Exclusivo: dispara o número de PMs que pedem para sair da corporação
Ex-agentes e especialistas relatam problemas de saúde mental, sobrecarga e um ambiente propício ao adoecimento
No dia 10 de maio, a santista Brunna Navas, 32, ex-soldado da Polícia Militar de São Paulo, se sentou no parapeito da varanda de casa, no 7º andar de um edifício da Praia Grande, na Baixada Santista, com as pernas para fora. Mais cedo, tinha apresentado um pedido de afastamento de 120 dias da corporação, devido a uma piora no quadro de saúde mental — era diagnosticada com depressão e fobia social. A solicitação, ela afirma, foi negada. À noite, veio a crise e o quase-suicídio, prevenido com a ajuda do companheiro, Bruno Brasil, 33, outro ex-soldado (leia a história do casal ao fim da reportagem). Nos meses seguintes, ambos pediram exoneração — ou seja, abriram mão do emprego e deixaram a PM-SP. Entravam assim para um grupo que disparou de tamanho nos últimos anos, como revelam dados da Vejinha obtidos via Lei de Acesso à Informação.
+ Polícia localiza imóvel na Zona Oeste com 33 pessoas que atuavam como ‘mulas’
A reportagem reuniu informações sobre as três principais maneiras de sair da PM: exonerações (uma escolha do policial), demissões e expulsões (nos dois casos, uma decisão da corporação). Embora os números de expulsos e demitidos revelem bastidores da tropa — ao mostrar, por exemplo, que os alvos das punições são quase sempre as baixas patentes —, eles não variaram significativamente na última década. O mesmo não se pode dizer daqueles que “pediram para sair” — expressão popularizada pelo personagem Capitão Nascimento, no filme Tropa de Elite. Em 2017, a PM-SP registrou 296 exonerações. Após anos de subida consistente, o número chegou a 731 em 2022, uma alta de 146%. Em 2023, até 9 de novembro, foram 614 pedidos, quase dois por dia. A debandada expõe um cenário de sobrecarga de trabalho, pressões e pouca atenção à saúde mental.
A taxa de suicídios, tema que permeia o relato de Brunna e Bruno, se tornou significativamente alta entre os policiais. Na média do estado, houve cinco casos a cada 100 000 habitantes em 2018. No mesmo ano, a PM teve vinte mortes do tipo, ou 24 a cada 100 000 agentes, quase cinco vezes a taxa vista fora dos quartéis. Em 2023, o número deve ser ainda maior. “Neste ano, contabilizamos ao menos 38 casos. Temos praticamente um suicídio por semana na PM”, diz o deputado Major Mecca (PL), 55, da bancada militar da Assembleia Legislativa de SP.
+ Juíza aceita denúncia contra homem que agrediu irmã de ministro Zanin
Os especialistas convergem nas explicações para o fenômeno. “Temos uma tropa adoecida e, em muitos aspectos, desencorajada a pedir ajuda”, afirma Claudio Silva, 47, ouvidor das polícias paulistas. “Os policiais temem requisitar afastamento por saúde mental porque têm medo de perder a arma e as promoções, além de serem taxados de covardes e fracos. Sofrem bullying dos pares e, principalmente, dos superiores”, completa Alexandrina Meleiro, 69, psiquiatra do Hospital das Clínicas que atende pacientes militares. “Já ouvi várias vezes questionamentos do tipo: mas você passa maquiagem e diz que tem depressão?”, relata Brunna. “O risco de suicídio é alto, porque o policial tem fácil acesso a armas de fogo”, conclui a socióloga Dayse Miranda, 50, presidente do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio, que participa de estudos sobre o tema na PM.
A PM possui um Sistema de Saúde Mental, que oferece atendimento psicológico aos oficiais e praças. São, porém, apenas 103 psicólogos no estado (ou um para cada 805 PMs). Em agosto, entrou no ar um serviço on-line de consultas. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, a previsão é de quase 3 000 atendimentos mensais, tanto a militares da ativa como a veteranos. “Desde 2003, existe o Programa de Prevenção a Manifestações Suicidas. A SSP também realiza periodicamente seminários, palestras e aulas e disponibiliza cartilhas nas academias que buscam levar aos profissionais informações de caráter preventivo”, diz a Secretaria.
Além dos relatados bullyings e coações, outra reclamação frequente diz respeito a alegada sobrecarga de trabalho. O fenômeno estaria ligado a uma queda recente no número de PMs. A tropa paulista tem atualmente por volta de 83 000 policiais, segundo a ouvidoria. “Uma década atrás, o efetivo passava dos 90 000. Estão todos sobrecarregados”, afirma Mecca. A SSP alega que tem quatro editais abertos para preencher 8 300 vagas. “Em junho foi aprovado um reajuste médio de mais de 20% (nos salários) para aumentar a atratividade no início de carreira (um soldado passou a ganhar 4 066 reais)”, diz a pasta. “São profissionais com escalas exaustivas e que, por conta dos ‘bicos’, quase não têm períodos de descanso e se sentem alertas o tempo todo”, diz a psicóloga Juliana Martins, 46, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O “estado de alerta”, por vezes, significa se sentir constantemente entre a vida e a morte. “Se está no trabalho, o PM corre risco. Se está de folga, também. Sem o apoio dos superiores, entra facilmente em sintomas depressivos. Muitos pedem baixa por isso”, diz Alexandrina.
A disparada de pedidos de exoneração — feitos por PMs que, vale lembrar, tinham encarado provas e concursos para conseguir o emprego com estabilidade — é acompanhada de uma onda de queixas nas redes sociais, onde perfis de ex-PMs compartilham relatos anônimos de policiais da ativa. O ex-soldado Luiz Paulo Madalhano, 33, tem milhares de seguidores digitais (veja mais ao fim da reportagem). Antes de pedir exoneração, em março de 2022, publicava vídeos de perseguições, prisões e outras cenas do cotidiano. Passou a ser alvo de investigações internas — em 2021, a PM publicou uma diretriz que vetou o compartilhamento de vídeos de ocorrências e proibiu que os policiais se identificassem nas redes. Hoje assessor parlamentar em São José dos Campos, Madalhano dedica a maioria das postagens a denunciar perrengues da tropa. “Uso a popularidade para jogar tudo no ventilador”, diz o ex-PM, que tem 157 000 seguidores no Instagram — outro perfil popular na rede que faz postagens sobre o tema é o Pracinha Cansado. Para a Secretaria da Segurança, a proibição das postagens visa a “preservar a segurança dos profissionais e contribuir para a credibilidade institucional da PM”.
As queixas, às vezes, estão ligadas a problemas básicos. Não faltam, por exemplo, relatos de soldados que tiram dinheiro do bolso para manter veículos da corporação. “Já gastei 560 reais para comprar pneu e pastilha para a moto da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas). Aconteceu mais de uma vez. No pelotão, fazíamos vaquinha: a cada mês, todos davam 50 reais para arrumar as viaturas”, afirma um policial que atua no interior e prefere não se identificar. A SSP alega fazer manutenção periódica da frota. “Foram entregues 2 016 novos veículos apenas no ano passado. Em 2023, chegaram mais 377 novas viaturas”, diz a pasta.
Pedir exoneração é uma porta de saída voluntária da PM. Há, também, os casos de quem não escolheu deixar a corporação, mas precisou fazê-lo. Segundo os dados obtidos por VEJA SP, nos últimos dez anos foram expulsos 1 461 policiais no estado, dos quais 49% eram soldados e 39%, cabos. Ou seja, mais de 88% das expulsões miravam as duas patentes mais baixas — que representam 80% da tropa. No grupo dos demitidos, foram 766. O viés é o mesmo: 54% são soldados e 32%, cabos — e apenas um era coronel (veja no quadro abaixo).
Especialistas concordam que os estresses vividos na PM — como a sobrecarga e a pressão psicológica — agravam até a letalidade policial. Entre 2018 e 2022, o número de mortes cometidas por PMs tinha caído expressivamente. “Isso se deveu a políticas de mitigação do uso da força e ao Programa Olho Vivo (as câmeras nas fardas)”, diz Mayra Pinheiro, 28, do Instituto Sou da Paz. Apenas em 2022, a queda anual na letalidade foi de 27,7% — um total de 425 mortes, 163 a menos que no ano anterior. Em 2023, porém, a tendência tem se invertido. Julho, agosto e setembro registraram um aumento de 41,8% nas mortes em relação ao mesmo período de 2022 (153 registros em 92 dias). Mayra atribui a alta a uma “estagnação” no programa Olho Vivo e à Operação Escudo, que terminou com 28 mortos na Baixada Santista. “O Olho Vivo não tem sido fomentado como antes”, ela diz. Em outubro, o governo cortou 15 milhões do orçamento do programa, que é de 152 milhões. Segundo a atual gestão, o corte ocorre por “queda da arrecadação” e os recursos foram “remanejados para despesas mais urgentes”. Urgente, também, seria haver paz e tranquilidade — nas ruas, nos quartéis e nos espíritos de quem atua na segurança pública.
PROCESSADA APÓS CHAMAR CHEFE DE “VOCÊ”
Em março de 2022, oito anos após entrar para a PM-SP, Brunna Navas tentou suicídio pela primeira vez. O estopim foi a notícia de que seria transferida do Centro para o extremo leste de São Paulo. “Comecei a entregar os materiais e, quando vi, apaguei”, ela diz. Uma semana depois, o quadro piorou. “Um amigo apareceu para me acalmar e coloquei uma arma na minha cabeça”, conta. Após o episódio, foi transferida para São Vicente, perto da família, onde trabalharia em funções administrativas. Ali conheceu o companheiro, Bruno Brasil, à época também soldado. As mudanças não resolveram a saúde mental. Em maio, um psiquiatra pediu que Brunna se afastasse por 120 dias da corporação. “Levei o laudo à PM. Disseram que não me dariam o afastamento e que eu precisaria trabalhar no dia seguinte”, ela conta. Naquela noite, dependurou-se na varanda com ideias suicidas. Internada, recebeu a visita do comandante. “Pedi que ele não contasse o episódio à minha família, mas não fui respeitada”, afirma. Dias depois, Brunna o confrontou no quartel. “Acabei por chamá-lo de ‘você’. Foi a causa para que me desse voz de prisão”, diz. A ex-PM é alvo de uma ação na Justiça Militar por “desrespeito a superior”. Brunna e Bruno pediram exoneração — ela em junho, ele em outubro. A PM afirma que ela “foi autuada em flagrante delito” no caso do comandante. “Foi concedida autorização para que trabalhasse no período diurno e, no noturno e fins de semana, permanecesse na residência. Tal benefício é uma alternativa à prisão”, diz a corporação, em nota. “O Código Penal Militar é de 1969. Ele é arcaico e incompatível com a polícia do século XXI”, afirma o advogado e ex-cabo Thiago Lacerda, 44, especialista em direito militar.
TRAUMA E “VIRADA DE CHAVE”
Nascido no Tatuapé, na Zona Leste, Ronie Salvador, 39, entrou para a PM aos 25 anos. Ao longo de treze anos, ele serviu na Zona Norte, em Guarulhos e em Atibaia, no interior do estado. Pediu exoneração em julho, após encarar uma série de momentos traumáticos. Um deles aconteceu em agosto de 2020, quando Ronie passou uma noite trabalhando ao lado de um policial e, horas depois, recebeu a notícia de que o colega tinha assassinado a esposa e cometido suicídio. “Fiquei muito abalado”, lembra. Ronie quase tirou a própria vida meses depois, mas foi dissuadido pelos pais, durante a chamada de vídeo que seria a despedida da família. Chegou a passar por consultas com psicólogos da polícia. “Na PM, escutava que depressão e crise de ansiedade são frescuras. Ouvi de um capitão que tudo que estava acontecendo comigo era culpa minha. Ele me empurrou para o fundo do poço”, lembra. No começo de 2023, Ronie perdeu outro amigo por suicídio. “Ele tinha entrado junto comigo na polícia. Quinze dias antes, conversamos por chamada de vídeo. Após o caso, virei a chave e pedi baixa”, ele conta. “Era um ambiente que não me fazia bem. Cheguei à conclusão de que a minha vida e a minha saúde mental valem mais”, conclui.
QUEIXAS NAS REDES SOCIAIS
Nascido em Campos do Jordão, Luiz Paulo Madalhano passou quatro anos no Exército antes de entrar na PM, em 2016. “O principal motivo para ingressar na polícia foi o meu pai. Não porque ele fosse policial: na verdade, ele tinha uma extensa ficha criminal”, conta o ex-PM. Madalhano trabalhou por quatro anos na capital antes de ser transferido para São José dos Campos. Desde o início da carreira, cultivava a popularidade nas redes sociais — tem atualmente 753 000 inscritos no YouTube. “Filmava nossas ações na PM. Mas levei uma advertência por postar vídeos em desacordo com as normas internas”, ele relembra. Por um tempo, ficou inativo nas plataformas digitais. Em outubro de 2021, o ex-soldado patrulhava as ruas de São José quando deparou com três suspeitos de tráfico de drogas. “Cada policial saiu atrás de um deles. Mas acabei caindo. A moto caiu em cima da minha perna e quebrei a patela”, afirma. Pouco depois, em março de 2022, Madalhano pediu exoneração . “Fiquei três meses de muleta e meu salário caiu significativamente. Não podia fazer bicos, como na Operação Delegada (da prefeitura, que paga para agentes de folga patrulharem a cidade)”, diz. Fora dos quartéis, virou voz conhecida entre os ex-policiais. “Uso a força que tenho nas redes sociais para jogar tudo no ventilador”, afirma. ■
Publicado em VEJA São Paulo de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869