpus da Universidade de Cidade do Cabo, na África. O britânico foi figura atuante na colonização daquele continente. Os alunos foram atendidos. Isso, em 2015, cinco anos antes da morte de um homem negro norte-americano, George Floyd, em Minneapolis, Estados Unidos, por um policial branco, o que deflagrou protestos como em Bristol, na Inglaterra, onde houve a derrubada de uma escultura em homenagem a Edward Colston (1636-1721), traficante de pessoas escravizadas.

    O furor causado pela retirada à força das imagens é, contudo, um sintoma de algo maior. “Grupos sociais invisibilizados pela história oficial, em termos de nomeação de monumentos e de ruas, vêm reivindicando o direito de expressar suas narrativas”, explica Giselle, que reforça que os modos de atuação são variados e passam também por novos campos de pesquisa acadêmica, práticas artísticas e criação de formas diferentes de ocupação do espaço público. Há ainda outras soluções: “A Alemanha retirou monumentos nazistas e os colocou em um museu em Spandau, cidade próxima a Berlim. São peças com as quais a população judaica não pode conviver. É nessa faixa que a gente tem de entender a revolta dessas etnias que foram massacradas por bandeirantes”.

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    Em São Paulo, a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL) criou o projeto de lei nº 404/2020 que visava à proibição de homenagens a escravocratas e a transferência dessas estátuas para museus. O voto do relator, Gilmaci Santos (Republicanos), apontou vício de iniciativa, o que significa que a proposição deve ser feita pelo Poder Executivo, seja pelo prefeito, seja pelo governador do estado. Em âmbito federal, segue em tramitação iniciativa semelhante na Câmara dos Deputados, o PL 5296/2020, de Talíria Petrone (PSOL). Enquanto sua apreciação não é feita, o Borba Gato segue, a salvo agora, guardado 24 horas por viaturas da Polícia Militar. E esperando a sua restauração, prometida por um empresário da cidade.

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    Personagens em revisão

    Estátua de Diogo Antônio Feijó, em frente ao Museu do Ipiranga
    Estátua de Diogo Antônio Feijó, em frente ao Museu do Ipiranga (Mário Rodrigues/Divulgação)

    A estátua de Diogo Feijó faz parte do Monumento à Independência, no Parque Ipiranga. O primeiro regente do Império era a favor da abolição, mas mantinha pessoas escravizadas.

    Estatua em homenagem ao Dr. Luís Pereira Barreto, na praça marechal deodoro
    Estatua em homenagem ao Dr. Luís Pereira Barreto, na praça Marechal Deodoro (Webysther Nunes/Wikipedia/Divulgação)

    A peça em homenagem ao médico Luiz Pereira Barreto está na Praça Marechal Deodoro. De acordo com a professora Angela Alonso, ele era contra a abolição imediata da escravatura.

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    estátua de Duque de Caxias, na Praça Princesa Isabel
    Estátua de Duque de Caxias, na Praça Princesa Isabel (Antônio Milena/Divulgação)

    O Monumento ao Duque de Caxias fica na Praça Princesa Isabel, nos Campos Elíseos. Pela dizimação de grupos indígenas e negros contra a monarquia, consta em uma lista de estátuas problemáticas, feita pelo Coletivo Negro de Historiadores Teresa de Benguela

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    Publicado em VEJA São Paulo de 04 de agosto de 2021, edição nº 2749

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