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Os campeões dos transplantes: histórias de uma nova vida

Os avanços da medicina nas cirurgias que envolvem órgãos vitais fazem com que paulistanos vivam mais e até se tornem atletas de alto desempenho

Por Rosana Zakabi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Gonzalez Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00
Patricia Fonseca, de 32 anos: prova de triatlo com o novo coração  (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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A economista paulistana Patricia Fonseca nasceu com uma insuficiência cardíaca grave e, segundo os médicos, não chegaria a 1 ano de idade. Passou por diversos tratamentos e, ao contrário do prognóstico inicial, conseguiu prolongar a vida, mas com uma série de limitações. Apesar dos cuidados, sua saúde piorou e a única solução possível foi um transplante.

Em julho de 2015, entrou em uma das salas de cirurgia do Hospital do Coração e passou por uma operação de onze horas. Ficou internada no centro médico durante um mês. Nesse período, chegou a tomar sete drogas por dia para evitar problemas de rejeição ao órgão. Aos poucos, começou a fazer ali mesmo pequenos exercícios. “O ritmo da recuperação dela superou as expectativas”, comenta Carlos Hossri, cardiologista do HCor que até hoje acompanha a evolução da ex-paciente.

E que evolução! As caminhadas na esteira ergométrica logo viraram corridas. Em seguida, Patricia passou a realizar treinos de natação e ciclismo. Há dois meses, participou da Olimpíada dos Transplantados, em Málaga, na Espanha, na categoria triatlo. Não levou nenhuma medalha (ficou em sexto lugar entre sete competidoras), mas foi a primeira transplantada de coração a completar uma prova da modalidade em quase quarenta anos desses jogos.

Fachada do HCor
Fachada do HCor (Reprodução/Veja SP)

O evento contou com a presença de outros brasileiros, caso do bancário Rodrigo Machado, 45, e do médico Edson Arakaki, 55. O primeiro conquistou cinco medalhas na natação — duas de ouro e três de prata —, e o segundo, outras duas, no tênis (prata e bronze).

Patricia, Rodrigo e Edson fazem parte de um time que virou símbolo do enorme avanço ocorrido no universo dos transplantes. Até algumas décadas atrás, as chances de sobrevivência dos pacientes eram mínimas, e mesmo quem conseguia resistir tinha um cotidiano complicado. Hoje, graças ao desenvolvimento da medicina, boa parte dos operados leva uma vida normal. Alguns iniciam atividades físicas ou retomam os treinos e se tornam aptos a participar de provas de alto nível.

Em 2016, foram realizados na capital 2 243 procedimentos envolvendo coração, pulmão, fígado, pâncreas e rim (os órgãos vitais mais transplantados no país), número 98% acima do registrado em 2000, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (Abto).

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Nesse período, a taxa de sobrevida também aumentou, de acordo com dados do Sistema Estadual de Transplantes, da Secretaria de Estado da Saúde: em operações no coração, subiu de 56% para 77%; no fígado, de 61% para 73%; e no rim, de 80% para 92%. No caso de transplantes de pulmão, o índice hoje é de 81% — dezessete anos atrás, eles nem entravam nas estatísticas, pois eram raríssimos.

Apesar de não envolver partes sólidas do corpo, o de medula óssea também está entre os procedimentos vitais mais realizados. Em 2016, foram feitos 1 000 só no Estado de São Paulo. A principal razão para os bons resultados são os progressos científicos na área. “Novos estudos possibilitaram preservar melhor os órgãos e aumentar a qualidade da saúde dos pacientes que vão recebê-los”, afirma Wellington Andraus, coordenador de transplantes de fígado do Hospital das Clínicas.

Uma das grandes novidades dos últimos cinco anos é a técnica de perfusão, que consiste em injetar no órgão, por meio de uma bomba, uma solução de concentração plasmática, que funciona como sangue artificial. O método prolonga em até quatro horas a vida útil do órgão fora do corpo humano.

“É o tempo de que os médicos precisam para tomar as providências necessárias”, diz José Eduardo Afonso Jr., coordenador do Núcleo de Captação de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein. A perfusão pode aumentar as chances de êxito da operação em até 20%.

Hospital Albert Einstein
O Hospital Albert Einstein (Adriano Vizoni/Folha Imagem/Divulgação)
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No sistema cardiorrespiratório, uma das maiores inovações da última década foi o ECMO, oxigenação por membrana extracorpórea. O dispositivo atua como um pulmão artificial e consegue manter o paciente vivo por semanas, até o novo coração começar a funcionar adequadamente.

Há também um método pelo qual o coração é transportado imerso em uma solução de aminoácidos chamada Custodiol, que prolonga sua vida útil fora do corpo humano para cinco horas — nos líquidos salinos comuns, a média é de duas horas. “O InCor é um dos hospitais com maior experiência na aplicação desse procedimento no mundo”, afirma Fabio Gaiotto, coordenador da equipe cirúrgica de transplante cardíaco do local.

Outra novidade na instituição é o crossmatch virtual, sistema de troca de informações on-line sobre a compatibilidade entre doador e paciente. Ao contrário do método convencional, que demora seis horas para concluir se um órgão se encaixa em determinado perfil, o sistema virtual obtém a informação em minutos. “Isso tornou possível buscar um coração em locais distantes, com segurança”, explica Gaiotto.

Soma-se a isso o aperfeiçoamento dos imunossupressores, que impedem a rejeição. Hoje, drogas de última geração conseguem reduzir esse problema com mínimos efeitos colaterais.

“Eu tinha medo de fazer o transplante e depender dos remédios, porque, naquela época, há três décadas, eles baixavam muito a imunidade. Nos últimos anos, evoluíram muito, proporcionando-me uma qualidade de vida bem maior”, conta Edson Arakaki, que recebeu um novo rim em 2001. Até iniciativas simples, como a escolha do tipo de doador, vêm salvando vidas.

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“Pesquisas atuais mostram que a chance de a operação de pâncreas dar certo é maior quando o doador tem menos de 50 anos e não é obeso. Então, temos evitado gente desse grupo de risco e aumentamos o sucesso no procedimento”, explica Vinicius Rocha Santos, coordenador do Programa de Transplante de Pâncreas do Hospital das Clínicas.

No caso da cirurgia de medula óssea, uma das maiores evoluções nos últimos dez anos foi o crescimento no número de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário, cuja rejeição é menor.

Na última década, o número de doações aumentou 45% no Estado de São Paulo. Em 2016, foram 2 757. Ainda assim, a fila não para de crescer. Na capital, cerca de 6 000 pessoas aguardavam pelo transplante no ano passado, e 330 delas morreram antes de recebê-lo.

O tempo de espera varia de quatro meses (fígado e pâncreas) a um ano e meio (rim). “A demanda é uma consequência da evolução do diagnóstico. Como as doenças são detectadas de forma rápida, mais gente entra na lista”, explica Marizete Peixoto Medeiros, médica sanitarista e coordenadora do Sistema Estadual de Transplantes.

Uma das grandes dificuldades do setor, segundo ela, é que, mesmo quando o indivíduo é doador, nem sempre a família autoriza o procedimento. A doação, no geral, precisa ocorrer após a morte encefálica (quando cessa a atividade do cérebro) mas com os órgãos vitais ainda funcionando. “Muitos parentes ficam com receio de liberar a retirada nesse momento”, diz Medeiros.

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TRANSPLANTADOS
Patricia Fonseca, de 32 anos: prova de triatlo com o novo coração (Alexandre Battibugli/Veja SP)

O desenvolvimento da medicina não possibilita que qualquer transplantado vire atleta do dia para a noite, mas permite que indivíduos com predisposição genética a isso se dediquem a um esporte de alto desempenho. “Depois que comecei a treinar, quero ir cada vez mais longe”, afirma o maratonista Itamar Montalvão, 43, outro transplantado de rim.

Há exemplos semelhantes no exterior. O mais famoso é o americano Aries Merritt, medalha de ouro na prova de 110 metros com barreiras nos Jogos de Londres de 2012. Ele recebeu um rim em 2015 e, no ano seguinte, voltou a competir. São histórias assim que inspiram outras pessoas. “Meu sonho é conseguir uma boa colocação competindo com atletas não transplantados no triatlo”, conta a economista Patricia Fonseca, que vem descobrindo, a cada dia, novos limites para o seu novo coração.

Coração de triatleta

Transplantados
Patricia Fonseca: vida nova (Leo Martins/Veja SP)

“Nunca tive uma rotina normal por causa de problemas no coração. Recém-nascida, já estava na UTI. Quando ia a um shopping muito grande, precisava andar de cadeira de rodas, pois não aguentava caminhar. Aos 14, passei por uma cirurgia para corrigir a válvula mitral, mas não resolveu o problema. Mais tarde, tive de parar a faculdade, pois não consegui frequentar as aulas. Pouco antes do transplante, em 2015, não tinha forças nem para falar.

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Tudo mudou após a operação. Concluí a graduação, comecei a trabalhar e fui morar com meu namorado. Além de ganhar uma nova vida, realizei o sonho de infância de virar atleta e participei de uma prova internacional de triatlo. Treino três vezes por semana no Hospital do Coração e criei um site, o Soudoador.org, para reunir depoimentos de outros transplantados bem-sucedidos. O objetivo é ajudar pessoas que passam pela mesma situação e incentivar a doação de órgãos.” Patricia Fonseca, economista

De volta às piscinas

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O nadador Rodrigo Machado (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“Sempre gostei de esportes. Na adolescência, treinava natação e, depois, passei a praticar corrida. Em 2012, aos 40 anos, tive de parar com tudo ao ser diagnosticado com leucemia; precisei de um transplante de medula óssea. Minha irmã prontificou-se a fazer a doação e, por sorte, os exames apontaram 100% de compatibilidade. Dois anos mais tarde, porém, descobri um novo tumor no sangue, o sarcoma, e tive de me submeter à quimioterapia novamente.

O tratamento foi difícil, até porque minha medula não era original. Em 2016, ainda em recuperação, voltei a nadar e, em oito semanas, comecei a competir. Há dois campeonatos mundiais de transplantados previstos para 2018 e estou me preparando para participar deles.” Rodrigo Machado, bancário de São Caetano do Sul

Craque das raquetes

TRANSPLANTADOS
O médico Edson Arkaki (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“Meus problemas nos rins começaram em 1986, quando fui diagnosticado com a doença de Berger, que leva à insuficiência renal terminal. Vivi com a enfermidade relativamente bem por quinze anos, mas, em 2001, fiquei bastante debilitado e precisei recorrer à operação. Os exames mostraram que minha irmã era compatível, e ela pôde fazer a doação.

A recuperação foi fantástica. Retornei ao trabalho em um mês e, em quatro, voltei a jogar tênis, ainda como amador. Conheci a Olimpíada dos Transplantados em 2009 e formei uma dupla com outro ex-paciente de rim, o Haroldo Costa, de Brasília. Desde então, participamos de todas as edições e já ganhei sete medalhas no torneio.

Muita gente tem medo de praticar esporte após uma operação complicada. Na verdade, a atividade física é fundamental para a pessoa voltar a ter uma vida normal.” Edson Arakaki, médico

Rumo à maratona de Chicago 

Itamar Montalvão Transplantados
Itamar Montalvão: maratona em Chicago (Ricardo D'angelo/Veja SP)

“Quando nasci, fui diagnosticado com câncer congênito no rim esquerdo, e tive de retirá-lo. Por azar, aos 25 anos, descobri outro problema renal grave no direito, o único que me restava. Mudei meus hábitos do dia a dia, voltei a praticar exercícios e consegui conviver com a doença, chamada glomeruloesclerose focal, por uma década. Mas chegou uma hora em que não deu mais. Precisei fazer hemodiálise, entrei na fila e, em 2015, passei pelo transplante.

Dois meses após a operação, percebi que não sabia viver sem ter problemas de saúde. Então, decidi me dedicar a um esporte de alto rendimento. Comecei a treinar e, cinco meses depois, participei de uma corrida de rua, de 8 quilômetros. Desde então, já completei seis meias maratonas. Meu objetivo, agora, é fazer uma prova completa, de 42 quilômetros, no fim do ano que vem, em Chicago.” Itamar Montalvão, jornalista

MAIS ÓRGÃOS, MAIOR SOBREVIDA

A evolução dos transplantes em números

2 243 operações no coração, pulmão, fígado, pâncreas e rim foram realizadas na capital no ano passado, 98% mais que em 2000.

2 350% é quanto aumentou o número de cirurgias no pulmão de 2000 a 2016: subiu de 2 para 49.

38% é o porcentual referente ao crescimento da taxa de sobrevida de quem recebeu um coração novo. Em transplantes de fígado, foi de 19%, e de rim, 16%.

2 757 doações de órgãos foram feitas em 2016 no Estado de São Paulo, um aumento de 45% em relação a dez anos atrás.

1,5 ano é o tempo médio de espera na fila para obter um rim na capital. Para receber um pulmão, são dez meses; coração, seis; fígado e pâncreas, quatro.

Fontes: Abto e Sistema Estadual de Transplantes

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