São Paulo, 38 graus. O taxista chega vestido com smoking impecável, ajeita a gravata borboleta e abre a porta. Dentro do veículo, o passageiro reclama do desmanche do time do Corinthians e é censurado: ali não é lugar para papear sobre futebol. O freguês tenta então discorrer sobre os padres pedófilos retratados no filme Spotlight e leva outro corte. Sinal vermelho também para religião.
Em uma última tentativa, opina sobre a desistência do apresentador José Luiz Datena das eleições municipais e, de novo, toma um corte. “Eu já falei que não posso entrar em polêmicas”, esquiva- se o condutor.A prefeitura paulistana está fazendo esforços para transformar em realidade essa cena fictícia.
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O ponto de partida ocorreu na segunda (18), quando a gestão de Fernando Haddad lançou um conjunto de normas regulatórias para os profissionais da área. Como se fosse um “Big Brother da praça”, o governo municipal petista quer controlar tudo o que se passa dentro do carro, do traje do motorista às conversas entre as pessoas.
Um arroubo de estupidez. O dress code dos motoristas, que varia conforme o padrão do veículo, ocupa um capítulo especial na bizarra iniciativa. Quem atua em táxis comuns deve adotar traje “social” ou “esporte fino”. Não vale aqui, por exemplo, camisa com qualquer estampa. Só lisa. Ah, sim, e abotoada, exceto o colarinho.
O cinto precisa estar afivelado. Para os táxis da categoria vermelho e branco, é necessário o uso de camisa com gravata. Para os da classificação luxo, terno ou smoking. Sério, smoking. Para as mulheres, a vestimenta obrigatória em todos os casos é o tailleur. Em resumo, para quem se perdeu: homens trabalham vestidos de Haddad e mulheres, de Marta Suplicy.
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Não à toa, as medidas causaram alvoroço. As mais estapafúrdias – como as orientações aos motoristas para não se queixar da própria profissão e evitar conversas sobre temas controversos, como futebol e política – caíram em poucos dias. “Assim ninguém poderia falar mal do prefeito”, ironiza o advogado Maurício Januzzi, presidente da Comissão de Direito Viário da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo.
“A intenção foi evitar bate-boca, para preservar o passageiro, mas decidimos excluir isso da portaria”, justificou o secretário de Transportes, Jilmar Tatto, na quarta (20). A tal portaria foi publicada pela Câmara Temática do Serviço de Táxi, órgão ligado à Secretaria de Transportes, em 17 de dezembro, e os motoristas tiveram trinta dias para se adaptar. Apesar da participação de sindicatos do setor na discussão, muitos profissionais estão indignados por terem de pagar multa de 35,52 reais cada vez que descumprirem as regras.
Não ficou claro, entretanto, como os atuais 105 fiscais do sistema, que mal dão conta de checar aspectos básicos do transporte, como o estado de conservação dos automóveis que rodam por aí, farão valer na prática a lei do prefeito Haddad. “Ficamos sabendo das novas regras só depois que a portaria foi publicada”, reclama Emilio Martins, de 62 anos, condutor de um Renault Logan 2013. “Nós dirigimos por horas, e trabalhar com sapato social é desconfortável.”
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Em Nova York, no que diz respeito às vestimentas, a lei determina apenas que os motoristas apresentem “aparência profissional”, e não usem “trajes de banho” nem “shorts curtos”. Em Montreal, entrou em vigor no início do mês um dress code bem mais básico, que prevê calças pretas e camisas polo brancas. Na temporada de altas temperaturas, as bermudas são permitidas. Quem anda de carro de praça na capital sabe que há problemas bastante visíveis e fora de controle. Há muitos motoristas, por exemplo, que mantêm ao lado do volante um aparelho ligado em canais de TV.
Mais: é próspero o mercado negro de venda de alvarás, liberações gratuitas garantidas por sorteio que acabam sendo comercializadas por até 200 000 reais (ou alugadas por aproximadamente 150 reais ao dia). “O taxista que precisa arcar com esse custo ilegal não consegue prestar um bom serviço, pois não liga nem o ar-condicionado para garantir algum lucro”, observa o engenheiro de trânsito Sérgio Ejzenberg.
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Desde 2012 não há sorteio de novas licenças na capital, cuja frota, de 34 000 veículos, representa um carro para cada 352 pessoas (em Paris, a proporção cai para um para cada 147). As falhas no serviço deram espaço ao concorrente Uber, ainda não regulamentado, para encantar os paulistanos com predicados simples, como a limpeza dos carros e a consulta ao passageiro sobre a estação de rádio de sua preferência.
Os motoristas do aplicativo são avaliados pelos fregueses, e quem tem nota baixa não pode mais circular. É um sistema muito mais simples e eficiente que o “Big Brother da praça” que Haddad quer implementar.