Violência nos estádios
A morte de um corintiano e o ônibus de vascaínos queimado mostram como os bandos que formam as torcidas organizadas de São Paulo levam o terror a estádios e ruas em dias de jogos. Somente punições severas e o monitoramento constante desses criminosos podem evitar que situações assim se tornem uma rotina e afastem de vez dos campos os paulistanos que gostam de futebol
O clima nos estádios paulistanos costuma ser de tensão. Muitas vezes sem darem a mínima ao que acontece no gramado, hordas de torcedores organizados trocam xingamentos e ameaças. É uma violência que afugenta das partidas as pessoas que simplesmente gostam de futebol e hoje têm medo – totalmente justificado – de se aproximar do Morumbi, do Pacaembu ou do Parque Antártica em dias de jogo. Quando as quadrilhas uniformizadas se encontram na rua, é grande o risco de uma batalha com consequências imprevisíveis. Foi o caso das arruaças entre vascaínos e corintianos no último dia 3. Por volta das 21h30, um comboio de quinze ônibus com seguidores do Vasco encontrou, na Marginal Tietê, um ônibus e ao menos quatro carros com cerca de sessenta membros do Movimento Rua São Jorge, dissidência da corintiana Gaviões da Fiel. A escolta policial que acompanhava o grupo carioca, com vinte motos e duas viaturas, não foi suficiente para conter os ânimos. Durante quinze minutos, os dois bandos se digladiaram, armados de paus, pedras e barras de ferro, além de ao menos uma espingarda calibre 12 e uma pistola automática. O corintiano Clayton de Souza, de 27 anos, foi espancado até a morte.
“Há fortes indícios de que a São Jorge tentou armar uma emboscada”, afirma a delegada Margarette Barreto, titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). De acordo com a Polícia Militar, 450 pessoas se envolveram no tumulto. O Ministério Público Estadual fala em 700. “Não armamos a briga”, defende-se o empreiteiro Douglas Deungaro, conhecido como Metaleiro, ex-presidente da Gaviões e o principal líder da São Jorge. “Se quiséssemos fazer algo do tipo, teríamos reunido mais torcedores, em vez de mandar só um pequeno grupo para apanhar.” Em represália à morte de Souza, dois rapazes incendiaram com um coquetel molotov um ônibus vazio da torcida vascaína que estava estacionado no entorno do Estádio do Pacaembu. A polícia deteve 27 corintianos. Desses, dezenove foram indiciados. Todos acabaram liberados e estão livres para aterrorizar as próximas partidas do Timão. “A falta de punição encoraja esses indivíduos”, afirma o promotor Paulo Castilho, idealizador de um projeto de lei que tem como objetivo criminalizar atos de violência dos torcedores.
Investigações do Decradi mostram que os líderes das torcidas usam olheiros para monitorar onde estão os veículos rivais e então planejar ataques. “O criminoso se sente protegido em meio ao seu bando, pela sensação de anonimato”, explica o coronel da reserva Marcos Marinho de Moura, que desde 2006 tenta organizar um cadastro com os nomes e fotos de todos os membros das torcidas organizadas para a Federação Paulista de Futebol. Não tratar os marginais como tais é o principal estopim das brigas. Restringir o consumo de álcool nas redondezas dos estádios e criar uma polícia específica para agir em eventos esportivos, além de manter preso e banido dos estádios quem se mete em confusão, são algumas das soluções apontadas por especialistas ouvidos por VEJA SÃO PAULO (confira no quadro).
Nem sempre as torcidas foram sinônimo de baderna. De acordo com a pesquisadora Tarcyanie Cajueiro, autora de uma dissertação de mestrado sobre o assunto, as primeiras torcidas organizadas do estado, com sedes fixas e grande número de integrantes, foram a Gaviões da Fiel e a Torcida Jovem do Santos, ambas fundadas em 1969. Em 1971, surgiu a Camisa 12, também do Corinthians. No ano seguinte vieram a Torcida Tricolor Independente, do São Paulo, e a Leões da Fabulosa, da Portuguesa. “Muitos iam ao estádio torcer, mas os líderes, só para brigar mesmo”, conta o coronel da reserva Silvio Villar Dias, autor do estudo “Atos violentos derivados de praças desportivas”. Um dos confrontos mais marcantes ocorreu em um jogo entre Santos e Portuguesa, no Canindé, em 1978. “O estádio estava em reforma e os torcedores pegaram paus e pedras para se enfrentar”, lembra o jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho, o PVC. Atualmente, existem treze organizadas de expressão dos quatro principais times da capital (Corinthians, Palmeiras, Portuguesa e São Paulo), que reúnem mais de 200 000 membros.
Nos anos 80, a violência aumentou, em grande parte devido à inspiração nos hooligans ingleses. Foi a época em que as torcidas começaram a armar confusão a caminho dos estádios. O primeiro confronto com morte data de outubro de 1988. Cleo Sóstenes, então presidente da palmeirense Mancha Verde, foi assassinado a tiros próximo à sede de sua torcida. Quatro anos depois, uma bomba de fabricação caseira matou o corintiano Rodrigo de Gásperi, de 13 anos, no Estádio Nicolau Alayon, do Nacional Atlético Clube, durante uma partida entre São Paulo e Corinthians. Em agosto de 1995, outro adolescente, o são-paulino Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos, foi morto a pauladas em um confronto entre as torcidas do Palmeiras e do São Paulo na final da Supercopa de Juniores. Após esse incidente, o Ministério Público Estadual pediu a extinção da Mancha Verde e da Independente. “Tentamos inúmeras vezes fechar as organizadas, mas elas sempre deram um jeito de voltar à ativa”, afirma o deputado estadual Fernando Capez, procurador de Justiça licenciado. Em 1997, ex-integrantes da Mancha Verde formaram a Mancha Alviverde. A Independente, na prática, só mudou sua estrutura.
Hoje, dissidências das organizadas protagonizam a maior parte dos confrontos. O tal Movimento Rua São Jorge, que se envolveu na encrenca com os vascaínos, é um exemplo. Fundado em 2007, o bando surgiu depois de discussões internas na Gaviões da Fiel. De acordo com a Decradi, reúne 800 integrantes. Mas, segundo os líderes do agrupamento, esse número é superior a 2 000. “Nós nos separamos porque achamos que a torcida deve ter foco no time e no clube, sem desviar a atenção para outros assuntos, como o Carnaval”, diz o presidente Metaleiro. Membros do grupo costumam travar discussões nas arquibancadas até com outros corintianos. “Os mais jovens têm o hábito de brigar para mostrar força e se afirmar. Já fui assim.”
Dissidências dão dor de cabeça em outras grandes torcidas paulistanas. “Sempre expulsamos maus elementos”, diz o diretor da são-paulina Independente, Valter Luiz Costa, o Magrão. “No ano passado, alguns excluídos tentaram montar um grupo violento, mas o desmantelamos.” No Palmeiras, a rixa é entre duas organizadas, a Mancha Alviverde e a TUP, que costumam se enfrentar na Rua Turiaçu antes e depois dos jogos. “As brigas eram encabeçadas por uma galera do ABC que foi excluída da Mancha”, afirma o presidente da torcida, André Guerra. Apesar do discurso, o Ministério Público Estadual não considera esses líderes tão inocentes assim. “Sempre que surge algum problema, eles culpam os outros para que sua organização saia ilesa”, acredita o promotor Castilho. “Mas muitas vezes propagam a violência com falas ofensivas.” Um dos cantos da Independente, por exemplo, prega o seguinte: “Bonde do mal, eu sou da Independente, o terror da capital/ Levanta a galera, faz tremer a arquibancada e dá porrada na galinhada.” É ingenuidade achar que gritos assim não incentivam os confrontos. Ou imaginar que esses bandidos fantasiados de torcedores são apenas fanáticos que de vez em quando se excedem. Eles são criminosos e o lugar deles é na cadeia.
Ódio, vandalismo e boçalidade
20/8/1995
A decisão da Supercopa de Juniores, no Pacaembu, transformou-se em uma batalha campal. Em comemoração à vitória por 1 a 0, palmeirenses invadiram a área reservada aos são-paulinos. O confronto, com hordas armadas de paus e pedras retirados de entulhos do estádio, terminou com 102 feridos e o assassinato do são-paulino Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos.
15/7/2005
Na noite em que se sagrou tricampeão da Taça Libertadores da América, o São Paulo teve sua conquista manchada. Em vez de comemorarem, torcedores foram à Avenida Paulista depredar estações de metrô, lojas e bancas de revista. A tropa de choque da Polícia Militar só conteve os vândalos às 3 da manhã.
13/10/2005
Durante um jogo contra o Corinthians na Vila Belmiro, os torcedores do Santos ficaram enfurecidos com a atuação do árbitro Cleber Wellington Abade. A partida seguia empatada até que, aos 39 minutos do segundo tempo, o juiz marcou um pênalti a favor dos corintianos. Após o gol, o jogador santista Giovanni chutou a bola para a arquibancada e os torcedores invadiram o gramado. Abade encerrou a partida, e a confusão tomou conta das ruas em volta.
4/5/2006
Ao verem o River Plate fazer 3 a 1 sobre o Corinthians no Pacaembu, torcedores alvinegros tentaram derrubar o alambrado que separa a torcida do campo e invadir o gramado. O árbitro chileno Carlos Chandía encerrou o jogo aos 40 minutos do segundo tempo por falta de segurança e o Timão foi eliminado da Libertadores daquele ano.
29/4/2008
Irritados com as filas e a insuficiência de ingressos para a partida final do Campeonato Paulista, entre Palmeiras e Ponte Preta, torcedores alviverdes entraram em confronto com a PM.
Como enfrentar a selvageria
Seis propostas para enquadrar os fora da lei
Prender – e manter presos – os vândalos
A grande maioria dos torcedores envolvidos em brigas, mesmo quando vai parar nas delegacias, não fica presa. Deve ir a votação no Senado nos próximos dias o relatório final do projeto de revisão do Estatuto do Torcedor. O documento prevê prisão e banimento dos estádios dos responsáveis por tumultos e venda ilegal de ingressos. “Temos de acelerar a criação de mecanismos de punição”, diz o senador Sérgio Zambiasi (PTB-RS), relator do projeto.
Monitorar efetivamente os estádios
Os três principais estádios da capital (Morumbi, Pacaembu e Parque Antártica) têm, juntos, 196 câmeras de vigilância. “Mas não há pessoal treinado para interpretar as imagens e assim identificar os arruaceiros”, conta Marco Aurélio Klein, presidente da comissão de ingressos da Federação Paulista de Futebol. Na Inglaterra, agentes da Scotland Yard, a polícia londrina, fazem esse serviço.
Criar uma polícia exclusiva para o futebol
Garantir a segurança dentro e no entorno dos estádios em dias de jogo é apenas mais uma entre as muitas funções da Polícia Militar. Com efetivo exclusivo para eventos esportivos, seria possível melhorar a preparação desses profissionais. O 23º Batalhão, por exemplo, responsável pelos arredores do Pacaembu e do Parque Antártica, tem 1 000 policiais. “Em dia de jogos importantes, precisamos deslocar 450 PMs para os estádios”, afirma o major Walmir Martini, subcomandante da área.
Fazer jogos com torcida única
Nas partidas entre os quatro principais clubes do estado (Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo), a torcida da equipe visitante já recebe, no máximo, 10% do total de ingressos. Mas há uma proposta mais radical: a torcida única. “O ideal seria não ter nenhum torcedor do time visitante em clássicos”, diz o promotor Paulo Castilho. “Assim, não haveria confusão.”
Identificar os torcedores
O cadastramento dos membros das organizadas na Federação Paulista de Futebol ainda não funcionou como esperado. Desde 2006, foram identificadas 29 900 pessoas. Calcula-se que seria preciso cadastrar pelo menos 200 000. O Ministério Público defende que todo espectador tenha de fazer um cadastro para comprar ingresso. Além de garantir a identificação, acabaria com a evasão de renda.
Proibir a venda de bebidas alcoólicas
Dentro dos estádios de São Paulo não é permitido o consumo de álcool. O Ministério Público propõe ampliar a restrição às redondezas das praças esportivas. Outro desafio é tornar mais rigorosa a revista, para evitar a entrada de drogas.
Fontes: Fernando Capez, procurador de Justiça licenciado e deputado estadual; Paulo Castilho, promotor do Ministério Público Estadual; delegada Margarette Barreto, titular da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância; Sérgio Zambiasi, senador; Federação Paulista de Futebol; Polícia Militar do Estado de São Paulo
A Inglaterra vira modelo
Tragédia na Bélgica provocada por hooligans ingleses há 24 anos fez o país criar leis específicas para o futebol
A origem de leis específicas de combate à violência em eventos esportivos está ligada ao episódio conhecido como “tragédia de Heysel”. No dia 29 de maio de 1985, um tumulto causado por hooligans, como são chamados os torcedores ingleses que vão aos estádios para provocar, entrar em confronto com os adversários e praticar vandalismo, causou 39 mortes no Heysel Park, na Bélgica, pouco antes do início da partida final da Copa dos Campeões da Europa, entre Liverpool, da Inglaterra, e Juventus, da Itália. Como punição, a própria federação inglesa baniu seus clubes das competições europeias por cinco anos. A partir daquela data, seis leis foram implantadas para tentar conter os hooligans. A mais recente, de 2000, prevê, além de prisão, banimento dos estádios por até dez anos, inclusive fora do Reino Unido, para quem se envolver em alguma confusão. Só no ano passado foram emitidas 1 072 ordens de expulsão. Atualmente, 3 172 estão em vigor. Em caso de reincidência, há previsão de afastamento perpétuo dos campos. Torcedores ingleses podem ser punidos até por um xingamento ou tatuagem considerada ofensiva. Vigilância por câmeras é obrigatória nos estádios. “A polícia inglesa prefere banir a prender por pouco tempo”, explica Marco Aurélio Klein, presidente da comissão de ingressos da Federação Paulista de Futebol. “O fato de ter sido preso vira um troféu entre esses fanáticos. Longe dos estádios, eles perdem força.” Klein coordenou em 2005 a Comissão Paz no Esporte, criada pelo governo federal para estudar ações de combate à violência no futebol. Na Espanha também há um modelo eficaz de controle. Multas de até 650 000 euros por infrações consideradas muito graves inibem o vandalismo. Uma invasão de campo, ocorrência rotineira nos campos de futebol paulistas, custa 60 000 euros. Além disso, o país tem penas de prisão de até quatro anos por delitos cometidos em praças esportivas.