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Tormento

Preso no trânsito, qualquer motorista compreenderia o que o filósofo francês Jean-Paul Sartre quis dizer no final da peça Entre Quatro Paredes: “O inferno são os outros”. O início da descida é o céu: compramos a última palavra da indústria automobilística, zerinho, cheirando a novo, potente, macio, som maravilhoso. Saímos da garagem, seguimos enlevados por […]

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18
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  • Preso no trânsito, qualquer motorista compreenderia o que o filósofo francês Jean-Paul Sartre quis dizer no final da peça Entre Quatro Paredes: “O inferno são os outros”.

    O início da descida é o céu: compramos a última palavra da indústria automobilística, zerinho, cheirando a novo, potente, macio, som maravilhoso. Saímos da garagem, seguimos enlevados por algum tempo e de repente estamos no meio do inferno. Os outros, justamente, são o nosso inferno. Ali, dentro do nosso isolado refúgio, não nos damos conta de que somos parte do inferno de outros. Cada um é o inferno do outro.

    A maioria dos paulistanos sabe o que os espera ao sair de casa, outros caem inocentes. O inferno está cheio de bem-intencionados. Você cai em armadilhas.

    Tipo jogo no Morumbi, na quarta-feira à noite. Quem freqüenta a região conhece o problema dos acessos à ponte às 19 horas; adia a ida, alonga a happy hour, busca outros caminhos. Quem não conhece, e nem se lembra de que haveria a final do campeonato naquela noite, vai indo confiante e de repente está lá, no meio da coisa. No começo não se dá conta ainda da armadilha, acha que algum carro pode ter pifado à frente, uma pequena batida que logo se resolve, ou um motoqueiro que derrapou. Só de–pois que está ali parado, e avança, e pára, e avança 1 metro, e pára dez minutos, só então se dá conta: tem jogo no Morumbi!

    Ou armadilha tipo região da Rua 25 de Março. Você tenta aproveitar o feriado prolongado para ir ao Mercado Central num sábado de manhã, na boa, comprar aquele camarão, aquelas frutas secas, aquele queijo, na vã suposição de que a cidade está vazia, mas!: todo mundo teve a mesma idéia, ou foi antecipar as compras do Dia das Crianças na 25 de Março, ali perto. Fica horas no trânsito, não tem onde deixar o carro, desiste, perde a manhã, volta para casa derrotado.

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    Ou tipo Parada Gay. Você está voltando de uma viagem, não sabe da parada, e os desvios de trânsito jogam você nas ruas intrincadas da Bela Vista. O desfile terminou, mas ninguém tem pressa para se dispersar: a festa de 1 milhão e meio de pessoas e os shows particulares continuam nas ruas próximas, todas travadas, paradas. Não são saídas, são entradas. Quando você percebe a armadilha, já está lá dentro, no inferno.

    Ou tipo passeata de alguma categoria profissional. De repente, você, com hora marcada ou humor em baixa, se vê encalacrado naquele nem para a frente nem para trás. De nada adiantam murros no volante ou palavrões, mas você se torna insano. Também não dá para cochilar um pouco, tem de avançar aquele insignificante meio metro antes que alguém buzine atrás. Faltou o aviso: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.

    Para alguns desavisados, esses momentos fazem parte do inesperado. Para as pessoas normais, são penas de todos os dias, inescapáveis. Os que têm de chegar a algum lugar se submetem dóceis e fatalistas ao tormento diário. Como Sísifos, empurram sua pedra morro acima, e de lá ela rola, e têm de novamente empurrá-la.

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    Li, com certo travo de desesperança, a excelente reportagem da nossa Vejinha sobre o trânsito da cidade. Morador, vi como a coisa evoluiu. Menos de dois anos depois que cheguei, chamaram o carioca Coronel Fontenelle para dar um jeito no trânsito, em 1967. Ele criou rótulas de tráfego indo para um lado, contra-rótulas no sentido inverso, interditou ruas do centro e implantou o plano num domingo. Todos os motorizados saíram de casa para testar o sistema e aconteceu o maior congestionamento que a cidade já tinha visto.

    Só piorou, de lá para cá. Pessoas perdem horas produtivas, perdem peças, shows, compromissos, amores, ambulâncias perdem doentes, bombeiros perdem afogados, corações não chegam para o transplante, bebês nascem dentro dos túneis…

    Se não conseguimos planejar uma cidade, que dirá um país?

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