Poucos minutos após o barco de 8 pés movido a motor de popa avançar da barragem da Penha, na Zona Leste, em direção ao centro, várias sensações começam a se suceder. Não é apenas triste e repugnante ver o Tietê de perto. É também vergonhoso, revoltante e, acima de tudo, desolador. Paira no ar um cheiro fétido de ocre, enquanto a água escura se agita, lambendo as margens de pedras. No mar de lixo espalhado há muitas garrafas PET, pneus, capacetes e alguns objetos maiores, como sofás e um aparelho de TV colocado em frente a uma banqueta improvisada nas redondezas da Ponte Júlio de Mesquita Neto, lembrando uma sala de estar pós-hecatombe atômica.
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Apesar da proximidade, o tráfego pesado nas marginais parece uma miragem distante. O barulho infernal dos carros chega ali na forma de um pequeno burburinho sonoro, e a tranquilidade relativa só termina mesmo, de tempos em tempos, com a passagem de grandes barcaças. Elas carregam tratores que mergulham seus braços equipados com garras no fundo do rio, arrancando porções de lodo no trabalho de desassoreamento do leito para evitar enchentes no período das cheias. No último dia 12, no trecho de 24 quilômetros percorrido pela reportagem de VEJA SÃO PAULO, os efeitos da estiagem do inverno eram visíveis, com vários pontos intransitáveis devido ao baixo nível da corrente.
Parte da vida que existe por ali é atraída pela sujeira. Grupos de urubus rondam em busca de alimento. Outras espécies acabaram se adaptando ao ambiente inóspito, como os peixes. Sim, por incrível que pareça, eles ainda existem no local. São bagres africanos capazes de sobreviver com nível próximo a zero de oxigênio. Quase tão surpreendente quanto isso é a família de três capivaras avistada nas proximidades do Cebolão. É um mistério como chegaram lá. Provavelmente, depois de despejados de áreas verdes invadidas pela construção civil, os animais caminharam através da rede de galerias de esgoto tentando achar comida.
Um sentido semelhante de desamparo e desespero moveu uma série de sem-teto para debaixo de várias pontes, onde se abrigam em tendas improvisadas de plástico. Nada, porém, supera o nível de degradação do personagem que dorme numa boca de lobo desativada na região da Ponte Aricanduva. Uma lona de caminhão presa por pedras se transformou no telhado da “casa”. “Estou aqui há dois meses e encontrei esse lugar procurando sucata para vender em ferro-velho”, afirmou o desempregado Paulo Luís, de 44 anos, cambaleando enquanto se ajeitava em meio ao amontoado de caixas com pertences pessoais, uma quentinha com restos de arroz e uma garrafa de 2 litros de Coca-Cola com cachaça pela metade. Será que ele não se incomoda com o cheiro, com a presença de bichos ou com a água, que pode subir a qualquer momento? “Não tenho medo de nada, e ninguém aparece para me amolar”, garantiu. “Descanso sossegado, graças a Deus.”
Essa jornada na metrópole é capaz de acabar com o ânimo da mais otimista das pessoas com relação ao futuro do ecossistema, tamanha a ruína e a destruição. Além do questionamento sobre se realmente um dia será possível recuperá-lo, a viagem suscita outra pergunta pertinente: como o rio foi capaz de sobreviver?
Ao longo das últimas décadas, ele sofreu toda sorte de agressão. Perdeu o traçado original sinuoso, teve as margens cimentadas e recebeu o veneno da carga industrial e do esgoto da cidade, despejados no seu leito durante muito tempo sem nenhum tratamento. Algumas de suas características o tornam ainda mais frágil diante desse tipo de ataque. O “caudal volumoso” (significado de seu nome em tupi) nasce, em filetes tímidos, no município de Salesópolis, a 96 quilômetros da capital. Ou seja, mal começam a engatinhar, as águas límpidas enfrentam o calvário de passar por um dos maiores conglomerados humanos do mundo — no caso, São Paulo e seus 11 milhões de habitantes. Na chegada, o rio tem a agravante de não possuir força suficiente para dispersar naturalmente a carga descomunal de poluentes e praticamente morre sufocado. No curso de 65 quilômetros pela capital, a profundidade média é de apenas 3 metros. “São desafios enormes para uma tentativa de despoluição”, afirma Malu Ribeiro, coordenadora do programa de águas da ONG Fundação SOS Mata Atlântica. “Por isso, o trabalho exige persistência.”
Há vinte anos, a entidade encabeçou o movimento, lançado pela Rádio Eldorado, que reuniu 1,2 milhão de assinaturas pedindo ações públicas para a revitalização. O desejo começou a se materializar em 1992, quando teve início o projeto tocado pela Sabesp com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para criar uma rede de saneamento básico capaz de livrar o rio e seus afluentes, como o Pinheiros, da carga tóxica despejada no leito.
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Essa gigantesca tarefa se encontra atualmente na terceira fase e deve se alongar até o fim de 2020, consumindo 8,1 bilhões de reais. Quase um terço desse montante já foi gasto em obras como a construção de três grandes estações de tratamento e a instalação de 3.450 quilômetros de tubulação para conectar a elas as redes domésticas de esgoto. “Se nada tivesse sido feito nos últimos anos, teríamos atualmente um odor impossível de aguentar e a mancha de poluição ultrapassaria 300 quilômetros”, explica Dilma Pena, presidente da Sabesp. Nos próximos anos, outras nove estações de tratamento e mais 1.850 quilômetros de tubulação devem tomar forma. O objetivo é aumentar para 93% o índice de esgoto tratado na cidade. “Sem o lixo, o Tietê vai voltar a respirar”, prevê Dilma.
Algumas melhoras foram obtidas nos últimos tempos. Na capital, esse processo de evolução é menos perceptível, conforme mostram os monitoramentos realizados pela Cetesb. Com base neles, a companhia elabora o Índice de Qualidade das Águas (IQA), que leva em conta nove variáveis, entre elas as quantidades de oxigênio dissolvido e de nutrientes, além da turbidez do líquido.
Na última década, o IQA da Ponte das Bandeiras evoluiu de 16 para 20, nota que mudou a classificação do lugar de “péssimo” para “ruim” (para ser considerado “bom”, precisaria alcançar 52 pontos). No mesmo período, a Ponte dos Remédios foi de 15 para 19, resultado insuficiente para tirá-la da faixa de “péssimo”. A Ponte Aricanduva teve apenas uma medição, no ano passado, registrando a marca de 22, o equivalente a “ruim”. Ou seja, o caso continua gravíssimo, mas poderia estar fora de controle, e dos três espaços aferidos dois registraram um avanço discreto. “A situação deixou de piorar, algo importante considerando-se que a população continua crescendo”, diz Nelson Menegon Júnior, gerente da divisão de qualidade das águas e do solo da Cetesb.
Os dados mais animadores aparecem quando se olha para o interior. Com seus 1.100 quilômetros de extensão, o Tietê nasce na Serra do Mar, corta o centro do estado e deságua no Rio Paraná, na divisa com Mato Grosso do Sul. No início dos anos 90, a sujeira da capital era tamanha que produzia uma mancha de poluição cujos efeitos se arrastavam até o município de Barra Bonita, a 280 quilômetros de distância. Segundo medições mais recentes, o problema regrediu em quase 70%. Com isso, várias localidades se viram livres de uma série de problemas.
Uma das cidades banhadas pelo rio, a 145 quilômetros de São Paulo, é a de Tietê, assim batizada em homenagem a ele, por onde navegavam os bandeirantes que desbravavam o sertão e lhe deram o nome. “No fim da década de 80, o cenário por aqui ficou crítico: vinha muito lixo boiando, e os peixes começaram a sumir”, afirma Antonio Reinaldo Polezzi, presidente do Grupo Ecológico de Tietê, uma ONG da região. Nos últimos oito anos, porém, a condição começou a ser revertida, e os sinais de limpeza apareceram. Um sintoma disso é a presença nas redondezas de alguns ranchos de pesca, construídos ou reativados. Atualmente, um fim de semana por lá termina com um saldo de quilos de dourados e pintados pendurados na ponta dos anzóis. “A vida voltou ao nosso pedaço”, comemora Polezzi, que periodicamente promove passeios com um catamarã feito de material reciclado, como carcaça de chaminé.
Não muito distante dali, no município de Anhembi, existe uma percepção semelhante. “Nos lugares mais rasos, dá para ver hoje o fundo”, diz Daniela Nogueira, presidente da colônia de pescadores da cidade, com cerca de 500 filiados. Na direção contrária, próxima à cabeceira, na Serra do Mar, um estudo conduzido entre 2008 e 2009 pelos pesquisadores Alexandre Marceniuk e Alexandre Hilsdorf, da Universidade de Mogi das Cruzes, identificou 53 espécies de peixe na região, incluindo quatro novas, entre elas o cará-verde. “Apesar da proximidade com São Paulo, há por ali uma fauna significativa”, afirma Hilsdorf. “Isso mostra que nada é irrecuperável.”
Segundo as projeções dos técnicos da Sabesp, boa parte do Tietê terá uma condição aceitável em 2020. Na capital, a tendência é que no trecho urbano, compreendido entre a foz do Córrego Três Pontes, no limite com Itaquaquecetuba, e a barragem Edgard de Souza, no limite com Osasco, o rio não apresente mais odor desagradável e volte a abrigar alguma vida aquática, além dos atuais campeões de resistência, os tais bagres africanos.
Esse cenário realista exclui, infelizmente, a possibilidade de vê-lo retomar o frescor que apresentava no início do século XX, quando era palco de grandes competições esportivas, como maratonas de natação e regatas de remo (a última prova do tipo foi disputada em 1972, já em águas bastante contaminadas). “Voltar a mergulhar, nem pensar”, diz Menegon, da Cetesb. “Mas os paulistas podem sonhar, sim, em contemplar nos próximos anos um ambiente menos turvo e com uma coloração muito mais agradável.”
Chegar a esse ponto, no entanto, vai exigir mais do que a continuidade das grandes obras de infraestrutura. Favelas e ocupações irregulares continuam crescendo ao longo do curso por falta de fiscalização. Cerca de 30% da sujeira é provocada pela chamada poluição difusa, carregada pelas chuvas. Isso inclui uma lista quase infindável de lixo: fuligem, resíduos de pneus, fezes de animais, restos de vegetação e material de construção, entre outras coisas. O que não muda muito é a fonte responsável pela maior parte do problema: os porcalhões, que não veem nenhum problema em atirar uma lata de cerveja no meio da rua ou em acondicionar de qualquer forma o lixo na calçada. Nesse caso, não há saneamento básico que resolva. A salvação passa pela melhoria da educação ambiental das pessoas.
O encarregado de manutenção Marcus Peres, da Tiisa, uma das empresas que cuidam do desassoreamento, percorre as águas da capital diariamente e é testemunha do estrago. “Quando começa um temporal, desce de tudo na correnteza, é uma tristeza”, lamenta. “Já achei sofá, peças de carro, carcaças de moto e até defunto por aqui.” É esse tipo de coisa que torna deprimente uma jornada pelo rio que pertence a todos nós e às próximas gerações. Durante muitas décadas, voltamos as costas para ele, transformando-o no maior símbolo dos efeitos nefastos do crescimento desenfreado de São Paulo. O despertar da necessidade de reverter o quadro aconteceu ainda a tempo de evitar o desastre. Não podemos desistir agora.
OPERAÇÃO LIMPEZA
A situação atual e os avanços esperados até 2020 no programa de despoluição
ÍNDICE:
Vermelho: Ausência de oxigênio
Amarelo: Ausência de odor e presença de alguma vida aquática
Verde: Ausência de odor e presença de peixes
O rio
Nascente: Salesópolis, no interior de São Paulo, a 96 quilômetros da capital
Extensão: 1.100 quilômetros
Tamanho na capital: 65 quilômetros
Foz: Itapura, na divisa com Mato Grosso do Sul
Investimentos
1,6 bilhão de dólares entre 1992 e 2011
Mais 2,9 bilhões de dólares até 2015
Mancha de poluiçãoNos anos 90, alastrava-se até Barra Bonita, a 280 quilômetros da capital. O problema recuou em 180 quilômetros e chega hoje até o município de Salto
Obras
■ Construção de doze estações de tratamento até 2015
■ Instalação de 5.300 quilômetros de tubos de coleta na cidade e nos municípios vizinhos
Porcentual de coleta de esgoto
1991: 63%
Hoje: 84%
2015: 87%
2020: 95%
Porcentual de esgoto tratado
1991: 20%
Hoje: 70%
2015: 84%
2020: 93%
Fonte: Sabesp