Fogo em Borba Gato reacende debate sobre o que fazer com monumentos contestados
Destruir, levar para museu ou incluir placas que expliquem sobre sequestros, assassinatos e estupros?
Na terça (27), de manhã, com uma mangueira a jato e desengraxante, um funcionário ligado a uma empresa contratada pela prefeitura se esforçava para remover a fuligem da Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro. Perto de seus pés, encontrava-se um ramalhete de flores, deixado no domingo (25). Não se sabe se como um gesto de ironia ou de solidariedade ao que ocorreu no dia 24, quando o monumento, de aproximadamente 13 metros de altura, incluindo o pedestal, foi incendiado por um grupo de cerca de vinte pessoas.
“Foi tudo muito rápido, eles chegaram em um caminhãozinho daqueles de frete, desceram, jogaram pneus e atearam fogo”, relata um frentista de um posto de gasolina em frente ao local onde se deu a ação, em uma das faixas da Avenida Adolfo Pinheiro. “Os clientes chamaram a polícia, ficaram com medo do que viram e de o fogo chegar até aqui”, acrescenta o funcionário, que prefere não ser identificado. Entre as chamas e a fumaça escura que tomaram conta do lugar por volta das 13h30, era possível ler em uma faixa alaranjada uma mensagem do grupo: “A periferia vai descer e não vai ser Carnaval”.
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No clima de discussão que se formou depois, estavam a estátua, que perdeu o revestimento de sua base e teve suas botas e vestes chamuscadas, e internautas com opiniões contrárias. Um lado chamava os manifestantes de “vândalos, criminosos”. O outro, de “heróis, revolucionários”. Nas palavras de um dos integrantes da ação, o entregador de aplicativo Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo, que se apresentou voluntariamente à polícia na quarta (28), o que o grupo queria era abrir um debate sobre a história de um genocida. Galo e sua mulher chegaram a ter a prisão decretada nesse mesmo dia.
Não é a primeira vez que a Estátua de Borba Gato, inaugurada em 1963 e assinada pelo escultor Júlio Guerra (1912-2001), sofre investidas. Em 2020, de forma artística, ganhou a companhia de réplicas de crânio, em uma intervenção do Grupo de Ação. Em 2016, a peça de 20 toneladas de concreto, revestida de pastilhas de basalto e mármore e que tem na estrutura trilhos de bonde, recebeu um banho de tinta colorida. O mesmo ocorreu com o Monumento às Bandeiras, do ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), no Parque Ibirapuera, que, em 2013, também foi marcado por pigmento vermelho. O que unia os manifestantes nas diferentes datas e lugares? Uma contestação às homenagens aos bandeirantes. Manuel de Borba Gato era um deles, viveu entre 1649 e 1718. Segundo Vida e Morte do Bandeirante, o livro de Alcântara Machado lançado em 1929, esses expedicionários exploravam territórios no interior do país, então colônia, nos séculos XVI e XVII, capturando e escravizando indígenas e negros e estuprando e traficando mulheres.
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Acerca do questionamento dessas figuras, o professor do Departamento de História da USP Carlos Bacellar diz: “Com o tempo, a sociedade vai mudando e esses heróis do passado vão sendo reavaliados. O Duque de Caxias é o patrono do Exército, por exemplo. Um símbolo para militares. Claro, agia em nome da monarquia, reprimia rebeliões, matava quem se opunha”. Sobre a retirada de estátuas, ele pondera: “Tirar ou não tirar, para mim, é secundário. O mais importante é contextualizar. Se você perguntar a alguém quem foi Borba Gato, ninguém vai saber. Era preciso, mas o poder público não faz, colocar uma placa ao lado da peça e explicar quem foi aquele personagem, o que fez e como é visto hoje”.
Artista e também professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Giselle Beiguelman traça um panorama dessa onda contra monumentos. Ela diz que é possível falar de urban fallism, em inglês, ou derrubacionismo, em português. O termo remete ao pedido de estudantes para a remoção de uma estátua de Cecil Rhodes (1853-1902) do câmpus da Universidade de Cidade do Cabo, na África. O britânico foi figura atuante na colonização daquele continente. Os alunos foram atendidos. Isso, em 2015, cinco anos antes da morte de um homem negro norte-americano, George Floyd, em Minneapolis, Estados Unidos, por um policial branco, o que deflagrou protestos como em Bristol, na Inglaterra, onde houve a derrubada de uma escultura em homenagem a Edward Colston (1636-1721), traficante de pessoas escravizadas.
O furor causado pela retirada à força das imagens é, contudo, um sintoma de algo maior. “Grupos sociais invisibilizados pela história oficial, em termos de nomeação de monumentos e de ruas, vêm reivindicando o direito de expressar suas narrativas”, explica Giselle, que reforça que os modos de atuação são variados e passam também por novos campos de pesquisa acadêmica, práticas artísticas e criação de formas diferentes de ocupação do espaço público. Há ainda outras soluções: “A Alemanha retirou monumentos nazistas e os colocou em um museu em Spandau, cidade próxima a Berlim. São peças com as quais a população judaica não pode conviver. É nessa faixa que a gente tem de entender a revolta dessas etnias que foram massacradas por bandeirantes”.
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Em São Paulo, a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL) criou o projeto de lei nº 404/2020 que visava à proibição de homenagens a escravocratas e a transferência dessas estátuas para museus. O voto do relator, Gilmaci Santos (Republicanos), apontou vício de iniciativa, o que significa que a proposição deve ser feita pelo Poder Executivo, seja pelo prefeito, seja pelo governador do estado. Em âmbito federal, segue em tramitação iniciativa semelhante na Câmara dos Deputados, o PL 5296/2020, de Talíria Petrone (PSOL). Enquanto sua apreciação não é feita, o Borba Gato segue, a salvo agora, guardado 24 horas por viaturas da Polícia Militar. E esperando a sua restauração, prometida por um empresário da cidade.
Personagens em revisão
A estátua de Diogo Feijó faz parte do Monumento à Independência, no Parque Ipiranga. O primeiro regente do Império era a favor da abolição, mas mantinha pessoas escravizadas.
A peça em homenagem ao médico Luiz Pereira Barreto está na Praça Marechal Deodoro. De acordo com a professora Angela Alonso, ele era contra a abolição imediata da escravatura.
O Monumento ao Duque de Caxias fica na Praça Princesa Isabel, nos Campos Elíseos. Pela dizimação de grupos indígenas e negros contra a monarquia, consta em uma lista de estátuas problemáticas, feita pelo Coletivo Negro de Historiadores Teresa de Benguela
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Publicado em VEJA São Paulo de 04 de agosto de 2021, edição nº 2749