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OLÁ,

Trânsito livre para a lata-velha

A realidade da nossa frouxa fiscalização: carros aos pedaços como o da foto abaixo, fabricado em 1982, circulam tranquilamente até pelos cartões-postais da cidade

Por Mauricio Xavier [com reportagem de Angela Pinho]
Atualizado em 1 jun 2017, 17h30 - Publicado em 8 nov 2013, 19h05
lata-velha teste fiat 147 tabela
lata-velha teste fiat 147 tabela (Arte VEJA SÃO PAULO/)
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No clássico longa-metragem de horror Christine, dirigido em 1983 por John Carpenter e baseado no livro homônimo de Stephen King, um automóvel Plymouth Fury 1958 em péssimas condições ganha personalidade após ser reformado e desanda a cometer assassinatos em uma cidade da Califórnia. Com a devida licença dramática, São Paulo também serve de cenário para atentados perpetrados por monstrengos de quatro rodas. A fiscalização frouxa é o sinal verde para que veículos podres desfrutem ampla liberdade de movimento, pondo em risco a vida de seus ocupantes e a dos demais paulistanos. Não existe uma estatística fidedigna sobre a quantidade de assombrações que perambulam pela metrópole, mas uma forma de quantificar esse contingente é a inspeção veicular ambiental. “Os carros que evitam os postos da Controlar são, na maioria, aqueles cujo custo de regularização já ultrapassou seu valor de mercado. São os fantasmas”, diz o consultor de trânsito Sergio Ejzenberg. Isso representa um impressionante comboio de 1,5 milhão de ilegais, ou cerca de 30% da frota circulante. Se fossem enfileirados, chegariam até o Mar do Caribe.

+ Assista aos bastidores da reportagem

Para testarmos o grau de vigilância dos órgãos de trânsito, circulamos pela capital com uma máquina aparentemente caindo aos pedaços. Aparentemente porque, antes de girarmos a chave no contato, recorremos a uma oficina para deixá-la em condições seguras de uso. O carro era um modelo 1982, equipado com motor de 1 300 c.c. movido a gasolina. Seu último licenciamento havia sido realizado em 2009. Ele foi comprado por 700 reais de um mecânico de Sapopemba, na Zona Leste, que o usava até então. A suspensão estava em frangalhos e o motor queimava óleo e soltava fumaça de diferentes matizes, ora branca, ora cinza-azulada — inspeção realizada na oficina Carbofreio, no Sumaré, mostrou que o índice de emissão de hidrocarbonetos pelo escapamento chegava a 4 700 partículas por milhão, sete vezes acima do permitido. A carroceria estampava tentativas curiosas de esconder os incontáveis pontos de ferrugem, com o uso de produtos típicos da construção civil, como massa plástica e cimento. Uma das portas, a do motorista, só se mantinha fechada sob a tutela de uma improvisada barra de metal (enferrujada, claro) trespassada em um buraco na lataria. Invariavelmente era preciso sair pelo lado do carona. A primeira marcha, ao ser engatada, gemia um ronco como “grrrraaaak”, propagado a cerca de 100 decibéis, atraindo olhares assustados a metros de distância. Os pneus estavam gastos, e as rodas, com parafusos empenados. Em resumo, uma calamidade mecânica. Os problemas foram listados pelo Centro de Experimentação e Segurança Viária, no Jaraguá. Entre outros, faltava extintor de incêndio, havia folga na direção e defeitos diversos na parte elétrica. O carro passou por um check-up interno, mas permaneceu com sua aparência externa aterradora.

 

Só 3 em cada 100…

…veículos ilegais são retirados das ruas

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Frota registrada: 7,5 milhões

Frota circulante: 4,5 milhões

Carros irregulares: 1,5 milhão

Sem licenciamento: 485 000

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Apreendidos em 2012: 49 000

Fontes: Detran, Controlar e Polícia Militar

Rodamos 300 quilômetros durante um mês por várias regiões da cidade, passeando por avenidas como as marginais Pinheiros e Tietê (em suas extensões quase completas), Paulista e até a Rodovia dos Bandeirantes. Manter-se discreto era praticamente impossível, mas as reações das pessoas diante do carango variavam bastante. Incluíam o desprezo, como o do motoboy que gritou: “Tira esse lixo da rua!”, e a incredulidade, a exemplo da motorista que emparelhou em um congestionamento na Rua Heitor Penteado, na Zona Oeste, e arregalou os olhos antes de disparar: “Mas o que é isso? Que horror!”. Em aceleração máxima de 50 quilômetros por hora — na subida da Avenida Rebouças chegou a ser ultrapassado por uma bicicleta —, o bólido chamou a atenção de motoristas, mas quem de fato deveria ter se incomodado não se incomodou. Passamos por dez viaturas da Polícia Militar, sem contar uma blitz em Pirituba. Inacreditavelmente, não fomos parados em momento algum. A lata-velha teve caminho livre. “Foi sorte. Diversas variáveis influenciam para ocorrer uma abordagem; os policiais podiam estar ocupados no momento”, diz o capitão Julyver Modesto de Araujo, chefe do gabinete de treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito (CPTran). Para os especialistas, não é bem assim. “Há uma desobediência civil tolerada em relação aos carros irregulares”, afirma Ejzenberg. “Eles não passam por manutenção, não respeitam regras e é muito comum vê-los envolvidos em acidentes.” Um estudo do professor de engenharia de tráfego João Cucci Neto, da Universidade Mackenzie, calculou que um automóvel parado por trinta minutos em uma das marginais — seja por batida, seja por defeito — interdita duas faixas e provoca um congestionamento médio de 4,3 quilômetros. Além dos riscos, circular com um carro irregular sem ser importunado é uma afronta aos cidadãos que pagam seus impostos em dia.

+ Outros veículos em más condições que circulam pela cidade

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lata-velha teste fiat 147
lata-velha teste fiat 147 ()

A fiscalização do trânsito em São Paulo é dividida entre a PM e a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). A primeira é a responsável por observar as infrações relacionadas ao condutor e ao veículo, como carteira de motorista vencida ou pneu gasto. Qualquer policial pode realizar essa checagem, mas a tarefa é atribuição primordial dos 1 300 agentes do CPTran. A pena para transitar com o licenciamento atrasado é a apreensão do automóvel, que deve ser encaminhado a um dos três pátios do Detran. Segundo uma estimativa da polícia, um a cada três abordados em blitze está irregular. Todos saem de circulação? Não, pois nem sempre há espaço para abrigá-los. “Os pátios estão com a capacidade de armazenamento comprometida”, diz o capitão Julyver. “Se não há vagas, apenas autuamos e confiscamos o documento, mas liberamos o automóvel. Infelizmente, é algo que ocorre com frequência”, completa. Com 1 800 agentes, a CET tem o papel de orientar a circulação dos veículos, que poderão ser guinchados se estiverem estacionados de maneira irregular (na esquina ou a mais de 50 centímetros da calçada). Não é sua função observar carroças motorizadas, mas o marronzinho é orientado a alertar um PM caso depare com uma. Na semana passada, havia cerca de 11 800 vagas em pátios, somadas as do Detran e as dos cinco pátios da CET. Ainda assim, nada nem próximo do ideal para abrigar todos os que estão arrepiando a lei pela capital. A se basear pela projeção da PM sobre o número de ilegais, seria necessário construir mais 100 áreas como essas. Para minimizar o problema, o governo promove leilões periódicos dos carros apreendidos e não reclamados por seus proprietários em um prazo de noventa dias. Até agosto deste ano, 14 763 veículos foram passados adiante dessa forma. Em busca de solução mais definitiva, o Estado está concluindo um projeto para construir mais pátios. A previsão é que a licitação seja publicada até o começo do ano que vem.

lata-velha teste fiat 147
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Em outras cidades do mundo, a vida dos motoristas é bem mais dura. Em Nova York, por exemplo, é preciso renovar anualmente duas licenças, uma ambiental e outra de segurança. A verificação é realizada por empresas certificadas pelo departamento de veículos automotores da cidade. São checados itens obrigatórios como luzes, espelhose pneus. Em Singapura, manter um automóvel custa caro: o valor da permissão para rodar costuma ultrapassar os 100 000 reais e a vida útil de um carro é, em média, de dez anos. O governo controla a quantidade de veículos em circulação: à medida que os velhos vão deixando as vias, autoriza novas compras. Por aqui, pelo menos uma das nossas aberrações abandonou as ruas. Na semana passada, após sua epopeia por São Paulo, a nossa lata-velha foi levada à Trufer, uma empresa de reciclagem de metal em Diadema, na região metropolitana, onde foi triturada por uma máquina de 90 metros de comprimento e 10 metros de altura chamada shredder. Em trinta segundos, ela foi transformada em uma pequena pilha de ferragens, com o preço de revenda de sua sucata estimado em 500 reais (quaseo valor do veículo “inteiro”). Agora, pelo menos, está no lugar certo: fora decirculação, enquanto milhares de outras latas-velhas continuam soltas por aí.

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