Quadrinistas paulistanos fazem sucesso com obras que retratam a capital
Movimento independente cresce utilizando São Paulo como seu grande pano de fundo arquitetônico e social
É inegável que as culturas nerd e pop têm ganhado mais espaço na cidade, com destaque para as histórias em quadrinhos. Em 2018, a Comic Con Experience (CCXP), evento que reúne fãs e produtores de HQs, games, filmes e séries de TV, levou mais de 250 000 pessoas ao São Paulo Expo. E a exposição Quadrinhos, com uma retrospectiva histórica do segmento, ficou em cartaz no Museu da Imagem e do Som (MIS) por seis meses.
Apesar disso, muitas vezes o que se vê nas narrativas está longe da realidade dos jovens que as consomem. Devido à falta de incentivo às produções locais, temas como periferia e negritude costumam dar lugar a cenários americanos como as ruas de Nova York e histórias de super-heróis como o Homem-Aranha. Mas, aos poucos, essa barreira está sendo ultrapassada.
A Fábrica de Cultura do Capão Redondo recebeu em março a PerifaCon, versão marginal — no sentido geográfico — da Comic Con. Mais de 4 000 presentes, além de dezenas de palestrantes e expositores, tornaram o evento um divisor de águas. “Foi o encontro de fãs que não conseguem pagar a CCXP com artistas que também não tinham dinheiro para expor lá”, diz Igor Nogueira, produtor da PerifaCon.
A iniciativa deu espaço a novos artistas, como Lucas Andrade e Diego Torres, amigos de Jardim Iporanga, na Zona Sul de São Paulo, e parceiros na concepção do quadrinho Kauira Dorme. Eles se conheceram na Escola Estadual Professor José Vieira de Moraes e dividiam as mesmas angústias: o trabalho durante o dia e o estudo à noite, a falta de horizontes na periferia e as sempre presentes violência e desigualdade. Beberam desses questionamentos para dar vida à personagem-título da obra.
Kauira é uma jovem que vive em uma tribo juntamente com deuses que regem o universo, mas não consegue encontrar sua vocação. Acorda então na periferia de São Paulo, com mais dúvidas ainda. Precisa equilibrar estudo e trabalho, longas viagens no transporte público, ajudar a mãe em casa e fugir do pai alcoólatra. A história se confunde com a dos jovens quadrinistas que a produziram. “A minha realidade não era compatível com o que eu queria para a minha vida”, conta Andrade.
Torres roteirizou o projeto e o parceiro fez a ilustração e a diagramação. Eles levaram quase dois anos no processo. Quando tinham o produto pronto, veio a parte mais difícil: imprimir. Não tinham o dinheiro para bancar os livros. Entraram então, no início de 2019, em uma plataforma de financiamento coletivo, algo que vem se tornando cada vez mais comum no meio. Pleitearam 4 000 reais e conseguiram quase 10 000 reais. Produziram 400 cópias da obra, que foi lançada na PerifaCon e se esgotou rapidamente. Agora almejam uma segunda edição para Kauira.
Marília Marz, outra expoente da nova geração de quadrinistas paulistanos, encontrou-se no mundo das HQs bem longe daqui. Moradora do Jaguaré, na Zona Oeste, durante a adolescência, a jovem cursava arquitetura quando conseguiu uma bolsa no Ciência sem Fronteiras e se mudou para os Estados Unidos. Estudou na Universidade do Oregon, que possui disciplinas na área, e, paralelamente a isso, passou por um processo de aceitação da sua identidade negra. “Palavras como mulata e morena não existem lá”, explica.
Voltou para o Brasil com bagagem técnica e social, e decidiu que produziria uma HQ como trabalho de conclusão de curso. Daí surgiu Indivisível. O pano de fundo escolhido foi o bairro da Liberdade, que hoje concentra a imigração japonesa, mas é um local marcado historicamente pelo sofrimento de escravos. “Meu grande objetivo era fazer um contraponto entre o bairro atual e o bairro do passado”, diz. A obra mostra a coexistência das duas realidades no mesmo espaço geográfico. Seu livro foi impresso pelo MIS em 2018 e teve todas as cópias vendidas. Por meio de uma plataforma de financiamento coletivo, Marília arrecadou 15 000 reais neste ano e lançou nova edição.
Esse processo de autorreconhecimento tem inspiração certeira. “Os quadrinhos eram vistos como algo infantilizado por aqui. Isso mudou com Laerte e Angeli, que olharam para o povo da periferia. Marcelo D’Salete bebe dessa produção”, diz o professor Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, sobre o quadrinista mais influente do Brasil no momento.
D’Salete cresceu em São Matheus, na Zona Leste, e sua relação com quadrinhos tinha forte influência americana. Sua motivação para falar de São Paulo veio do contato com a cultura hip-hop. “Notei que muito do que lia de HQs não tinha a ver com o que eu percebia na música — rap, samba — e na literatura”, afirma. Somou isso com o insistente preconceito que sofria ao visitar o centro expandido e mergulhou no tema.
Primeiro, abordou uma São Paulo que exclui sua população empobrecida nas obras Noite Luz (2008) e Encruzilhada (2011). “Quis criar um canal para discutir essa questão”, diz. Seus dois últimos livros, Cumbe (2014) e Angola Janga (2017), voltam no tempo para contar histórias negras esquecidas. Apesar da plataforma diferente, considera que rappers como Racionais MC’s, RZO e Xis o ajudaram a construir uma identidade.
Alexandre De Maio, jornalista e quadrinista, também enxerga no hip-hop uma referência. O paulistano escreveu e editou, por mais de dez anos, a revista Rap Brasil, que promovia o encontro de matérias jornalísticas tradicionais e HQs sobre a cultura de rua daqui. Quando o mercado das bancas perdeu alcance, De Maio migrou para os livros e para o jornalismo em quadrinhos.
Seu último lançamento, Raul, de 2018, versa sobre um moleque paulistano que aplicava golpes de cartão dentro de agências bancárias. Aos poucos, o personagem ganha gosto por samba e hip-hop, tenta se tornar um músico e enfrenta problemas no seu novo trabalho.“Sempre tive o sonho de colocar São Paulo no papel. A cidade tem esse clima meio sombrio, meio caótico, mas ao mesmo tempo respira arte”, afirma.
CAOS E TECNOLOGIA
Alexandre De Maio representou a Avenida Paulista no livro Raul. O quadrinista escreve e desenha sobre São Paulo há duas décadas. “É caótica. Dá para retratar desde as coisas mais avançadas de tecnologia até pessoas passando fome no mesmo quadro. Para mim, a cidade tem essa carga total.”
MAPA DE DUAS ERAS
A arquiteta e quadrinista Marília Marz retratou a região da Liberdade em Indivisível. Na obra, a jovem paulistana mostra o bairro nos dias de hoje e no século XIX, época em que a região esteve no epicentro do sofrimento de escravos em São Paulo. “O motivo de ter muitos escravos no bairro é porque, além de abrigar inúmeras fazendas onde eles eram mantidos, também ficava ali o Largo da Forca e o primeiro cemitério público de São Paulo, destinado à escravos e pessoas que viviam à margem da sociedade. Era um local de morte, basicamente”, diz.
A Igreja Santa Cruz dos Enforcados, a Capela dos Aflitos e a Praça da Liberdade foram as principais referências estéticas, mas também há detalhes como os clássicos postes orientais. A capa e a contracapa são idênticas, apenas invertidas, e cada lado traz uma narrativa que se encontra com a outra na parte central do livro.
PREMIAÇÃO COM CENÁRIOS URBANOS
Vencedor do Prêmio Eisner, o maior reconhecimento mundial do mercado de quadrinhos, Marcelo D’Salete tem nos cenários de São Paulo e na negritude suas grandes ferramentas de trabalho. “Encruzilhada e Noite Luz são livros bem urbanos. Eles falam sobre marcas nas ruas, pichação, grafite, juventude negra periférica.”
MULTIDÃO NO METRÔ
Diego Torres e Lucas Andrade representaram a Estação Pinheiros do metrô em Kaiura Dorme, em que mostram ambientes da cidade. “Cores escuras e chapadas, traços rasgados e multidões como uma enxurrada formam o pano de fundo.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 10 de julho de 2019, edição nº 2642.