14. Martinelli: prédio foi construído sob desconfiança
O cavaliere Giuseppe Martinelli era acusado de, imprudentemente, acrescentar andares a um projeto original que previa apenas catorze
Cai? Não cai? O grande assunto da cidade, durante boa parte do ano de 1928, era se a enorme ousadia chamada Prédio Martinelli se sustentaria ou desabaria sob o peso de suas desmesuradas pretensões. “Poderá ruir o Prédio Martinelli”, anunciava a manchete do ‘Diário Nacional’ em 24 de maio. A obra que, desde 1924, subia, subia e subia, na Praça Antônio Prado, já atingira àquela altura 24 andares. ‘O Diário da Noite’ de cinco dias depois era tranquilizador, mas registrava a desconfiança que ainda contaminava os paulistanos: “O Prédio Martinelli não deu grande susto à população, mas os transeuntes mudaram de passeio”.
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Alegava-se que o cavaliere Giuseppe Martinelli, que em todos mandava e a quem tudo era permitido, fazia imprudentemente o prédio ir acrescentando andares e mais andares a um projeto original que previa apenas catorze. É verdade que, estimulado por um lado pelo clima de deslumbramento pela empreitada e por outro pela própria vaidade, Martinelli fora espichando a obra, e pretendia chegar a trinta andares. Mas na controvérsia entravam também fatores políticos. ‘O Diário Nacional’, órgão do Partido Democrático, tinha Martinelli como alvo por ser ligado aos políticos do Partido Republicano Paulista, no poder federal, estadual e municipal. ‘O Diário da Noite’ era comandado por um aliado de Martinelli, Assis Chateaubriand.
Giuseppe Martinelli (1870-1947) nasceu nos arredores de Luca, na Toscana amante das torres e das exuberantes decorações. Chegou ao Brasil em 1889 e teve seu primeiro emprego num açougue em São Paulo. Nos anos seguintes, em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, faria carreira no ramo da importação e exportação. Exportou café e importou artigos diversos. No passo seguinte, formou sua própria frota de navios, origem do Lloyd Nacional, por ele fundado em 1917. Já era rico, portanto, quando encetou a empreitada do prédio que levaria seu nome.
As controvérsias sobre o cai não cai foram dirimidas com as exigências da prefeitura de que Martinelli diminuísse o peso dos materiais, nos andares acima do 17º, e se contentasse com o limite de 25 deles. O italiano cumpriu inteiramente a primeira exigência e em parte a segunda. Sobre a laje do 25º andar, construiu uma mansão para uso próprio, com salões, dependências íntimas, áreas de serviço e até porões, além de jardins e terraços, perfazendo um ‘bungalow’, como o chamava, de cinco andares. Se aos 25 do prédio propriamente dito se juntam os cinco do ‘bungalow’ dos ares, chegamos aos trinta andares sonhados.
Até a inauguração do Martinelli, em 1929, o edifício mais alto da cidade era o Sampaio Moreira, de doze andares, concluído cinco anos antes e ainda hoje de pé na Rua Líbero Badaró. O Martinelli fez do Sampaio Moreira um anão. Era motivo de orgulho para os habitantes. E, além da altura de 130 metros, oferecia outros números grandiosos: sessenta salões, 960 salas, 247 apartamentos, 510 telefones, doze elevadores, 1 057 degraus e 2 133 janelas, segundo levantamento de Maria Cecília Naclério Homem, autora do livro ‘O Prédio Martinelli — A Ascensão do Imigrante e a Verticalização de São Paulo’. Era uma miragem futurista, para usar palavra da época, na calma horizontalidade da cidade, mas também representava uma transição, ou uma indecisão. Os arcos, colunas, óculos, balaústres e esculturas da decoração da fachada refletiam as tradições europeias em que São Paulo quisera se refletir, enquanto a altura sugeria a entrada na era dos arranha-céus das cidades americanas.
O Martinelli homenageava a cidade, brindando-a com o jamais visto, ao mesmo tempo em que homenageava seu construtor. O imigrante de Luca quis fazer um monumento a si próprio, a seu poder e a seu status, como faziam os senhores italianos da Idade Média e do Renascimento. Tanto se envolveu no projeto que sugeriu, aprovou ou redirecionou cada detalhe. Na placa que ainda se lê ao pé do edifício, mandou gravar: “Prédio Martinelli. Projecto e desenho do proprietário, José Martinelli”. Ironicamente, o empreendimento, somado à crise de 1929, levou Martinelli à bancarrota. Nos anos seguintes, ele voltaria à navegação e ao comércio exterior, para refazer sua fortuna.