SP 471 anos: conheça sete moradores de diferentes bairros da cidade
Histórias de pessoas das diversas regiões de São Paulo, que vão de uma benzedeira a um mecânico de lambreta, de uma agricultora orgânica a um dono de botequim

Impossível comemorar o aniversário de São Paulo sem destacar personagens que fazem a maior metrópole do país melhor, mais divertida, curiosa, solidária, singular.
A seguir, estão reunidos sete moradores de diferentes bairros, donos de trajetórias fascinantes e carregadas de emoção.
Estão retratados uma sobrevivente do bombardeio de Hiroshima radicada na cidade há mais de seis décadas, uma benzedeira defensora de sua comunidade, uma agricultora dedicada ao cultivo de orgânicos em um sítio no perímetro urbano, um mecânico de antigas Vespas, um benfeitor social ocupado em distribuir refeições e produtos de higiene para pessoas em situação de rua, um dono de boteco raiz onde se podem saborear bolinhos memoráveis e premiados e o proprietário da mais antiga pizzaria paulistana e, muito provavelmente, do país.
São pessoas que fazem São Paulo mais humana e vibrante, ao mesmo tempo que simbolizam a mescla heterogênea de habitantes da capital.
Bruno Luis Leibholz – Ipiranga, Zona Sul
As noites pelas ruas do Ipiranga são menos solitárias graças a Bruno Luis Leibholz, 44.
O empresário paulistano fundou, há oito anos, o Instituto Independência, ONG cujo carro-chefe é o projeto Dando Sopa, que distribui semanalmente cerca de 250 sopas para pessoas em vulnerabilidade social.
Nos carros dos voluntários, às quintas, são levados por diferentes rotas também itens de higiene, roupas, água, chá e pão. “Descobrimos que o frio é cruel, a fome machuca demais, mas a solidão é muito pior. Ouvi muitas vezes deles que o mais importante é nunca deixar de ir, sentar no colchão sem nojo, conversar olho no olho e dar um abraço no final”, diz o idealizador.
Pai de dois filhos e dono da gráfica Nova Digital, localizada no bairro, Bruno estudou no Ipiranga desde pequeno e lá reside há quinze anos. “O trabalho voluntário mudou a minha vida. O meu sonho é me dedicar a isso integralmente”, diz.
O grupo, com setenta integrantes, também faz ações com crianças em ocupações, entrega cerca de sessenta cestas básicas por mês e já tirou oitenta pessoas das ruas — sem ajuda do governo nem de empresas.
Não existe segredo, a diferença pode ser um aperto de mão, um abraço ou uma conversa: basta tratar o outro como semelhante. “As pessoas nas ruas da nossa cidade viraram parte do cenário. São seres humanos, com as suas próprias histórias.” (Tomás Novaes)
Fábio Donato – Brás, Zona Leste
Numa pequena rua do Brás, um lugar resiste à passagem do tempo. Do lado de dentro da porta dupla de madeira, estilo bangue-bangue, Fábio Donato, 52, mantém a tradição familiar.

A Castelões, considerada a pizzaria mais antiga da cidade, completou 100 anos em outubro e chega a 2025 na terceira geração e com uma massa que fermenta 48 horas. O avô, Vicente, trabalhou lá como garçom e comprou a casa do filho do fundador, Ettore Siniscalchi, de origem italiana, na década de 1950.
Foi um precursor na difusão da cultura da pizza em São Paulo. A gestão continuou de pai para filho, passando por João até chegar em Fábio. “Minhas memórias mais antigas são de usar o espaço como um parque de diversões”, conta.
Das visitas ilustres, que vão de Gisele Bündchen aos Titãs, lembra-se com carinho de Ruth Cardoso e Luiz Gonzaga. Ele queria ser engenheiro, mas assumiu a administração com a piora da saúde do pai.
Como principais transformações, destaca a invasão imobiliária no bairro e a queda na qualidade dos produtos alimentícios. “A segurança já esteve pior, o que nos aflige é a falta de transporte”, comenta. Além de uma reforma, há projetos de expandir a marca, abrir uma sorveteria e criar uma iniciativa social. (Mattheus Goto)
Tia Eliza – Bela Vista, Centro
Em uma casa de dois andares na Bela Vista, a benzedeira Maria Eliza Pereira de Luca, 68, toca sua capela, que completa 25 anos em dezembro.

A carioca mudou-se em 1995 para a capital paulista trazendo uma estátua de 1,80 metro de Santo Antônio de Categeró. “A minha missão vem desde criança. Nasce com a gente, é a ancestralidade”, revela.
Cinco anos após a chegada, a benzedeira montou a Capela de Santo Antônio de Categeró. Desde então, dezenas já buscaram o auxílio espiritual de Tia Eliza, como é conhecida, incluindo celebridades como Nair Bello (1931-2007) e o rabino Henry Sobel (1944-2019).
“É uma capelinha ecumênica. Recebo todas as religiões, porque ninguém é melhor do que ninguém”, diz a benzedeira, cujo espaço tem estátuas de Xangô, Iansã, Santa Sara Kali, a santa cigana, e santos católicos.
Além de bênçãos, missas e de integrar o roteiro de afroturismo da região organizado pelo projeto Negros do Bixiga, ela também atua como apoio social no bairro. “Toda hora vem alguém pedir cesta básica e gás. Então, mobilizo as pessoas no grupo da capela”, diz ela, que mantém o templo com o dinheiro da aposentadoria e de doações.
Com o IPTU em atraso e batendo de frente com o mercado imobiliário, ela busca regularizar a capela como centro religioso para obter a isenção do imposto. “Tento essa conversa com a prefeitura, porque também quero criar um centro cultural infantil com aulas de dança e música”, sonha. (Luana Machado)
Junko Watanabe – Vila Clementino, Zona Sul
A jornada da imigrante Junko Watanabe, 82, até São Paulo foi movida pela esperança de uma vida melhor.

Nascida em Hiroshima, ela tinha apenas 2 anos quando a bomba atômica devastou sua cidade, em 1945. Embora não tenha sido diretamente atingida pela explosão, sofreu as consequências da chuva negra. “Carrego a esperança de que nunca mais vivamos algo semelhante”, diz.
Aos 19 anos, ao ver um cartaz sobre emigração para o Brasil, decidiu embarcar. Após 45 dias de viagem, chegou a Santos, onde encontrou seu futuro marido. “A adaptação foi difícil no começo, a língua e a cultura eram muito diferentes”, relembra.
Na capital desde 1967, Junko, uma das 59 sobreviventes da bomba que vivem no país, é cofundadora e diretora da Associação Hibakusha Brasil pela Paz, criada em 1984 para apoiar os atingidos que moram fora do Japão.
“Embora as coisas tenham melhorado, não estamos satisfeitos”, diz, destacando a discriminação ainda enfrentada pelas vítimas e seus descendentes.
Seu trabalho à frente da Associação a levou, em dezembro passado, à cerimônia do Prêmio Nobel da Paz, em Oslo, Noruega, a convite da vencedora, a organização japonesa de luta contra armas nucleares, Nihon Hidankyo.
Junko acredita em um mundo mais pacífico, livre das cicatrizes da guerra nuclear. Moradora da Vila Clementino, ela observa a transformação da cidade com nostalgia. “Antes, era muito tranquilo aqui, mas, agora, com tantos prédios, não consigo mais ver a paisagem como antes”, lamenta. (Daniela Martinho)
Luiz Eduardo Fernandes – Mandaqui, Zona Norte
Cria do Mandaqui, Luiz Eduardo Fernandes, 59, cresceu dentro do Bar do Luiz Fernandes, grande representante da botecagem raiz.

Famosa pelos bolinhos, a casa nasceu em 1970 e tomou o lugar de uma mercearia da família, que “quebrou” com a chegada de um supermercado na vizinhança.
No princípio, o bar era tocado pela avó do anfitrião, Idalina, e pelos pais dele, Luiz e Idalina (também), casal que deu expediente ali até 2019. Edu, que só estudou até o ensino fundamental, passou a ajudá-los ainda jovenzinho e, hoje, toma com dedicação as rédeas do local com as filhas Carol e Clara.
No início da década de 2000, o lugar começou a aparecer em publicações e a ganhar concursos de petiscos, o que alavancou a clientela, de Mandaqui e do mundo. De um pequeno imóvel, hoje o bar ocupa cinco. “É a presença do dono, é o carinho, é chamar a pessoa pelo nome”, elenca o empresário ao explicar o sucesso.
Mesmo num dia em que a casa não abre, às terças ele dá um pulo para preparar batidas da semana. “Quero ir nesse ritmo por mais, no mínimo, uns quinze aninhos”, confessa. (Saulo Yassuda)
Marcelo China – Mooca, Zona Leste
No quintal de Marcelo Medeiros, 50, uma coleção de Vespas aguarda na fila para receber o seu talento.

Nascido e criado na Mooca, onde vive até hoje, o mecânico, mais conhecido como China, dedica seu tempo a restaurar scooters italianas antigas, aquelas fabricadas a partir dos anos 1940 pela marca Piaggio.
“Eu não gosto do dono, gosto da moto”, brinca, sorrindo com seus implantes de ferro. “Os dentes eu perdi por briga, bruxismo e estresse”, resume.
China já foi um pouco de tudo: vendedor de sacos de lixo, metalúrgico e chefe bartender do extinto clube Vegas, na Rua Augusta. “Depois virei DJ residente e saía com a Vespa para fazer a divulgação à tarde: vip pra todo mundo!”
Foi nessa época, no início dos anos 2000, que começou a praticar alguns reparos com a ajuda de um amigo — ou sozinho mesmo. “Aqui em São Paulo, hoje em dia, tem no máximo quatro mecânicos que mexem com esse modelo”, diz.
“Por isso que agora eu passo um pouco do meu conhecimento pros moleques. Gosto das máquinas na rua.” Sua paixão está marcada até nas costas, com a tatuagem (feita em dez longas sessões) da sua própria Vespa, uma edição verde de 1977.
Nas mãos do China, elas saem revigoradas e com o motor bem mais potente que o da versão original. “Eu dou uma tunada pra elas ficarem espertas.” (Humberto Abdo)
Valéria Macoratti – Parelheiros, Zona Sul
“É engraçado, nasci no último bairro da Zona Leste e encontrei minha razão de viver no último da Zona Sul”, conta Valéria Macoratti, 56, agricultora natural de Guaianases e presidente da Cooperapas (Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo), em Parelheiros, onde reside.

Sua trajetória no campo começou em 2007, quando adquiriu uma chácara para cuidar de quinze cães adotados.
Dois anos depois, incentivada por um amigo, fez um curso de agricultura orgânica, e floresceu a paixão pelo cultivo de frutas como cambuci, uvaia, pitanga e de plantas como ora-pro-nóbis. Tudo no modelo SAF (sistema agroflorestal), prática sustentável que integra a lavoura com o plantio de árvores nativas.
Valéria participou da fundação da única cooperativa de produção orgânica da capital, em 2011, e, desde então, assumiu a presidência por dois mandatos; agora, retorna para mais uma gestão.
Junto com outras mulheres, busca estabelecer novos parceiros e valorizar o trabalho dos produtores da região. (Larissa Zapata)
Magno Duarte – Parelheiros, Zona Sul
Também no extremo da Zona Sul, em Parelheiros, o músico e educador Magno Duarte, 42, toca um coletivo voltado para a cultura popular nordestina na periferia. O SertãoPerifa começou em 2009, a partir do grupo de forró pé de serra Vila do Sossego formado por Magno Duarte, Claudiney Nonato e Tarciso Cardoso. “O coletivo surge muito pelas influências de nossos pais, por observar a saudade das pessoas do lugar delas. Aqui nesse território existe uma lembrança do jeito rural, mais tranquilo de uma vida nos sertões brasileiros”, compartilha Magno, carioca de família baiana.

Desde então, a iniciativa, com o apoio de políticas públicas como o programa VAI e a Lei Paulo Gustavo, realiza eventos culturais de rua em Parelheiros, experimentações musicais e de literatura de cordel em escolas, além de possuir um espaço para oficinas e gravações musicais. “O Estúdio Popular é pequeno mas nós executamos muitas coisas aqui. Acolhemos grupos de vários gêneros musicais das periferias, sempre priorizando pessoas do território, claro”, explica Duarte. Neste ano, o calendário de agendamento para as gravações tem início em fevereiro, quando o SertãoPerifa retoma as atividades.
Nas escolas públicas, o coletivo realizou diversas “ocupações” em 2024, com aulas de diversos instrumentos (de flauta doce a preaca, instrumento em formato de flecha popular em festas tradicionais pernambucanas), intervenções poéticas com cordel e o baile de forró.
Com o baile, o coletivo circula pela cidade na Kombi Baile, levando o forró para as ruas. “A cultura popular das periferias não tá na indústria cultural, os artistas resistem. Por isso, procuramos levar esse impacto estético com diversas linguagens para a rua”, diz Magno Duarte. (Luana Machado) ■
Publicado em VEJA São Paulo de 24 de janeiro de 2025, edição nº 2928