Muito se tem falado sobre o novo normal. A discussão abarca não apenas questões de sanitização e protocolos de saúde, mas também a revisão de parâmetros econômicos, sociais e de desenvolvimento urbano. Há dúvidas sobre se as cidades e seus enormes contingentes populacionais conseguirão adaptar-se ao mundo pós-pandemia. Uma importante chave para essa resposta está na maneira como a habitação será encarada daqui em diante.
O lugar onde uma pessoa mora é determinante para estabelecer seu grau de suscetibilidade ao coronavírus e sua (in)capacidade de praticar o isolamento social e criar uma rotina minimamente estruturada durante a quarentena. Diante disso, discutir a crescente importância da varanda gourmet, se o home office tomará o lugar dela nos novos empreendimentos ou se esses passarão a ter aeroporto de drone é seguir com um olhar míope para o futuro. Mas infelizmente esse é o assunto que tem tomado conta das mídias e das intermináveis lives com os experts do mercado imobiliário e financeiro nos últimos meses. O verdadeiro legado da pandemia para a habitação precisa ser mais do que um produto imobiliário à prova de contaminação e deve levar em conta os problemas estruturais que a cidade ainda não resolveu nesse campo. A maioria da população da cidade não pode se dar ao luxo de rever a forma de morar. Eles ainda nem moram com condições mínimas de conforto e salubridade.
Antes da pandemia, o déficit habitacional já era de quase 8 milhões de moradias no país e havia crescido 7% nos dez anos anteriores, como aponta levantamento da Fundação Getulio Vargas realizado com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Na outra ponta, não alcançamos por parte dos programas públicos um patamar de produção que nos permita avaliar a real eficácia dos modelos existentes, e se de fato atendem quem mais precisa. Ou seja, se de um lado o mercado olha para questões pontuais, de outro os gestores patinam em buscar, inclusive em termos de prazos e custos de execução, alternativas de enfrentamento da precariedade. Nesse contexto, está mais do que provado que a solução para a habitação acessível não pode ser jogada nas costas do poder público e que o mercado imobiliário deve rever seu papel para construtor de cidade, e não apenas de empreendimentos.
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Embora muitas vezes colocados como opositores, tanto poder público quanto mercado imobiliário e acadêmicos compartilham a defesa de algumas bandeiras, e a habitação acessível certamente está entre elas. Está claro, e é óbvio: precisamos um do outro para fazer dar certo. Temos profissionais extremamente capacitados em todos esses setores, gente comprometida, experiente, séria e dedicada. Não é mais possível terceirizarmos responsabilidades nem seguirmos nesse eterno jogo de atribuição de culpas à espera de soluções mágicas. Precisamos todos nos sentar em torno da mesma mesa de discussão, sem disputas por protagonismo, sem repetir os mesmos lugares-comuns e discursos datados, deixando de lado egos e pretensões políticas, para juntos encontrarmos alinhamento e viabilidade. É urgente que haja uma atuação de verdade, pois de nada vai adiantar termos um plano premiado internacionalmente se ele ainda não incentiva, na prática, a produção de habitação de que a cidade precisa.
As ferramentas estão disponíveis, mas podem ser melhoradas por meio de calibragens de marcos regulatórios e que futuramente passem a integrar políticas públicas. Em São Paulo seria possível, por exemplo, rever o baixo adensamento nas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), incentivando a produção, pela iniciativa privada, de moradia para famílias com renda de até três salários mínimos. Outra possibilidade é criar uma legislação simplificada que permita a requalificação de prédios (retrofit) abandonados pelo poder público e localizados em uma das mais nobres áreas da cidade, o centro. Por que grandes cidades do mundo viabilizam reformas em prédios antigos e São Paulo ainda não conseguiu? A impressão que passa é que o descaso e o excesso de legislação nos tornam muito mais prudentes e responsáveis do que Berlim ou Nova York. É urgente, ainda, estabelecer um dispositivo legal para incentivar a produção de empreendimentos destinados ao aluguel, criando opções de locação acessíveis a famílias de menor renda que não podem se comprometer com financiamento bancário ou não conseguem se enquadrar nos critérios para liberação de crédito exigidos pela Caixa Econômica Federal — entre eles, dispor de um emprego formal em um momento em que o país tem 17,8 milhões de desempregados, outros 37 milhões de informais e 4 milhões de postos de trabalho destruídos em dois meses, ainda com dados de abril.
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Isso para citar apenas algumas das possíveis soluções de simples execução mas que, infelizmente, se tornam discussões infundadas e filosóficas sobre “qual seria o grupo especulador que pretende encontrar soluções práticas para habitação”. Por fim, o assunto, como é de costume por aqui, vira uma disputa política, comprometendo o desenvolvimento da cidade.
Do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, incentivar a habitação econômica é conter invasões de áreas sob proteção ambiental, ampliar o acesso ao saneamento básico, proteger famílias da influência do tráfico e requalificar áreas degradadas da cidade. Não é preciso apresentar um grande projeto que transformará a cidade inteira de uma só vez, até porque, como já cansamos de ver, eles nunca saem do papel. Temos de fatiar esses “projetos de master plan perfeitos” e atuar de forma simples e eficiente. Há debates sem fim sobre as conquistas ou defeitos de leis de zoneamentos que não se mostraram eficientes, esquecendo-se de analisar sua calibragem na cidade.
Neste momento, com recursos escassos e demanda crescente, a hora é de focar nos combates específicos, entendendo que essa disputa jamais será vencida por nocaute, mas somente por um longo embate de pontos corridos onde quem precisa ganhar são a cidade e a sociedade. Somando forças, expertises e coordenando um conjunto de pequenas ações certamente contribuiremos de forma muito mais eficiente para uma cidade mais democrática, reduzindo as consequências devastadoras da pandemia.
Estou torcendo para que, desta vez, nossa memória não seja curta e seletiva. Afinal, passaram-se mais de dois anos que o Edifício Wilton Paes de Almeida desabou no centro da cidade. Há quase seis meses o governo municipal anunciou que faria um prédio no local. Foi logo depois lembrado de quanto o modelo proposto é ineficiente. Espero que, ao relermos este texto daqui a alguns meses, estejamos celebrando juntos o verdadeiro legado da pandemia para o campo da habitação da nossa cidade.
André Czitrom é empreendedor social e CEO da Magik JC, incorporadora que desenvolve projetos Minha Casa Minha Vida no centro de São Paulo com arquitetura e design destinados a famílias que ganham de zero a seis salários mínimos. A empresa é certificada pelo Sistema B, rede global que apoia negócios geradores de impactos positivos em suas áreas de atuação. É formado em engenharia pelo Mackenzie e pós-graduado em história da arte pela Faap.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de julho de 2020, edição nº 2695.