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Blog do Lorençato

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O editor-executivo Arnaldo Lorençato é crítico de restaurantes há mais de 30 anos. De 1992 para cá, fez mais de 16 000 avaliações. Também comanda o Cozinha do Lorençato, um programa de entrevistas e receitas. O jornalista é professor-doutor e leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Memória: o pirajuiense Naum Alves de Souza

Embora tenhamos nascido em Pirajuí, no interior do estado, conheci Naum Alves de Souza (1942-2016) somente aqui na capital. Antes, ninguém havia me contado uma linha sequer sobre ele. Talvez porque Naum fosse 21 anos mais velho e de uma geração anterior à minha. Talvez fosse porque minha mãe era da geração do cantor Tito Madi […]

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Atualizado em 26 fev 2017, 13h23 - Publicado em 11 abr 2016, 19h59
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  • Naum: do texto aos adereços, um artista completo (Reprodução Facebook)

    Naum: do texto aos adereços, um artista completo (Reprodução Facebook)

    Embora tenhamos nascido em Pirajuí, no interior do estado, conheci Naum Alves de Souza (1942-2016) somente aqui na capital. Antes, ninguém havia me contado uma linha sequer sobre ele. Talvez porque Naum fosse 21 anos mais velho e de uma geração anterior à minha. Talvez fosse porque minha mãe era da geração do cantor Tito Madi e ele era o grande sucesso para ela, além de uma colega de escola batizada Carmen Therezinha Solbiati e que se tornou Mairink Veiga depois de casada. Inquieto, doce e com alma de artista, Naum deixou o anomimato caipira aos 18 anos para vir brilhar em São Paulo e no mundo, a mesmíssima idade que eu tinha quando saí de lá.

    + Morre Naum Alves de Souza

    A descoberta de Naum, que nos deixou no sábado (9),  se deu antes mesmo de eu tomar conhecimento de que ele era de Pirajuí, onde não criamos raízes. Ainda estudante de jornalismo na PUC, amava o cinema, as artes plásticas, o teatro… A gastronomia viria muito tempo depois.

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    + Memória: Giancarlo Bolla, do La Tambouille

    Numa tarde de domingo de um março quente e luminoso fui assistir à matinê de Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, no Teatro Maria Della Costa. Não havia horário de verão em 1984, mas ainda era dia radiante quando tocou o primeiro sinal. O espetáculo que veria a seguir apresentava de maneira poética e sensível as agruras de um adolescente reprimido pela família protestante e assustado com um Deus formatado à moda do Antigo Testamento. Ou seja, severo e punitivo. Ator-ícone de Naum nessa época, J. C. Viola, bailarino que ele dirigiria em Nijinski, fazia o garoto temeroso e cheio de trejeitos com perfeição. O crítico Jefferson Del Rios, na Folha de S. Paulo, bem sintetizou a montagem autobiográfica Um Beijo… em duas frases: “Pirajuí-Proust. As madeleines de Naum Alves de Souza são amargas”.

    + Memória: Marcos Bassi, o mestre do churrasco

    Esbarraria em Naum mais algumas vezes, uma delas em uma das óperas que ele dirigiu. Era O Pescador de Pérolas, levada no palco do Municipal em 1995 com regência de Jamil Maluf. Tinha como cenário uma aldeia do antigo Ceilão, transformado depois em Sri Lanka, no qual se desenhava o trágico triangulo amoroso entre a sacerdotisa Leila e os pescadores Zurga e Nadir. Para pontuar a música de sonoridade de oriental criada por Bizet, Naum colocou no palco uma leva de bailarinos içados por cabos como se formasse um cardume de peixes alados. Era um efeito lindo, que se eterniza na memória.

    Só me aproximei de verdade de Naum quando era editor do caderno Fim de Semana, do extinto diário econômico Gazeta Mercantil. Encomendei crônicas a ele, que fez sua estreia com o belo texto que reproduzo abaixo. A gente acabou se encontrando muito pouco depois dessa época, mas guardo essa bela lembrança dele:

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    De Pirajuí para o mundo: criatividade em tempo integral (Foto: Sérgio Keuchgerian)

    De Pirajuí para o mundo: criatividade em tempo integral (Foto: Sérgio Keuchgerian)

    A celebração da memória

    Sexta-feira, 22 de dezembro de 2000

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    Por Naum Alves de Souza, de São Paulo

    Quando era pequeno, reinava absoluto em Pirajuí, no interior de São Paulo, o Guaraná Noroeste (provavelmente, até Carmen Mayrink Veiga o bebia, pois nasceu lá), do Bepe Lopez. Coca-Cola e Crush ainda eram luxos que só existiam nas Lojas Americanas da vizinha Bauru. Nunca faltou Guaraná Noroeste numa festa pirajuiense. No Natal, meu pai comprava duas dúzias para serem consumidas no dia 25. Um sofrimento atroz não poder abrir nenhuma antes.

    Os primeiros Natais de que me lembro não tinham os tenders, chesters e perus congelados que parecem pedras nos freezers dos supermercados. Coisas de São Paulo, de gente chique, de tradição americana. O tender quadriculado por cortes de faca, melado de Karo, todo espetado de cravos, assado e enfeitado com uma farofa diferente das que conhecia, com torresmo e ovos mexidos. Cerejas falsas, ameixas e passas no meio da farinha torrada. Onde já se viu isso? Os perus e chesters são piores: têm gosto de isopor. E aquele apito na barriga do peru? Tenha santa paciência! Dona de casa que se prezava estava sempre vigiando e regando as carnes no forno. Outro dia uma amiga me perguntou se eu já havia visto alguma foto de um chester. Pensando bem, nunca vi. Se alguém tiver foto de um chester vivo*, me envie, por favor.

    No interior ninguém comia frutas frescas como sobremesa de Natal. Fruta se comia durante a semana, de preferência debaixo ou trepado na árvore. A maçã, um luxo argentino só presente quando a gente ficava doente, aqui em São Paulo virou coisa banal, pois já se naturalizou e sofre a humilhação de ser figurante de arranjos onde as estrelas são frutas exóticas e luxuosas, que agora chegam de todos os cantos do mundo.

    + Meu adeus ao gênio italiano que detestava de ser chamado de gourmet

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    Os presbiterianos Natais da minha família tinham como grande foco a festa noturna da igreja, no dia 24, quando apresentávamos pecinhas edificantes, cantos, recitativos e, já sonolentos, voltávamos para casa enlouquecidos para dormir, acordar e pegar sob a árvore o sonhado presente.

    Na hora do almoço é que rolavam os comes e bebes que vinham sendo preparados havia uma semana. A casa se transformava da cozinha para o quintal; coisas secas, que duravam mais, como os docinhos, chegavam a ser guardados em guarda-roupas, embrulhados por alvos panos de prato.

    Tinha um lado carnificina. Galinhas, porcos, cabritos podiam ser degolados, destroncados ou esfaqueados no quintal. E a gente via tudo, misturando sadismo, lágrimas e gula. Era delicioso ganhar um fígado para assar na chapa do fogão a lenha. Tachos fumegavam dentro e fora de casa. Tinha gente picando tempero, moendo ou derretendo banha, tias lavando tripas e enchendo linguiças. Se o pernil do porco era grande, tinha de ser assado na padaria, hábito praticado por muita gente em dias de festa.

    Me lembro de ter comido peru só uma vez. Está nítida na memória a imagem de alguém embebedando com pinga o bicho, que, trocando as pernas, não sabia que estava a caminho do forno. Todo mundo achava chique um peru assado, mas as crianças detestavam aquela carne seca que entalava na garganta.

    O cardápio de nossos Natais era meio bagunçado, bem brasileiro, uma gostosa mistura de arroz de forno, frango recheado com farofa, pernil de porco ou de cabrito assados, uma salada que ninguém comia, cuscuz vermelho com camarão seco, palmito, ervilhas — tudo enlatado. Sempre havia muitos doces, todos simples, nada de tortas, tipo floresta negra, que sempre têm cara de loja. Eram manjar de coco, cajuzinho, pudim de leite, sagu, doce de casca de laranja de burro (trabalhoso demais — tinha de ralar a pele, tirar a polpa da fruta, deixar as cascas de molho não sei quantos dias e depois, horas de cozimento), rabanadas, bombocados e brevidades, presentes também nos aniversários. As balas de coco eram um capítulo à parte. Antes de minha irmã aprender a fazê-las com maestria, eram compradas de uma doceira.

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    As frutas secas talvez fossem as guloseimas que mais marcavam o período. Como era bom quebrar nozes, amêndoas e avelãs na porta da frente, perto das dobradiças! Para finalizar, as bebidas. Se estivesse presente o pastor ou algum puritano linguarudo da igreja, não se tocava em álcool. Se o convidado era de confiança, aparecia logo um vinho doce e barato, de garrafão, uma cervejinha, mas jamais pinga, bebida de bêbado, destruidora de lares e fortunas. Para as crianças, refresco de groselha e guaraná, sem gelo. Aproveitando restos de fundos de garrafa, habilmente roubados, inventávamos coquetéis: guaraná com vinho ou cerveja. Nenhuma criança se preocupava com o gosto. Engolia rápido. Tinha gosto de Natal.

    * Se não foi o primeiro na imprensa, Naum foi um dos primeiros a questionar a Perdigão sobre a imagem viva e com penas do Chester®, marca registrada do cruzamento de vários galináceos de origem europeia.

    Caderno de receitas:
    + Feijoada, do Esquina Mocotó
    + Confit de pato com laranja, do La Casserole
    + Petit gâteau, do chef Erick Jacquin
    + Bolo brigadeiro sem leite condensado, Monte Líbano

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