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OLÁ,

Os pequenos prazeres que o condomínio-clube tira da cidade

Para o urbanista Eduardo Andrade de Carvalho, a relação de um edifício com seu entorno é fundamental e quarteirão fechado por muros prejudica a vida urbana

Por Eduardo Andrade de Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 20h36 - Publicado em 5 mar 2021, 06h00
rua com muros nas calçadas
Muros cercam condomínios na região do Paraíso, na Zona Sul (Raul Juste Lores/Veja SP)
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A influência de um edifício não se resume ao terreno em que está inserido: o desenho da sua relação com o espaço público que o envolve é fundamental para que uma cidade seja mais agradável, civilizada. Um condomínio-clube que fecha um quarteirão com muros volta as costas dos prédios para a rua, tem apenas uma portaria para pedestres enclausurada e blindada está — para evitar eufemismos — destruindo a vida urbana que poderia haver em seu entorno. Ninguém se sente estimulado a andar sábado à tarde com o cachorro por uma calçada que é inteira acompanhada por muros. É um passeio monótono, chato e, portanto, vai ser vazio e perigoso.

A calçada talvez seja o espaço público mais importante da cidade. As nossas melhores experiências nos lugares mais interessantes do mundo geralmente acontecem nas calçadas. Quando pensamos em Paris — para citar uma quase unanimidade —, uma das primeiras imagens que nos vêm à mente é um café na beira da calçada. Mas não é só o café que essa imagem representa: é quão agradável a vida urbana pode ser numa cidade que, em vez de um muro bege, oferece à nossa imaginação a aventura ou o conforto que podemos desfrutar caso, caminhando com nosso cachorro sábado à tarde, decidamos entrar no café — onde podemos nos proteger de uma garoa e sentar ao lado da Natalie Portman. Andar pela cidade ideal é uma sequência de pequenas tentações.

E o condomínio-clube — a ideia do quarteirão fechado por muros com “lazer exclusivo” — é a anticidade: ele esvazia as calçadas e, portanto, acaba com a graça da vida urbana. Esse tipo de iniciativa deveria ser inibido por uma legislação eficiente. Mas não é: bairros que foram muito verticalizados nos últimos anos (como Mooca, Vila Leopoldina, Barra Funda) receberam vários empreendimentos residenciais totalmente fechados e aprovados de acordo com a legislação vigente. E o problema desses conjuntos habitacionais não é só a indelicadeza da sua relação com a rua. Mais grave do que isso talvez seja a consequência desses empreendimentos na organização da cidade: porque esse tipo de projeto não inclui, embaixo das suas torres, o pequeno comércio que ocupava as casinhas que precisaram ser demolidas — e que são fundamentais para que a vida urbana floresça completamente.

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Um bairro sem uma mercearia, um barbeiro, uma farmácia, por mais central que seja geograficamente, é subúrbio: seus moradores vão precisar pegar o carro e ir ao shopping para comprar uma caixa de fósforos. Detroit, inspirada nesse modelo, faliu formalmente, e Alphaville, nossa clássica experiência em edgecity (conceito que define área no entorno de metrópole que mistura residências, comércio, prédios de escritório e serviços), está totalmente engarrafada. Nossa atual legislação urbana, quando desestimula o comércio embaixo de edifícios residenciais (por exemplo, considerando o térreo inteiro como área computável quando apenas 30% do térreo é ocupado com uma loja), está trazendo o subúrbio para o centro da cidade. A consequência será mais Morumbis e menos Higienópolis; mais calçadas vazias e menos Conjuntos Nacionais; mais trânsito e poluição e menos chance de, levando o seu beagle para passear sábado à tarde, reparar, pelo vidro que separa um pequeno café da calçada, que Natalie Portman está lá dentro sozinha com cara de triste.

Existe certa razão, portanto, na preocupação que algumas pessoas têm quando um empreendimento imobiliário gigante aparece em sua vizinhança. Mas o que pode prejudicar um bairro geralmente não é a verticalização ou o adensamento populacional que o empreendimento traz. Manhattan é prova disso. O problema é a verticalização ou o adensamento mal pensados: com projetos desenvolvidos com pressa, que desconsideram o espaço público em seu entorno, não têm lojas no térreo e estão estufados de tanta vaga em seus subsolos. Vagas que, aliás, precisavam — até o mais recente Plano Diretor de São Paulo entrar em vigor — ser construídas obrigatoriamente em número mínimo: o que vai na contramão do incentivo à bicicleta e ao transporte público e encarece os imóveis na cidade. O Swiss RE Building, em Londres, um projeto do Foster + Partners, com 41 andares e mais de 40 000 metros quadrados de escritório, tem cinco vagas de estacionamento — para deficiente físico.

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“O que pode prejudicar um bairro geralmente não é a verticalização ou o adensamento populacional que o empreendimento traz. Manhattan é prova disso”

São esses tipos de anomalia que precisam ser revistos. Não queremos morar numa cidade-subúrbio e a nossa legislação não pode considerar — ou, pior, incentivar — o carro como principal meio de transporte. Precisamos trazer as pessoas para mais perto do trabalho — e o trabalho para mais perto das pessoas —, evitando desperdício de tempo e dinheiro em locomoções diárias. Pequenos comércios e serviços não podem desaparecer das ruas e se esconder na área de conveniência de shopping centers.

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A Lei de Zoneamento ideal deve considerar um dos aspectos mais importantes da vida urbana: a civilidade. Em suas praças e parques, bares e padarias, uma cidade aproxima pessoas diferentes (em idade, religião, classe social etc.) e faz com que, compartilhando o mesmo espaço, elas conversem, troquem experiências, se eduquem mutuamente — e se divirtam juntas. É por isso que a vida urbana é fundamental a uma sociedade civilizada: porque, aproximando pessoas, ela estimula a tolerância, o aprendizado e a imaginação.

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Estimula a imaginação quando, por exemplo, um adolescente de 13 anos, voltando a pé da escola, cruza com um saxofonista indiano com o penteado de Kenny G exibindo seu talento na frente de uma livraria especializada em biologia. De uma vez só, uma nacionalidade, um penteado, uma música e uma matéria que ele julgava chata se apresentaram numa combinação inusitada, interessante — o que pode animá-lo a tocar sax, estudar biologia, deixar o cabelo crescer como o do Kenny G ou visitar a Índia. Um dos principais prazeres de morar numa cidade grande é o de encontrar pelo caminho esse tipo de novidade inesperada: e na frente de um café, num sábado à tarde, olhar para o seu beagle e com ele decidir consolar, se não a Natalie Portman, alguém sozinho, triste — que acabou de fugir de um condomínio-clube porque desconfiava que o mundo era maior do que aquilo.

* Este artigo foi originalmente publicado no Caos Planejado (caosplanejado.com), site sobre urbanismo, com foco nas cidades brasileiras.

Eduardo Andrade de Carvalho posando para a foto sentado de pernas cruzadas em uma escada
Eduardo Andrade de Carvalho (Reprodução/Acervo Pessoal/Divulgação)
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Eduardo Andrade de Carvalho – fundador da incorporadora Moby e criador do Esquina, plataforma para debater urbanismo

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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de março de 2021, edição nº 2728

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