O valor da tarifa baixou, mas o sufoco é o mesmo
Com ônibus antigos e lotados, ausência de corredores expressos e funcionários insatisfeitos, 59% dos usuários desaprovam o precário transporte público da capital
“Você acha que, se eu pudesse não ter aumentado, eu teria?” A frase do prefeito Fernando Haddad, proferida na sexta (14), ecoava as falas de dias anteriores, diante da temperatura crescente dos protestos pela revogação do reajuste da tarifa de ônibus, de 3 para 3,20 reais, em vigor desde 2 de junho.
Seu principal argumento era que a variação havia ficado abaixo da inflação no período. Mais tarde, ele declarou que voltar atrás poderia ser uma medida “populista”. Na última quarta, porém, apareceu em pronunciamento ao lado do governador Geraldo Alckmin (que, sobre igual reajuste nas passagens de trem e metrô, havia dito: “Não vou recuar”). Juntos, anunciaram que, a partir de segunda (24), a passagem dos coletivos volta a custar 3 reais e a da integração cai de 5 para 4,65 reais.
A decisão ocorreu após uma mobilização que não se via na cidade desde 1992, nas marchas contra o presidente Fernando Collor. Foi um crescendo. A série de protestos começou na quinta (6), com cerca de 2 000 pessoas. Engrossada com temas como a precariedade dos hospitais e os gastos da Copa do Mundo, chegou a reunir 65 000 pessoas na segunda (17), nos cálculos do instituto Datafolha. Aos jovens se juntaram mães e avós, em percursos por cartões-postais da metrópole como a Avenida Paulista e a Ponte Estaiada, chegando ao Palácio dos Bandeirantes. O último, sede do governo estadual, sofreu uma tentativa de invasão por parte de arruaceiros oportunistas, que conseguiram derrubar um portão, até que fossem repelidos pela polícia.
No dia seguinte, quando 50 000 estavam nas ruas, baderneiros incendiaram um furgão de reportagem da Rede Record, saquearam lojas e promoveram a depredação do Edifício Matarazzo, sede da prefeitura. Pierre Ramon de Oliveira, de 20 anos, estudante de arquitetura e um dos valentões da quebradeira na prefeitura, onde se escondia atrás de uma máscara, pediu desculpas em público após ser identificado. Na quinta, 100 000 pessoas, segundo a Polícia Militar, voltaram a tomar a Avenida Paulista, dessa vez para festejar a decisão do governo. Responsável por acender o estopim das manifestações, o Movimento Passe Livre (MPL) avisa que a vitória no recuo das tarifas não encerra sua campanha. Composto de cerca de quarenta integrantes, o MPL diz que continuará desfilando suas bandeiras por aí até que a passagem chegue ao inimaginável custo zero. A estudante Mayara Vivian, uma das líderes do grupo, transformada numa espécie de celebridade instantânea dos protestos, declarou que, caso um dia a gratuidade seja total, também não vai sossegar. “Nosso próximo objetivo é lutar pela reforma agrária e contra o latifúndio urbano.”
EM MARCHA LENTA
A redução no preço da tarifa dos ônibus da capital de 3,20 reais para 3 reais representa uma economia para os usuários. Quem faz um trajeto de ida e volta em 25 dias no mês, com integração por bilhete único, passará a gastar novamente 232,50 reais, em vez dos 250 reais da conta pós-aumento. O alívio no bolso, no entanto, está longe de representar uma solução mágica na rotina de milhões de paulistanos: é preciso desatar os vários nós que se acumularam no transporte público da capital nas últimas décadas. Veículos superlotados e escassos, atrasos, frota envelhecida, funcionários insatisfeitos, malha viária ineficiente e carência de corredores exclusivos são alguns dos principais problemas.
Como resultado disso, não é de espantar que 59% dos usuários reprovem o serviço, conforme pesquisa mais recente sobre o assunto realizada pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP). Detalhe: esse estudo é de 2011. O fato de não haver um acompanhamento frequente do índice de satisfação dos usuários, uma ferramenta básica para saber se o dinheiro público está sendo bem gasto e resolve o problema da população, mostra quanto o negócio ainda caminha em marcha lenta.
Até 1993, a responsável pelo serviço era a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), primeiro privatizada e depois substituída pela municipal SPTrans, criada pelo então prefeito Paulo Maluf. A falta de investimentos afugentou passageiros, que migraram para peruas clandestinas e automóveis particulares: o número mensal de viagens chegou a cair de 168 milhões para 92 milhões. Em 2003, com uma licitação de 12 bilhões de reais para um total de dez anos, a prefeitura cedeu a operação do sistema a cooperativas viárias.
Hoje, dezesseis grupos ou consórcios têm o direito de explorar as 1 350 linhas da cidade, mas cerca de metade se concentra nas mãos de apenas dois empresários, José Ruas Vaz e Belarmino Ascenção Marta. O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo, aliás, é Paulo Ruas, filho do primeiro. “Meu marido está no ramo há quarenta anos”, diz Adriana Saraiva, mulher de Joaquim Saraiva, um dos vários sócios do barão da catraca. “E o Ruas nem sabe dessas manifestações pela redução no valor da passagem, está de férias em Portugal.” A tranquilidade, no entanto, pode durar pouco. No próximo semestre será realizada uma licitação para um novo período de contrato. Ao dar o braço a torcer e baixar a tarifa, o município terá de aumentar consideravelmente o montante repassado a essas empresas: o subsídio acumulado até 2016 saltará de 6 bilhões para 8,6 bilhões de reais.
A redução dos 20 centavos na passagem, antes avaliada como “impossível” pelo prefeito Fernando Haddad, foi anunciada sem grandes explicações sobre a realidade das contas do município daqui para a frente. O Orçamento deste ano previu um subsídio de 1,25 bilhão. Com a tarifa menor, 200 milhões de reais terão de ser acrescentados aos gastos. Até quinta (20), a prefeitura não havia anunciado de onde sairia o dinheiro. Para agravar a situação, o Movimento Passe Livre tem como pauta número 1 a tarifa zero. “Esse pedido é um retrocesso”, afirma o consultor tributário Clóvis Panzarini, ex-coordenador da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Para ele, uma das únicas modalidades possíveis para que se obtenha a tarifa zero é estatizar o serviço e se submeter a conchavos políticos para escolher a diretoria da autarquia.
Além disso, a prefeitura teria de arcar com todas as despesas, o que significa comprometer 6 bilhões de reais por ano da arrecadação municipal. Para fechar a conta, teria de subir taxas como a do IPTU. “Se o governo aumentasse outros impostos, toda a população pagaria pelo transporte de ônibus mesmo sem utilizar o serviço”, completa o tributarista.
Independentemente do formato da gestão ou do progresso na quantidade de dinheiro investido, as mudanças dos últimos anos não se refletiram em conforto para o passageiro. Em 2005, 2,5 bilhões de pessoas já se espremiam nos 14 030 ônibus que compunham a frota da época. Sete anos depois, mais 400 milhões de passageiros passaram a utilizar o sistema, chegando a 2,9 bilhões de usuários. O número de veículos operacionais, porém, diminuiu para 13 970, sessenta a menos. Ou seja: enquanto o total de usuários aumentou 16%, a frota encolheu 0,4%. Isso ajuda a explicar o sufoco bem conhecido por qualquer pessoa que use o sistema, principalmente nos bairros periféricos da cidade. O aperto é de sete passageiros por metro quadrado. Em Londres, a média é de quatro. Santiago, no Chile, registra uma taxa de cinco.
As duas linhas com maior número de reclamações estão localizadas na Zona Leste: Terminal São Miguel-Terminal São Mateus, com 246 entre janeiro e maio deste ano, e Cidade Tiradentes-Terminal Princesa Isabel, com 211 no mesmo período. Nenhuma linha exclusiva da Zona Oeste — região que em geral apresenta ônibus mais vazios e novos e boa quantidade de faixas exclusivas à direita da via, o que torna a viagem mais rápida — aparece na lista das cinco que mais receberam denúncias de usuários.
Além de encolher, a frota paulistana envelheceu. Em 2008, tinha quatro anos e dois meses de uso, em média. Hoje, a maior parte dela soma cinco anos e seis meses. Em alguns casos, a situação é ainda mais drástica. “Tem muito ônibus fabricado nos anos 90”, conta o motorista Osmar Landin, do consórcio Leste 4, que atende bairros da Zona Leste como Cidade Tiradentes e São Mateus. “Por fora, a carcaça parece boa por causa da pintura, mas a parte mecânica está velha.” Os carros antigos e em uso contínuo multiplicam os problemas. “Pelo menos trinta automóveis ficam parados na garagem por questões técnicas”, relata o fiscal Jean Cleber Ribeiro, do mesmo consórcio. “Há dias em que uma linha começa com dezesseis veículos pela manhã, mas no fim da tarde tem apenas onze.”
O resultado são filas nos pontos de espera e ainda mais aperto. “Se houvesse pelo menos uma manutenção cuidadosa, quebraríamos menos vezes durante o trabalho”, conta o motorista José Leite, da linha Rio Pequeno-Terminal Princesa Isabel. Além de se preocupar com a saúde de seu veículo, ele ainda precisa encontrar uma fresta entre os passageiros para enxergar o retrovisor. “De tão cheio, fica impossível ver algo lá fora”, explica.
As condições de trabalho da categoria são tão precárias quanto o próprio sistema. “Não vejo meu salário há dois meses”, lamenta o cobrador José Antônio da Silva, da empresa Oak Tree Transportes Urbanos, que atende a Zona Oeste. Somadas as horas extras, Silva ganha 1 200 reais. Por causa dos atrasos no pagamento, os funcionários da Oak Tree entraram em greve no mês passado e paralisaram nove linhas. Cerca de 46 000 passageiros acabaram afetados.
Com 8,2 milhões de trajetos por dia, os deslocamentos de ônibus representam 81% do total de viagens realizadas no transporte público da capital. “Apesar de o trabalho pesado, ele é mais criticado pela população que o metrô e a CPTM”, compara Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP. Há vários motivos para essa situação. Mesmo lotado, o metrô raramente atrasa e mantém sua velocidade média de 31 quilômetros por hora, o dobro da registrada pelos ônibus em horário de pico.
A falta de informação também prejudica a avaliação. No ponto não são indicadas as linhas que passam por ali e suas possíveis baldeações, e dentro do ônibus nenhum dispositivo informa a próxima parada. “Tudo isso dá uma sensação de falta de cuidado com o passageiro, o que não ocorre com o metrô”, completa Néspoli. Organizar o sistema e cobrar produtividade das empresas são algumas das saídas. “Não adianta aumentar o subsídio e não fiscalizar os resultados, é muito dinheiro envolvido”, diz o consultor de engenharia de tráfego Horácio Figueira.
Outro ponto fundamental para a melhora é o investimento em corredores de ônibus. “Eles precisam de prioridade total no trânsito, os carros que se virem”, continua Figueira. A expectativa é que coletivos circulando em boa velocidade atraiam mais usuários de automóveis para o transporte público. “Só assim a questão do trânsito pode ser solucionada.”
Até 2016, a prefeitura promete criar 150 quilômetros de corredores exclusivos (hoje são 244 quilômetros) nas zonas Sul e Leste, em locais como as avenidas 23 de Maio, Bandeirantes e Celso Garcia. Destes, 70 quilômetros estão em licitação desde 2012 e outros 80 entrarão no processo neste ano. Nos próximos doze anos, o plano envolve 460 quilômetros. O modelo para o sistema é similar ao de Curitiba, geralmente com uma faixa segregada junto ao canteiro central da via, veículos de grande porte e pontos que funcionam como pequenos terminais fechados: a cobrança da passagem é realizada antes do embarque. O governo municipal também anunciou recentemente um aporte de 7 milhões de reais para ampliar a quantidade de faixas exclusivas em 150 quilômetros até o fim deste ano — 59 quilômetros já foram criados —, que se juntarão aos 210 quilômetros atuais. No começo do segundo semestre serão licitados catorze terminais.
Outro plano para acelerar os ônibus envolve uma rede de sinalização mais inteligente. Dos 6 156 cruzamentos com semáforo, há a promessa de que 4 800 serão modernizados de forma a controlar automaticamente o fluxo do tráfego. Na prática, o sistema manterá sinais abertos por mais tempo ao verificar que determinado corredor está com lentidão acima da desejável. Isso deve começar a funcionar no segundo semestre, com investimento de 550 milhões de reais.
Neste valor, está incluída a criação da Central Integrada de Mobilidade Urbana, que vai compartilhar dados da SPTrans e da CET. “O foco é priorizar o transporte público diante do particular”, declara o secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto. “Com esse pacote de medidas, a velocidade média dos coletivos subirá de 15 para 30 quilômetros por hora nos próximos quatro anos.” Mesmo se todos esses planos forem realmente cumpridos, eles devem apenas amenizar uma parte do sufoco dos passageiros. Nas últimas décadas, a cidade esteve nas mãos de diferentes correntes e partidos políticos. Depois de chegarem à prefeitura prometendo moralizar o transporte, acabar com o cartel dos chamados “barões das catracas” e melhorar a gestão do sistema, todos eles falharam na missão.
A conta do descaso apareceu em forma de protesto de milhares de pessoas nas ruas, que cobravam um serviço mais barato e eficiente. O ideal é que o gesto de recuo no aumento das tarifas sinalize também uma mudança do poder público na maneira de encarar esse problema.
Os principais problemas do transporte público da cidade
Frota antiga
A idade média da maioria dos veículos é de cinco anos e seis meses, mas há alguns em circulação fabricados nos anos 90
Funcionários insatisfeitos
Atrasos nos salários e greves fazem parte da rotina de cobradores e motoristas
Poucas empresas
Dezesseis grupos ou consórcios, muitos deles nas mãos de poucos sócios, estão no controle do sistema
Falta de um canal de avaliação
A SPTrans estuda realizar uma pesquisa de satisfação com os usuários, mas ainda não há uma previsão de data
Lotação
Nos 13 970 veículos da capital, o índice de ocupação é de sete passageiros por metro quadrado
Carência de corredores
Os 244 quilômetros que existem na malha viária não dão conta do bom fluxo dos carros