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O desafio da faixa de pedestres

Campanha da prefeitura, mal planejada e mal executada, está perdendo a oportunidade de conduzir os paulistanos a um novo patamar de civilização

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 1 jun 2017, 18h31 - Publicado em 23 jun 2011, 19h40
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  • A prefeitura de São Paulo iniciou, há seis semanas, campanha para estimular o respeito à faixa de pedestres. O ideal seria que campanha de igual propósito, com determinação, estardalhaço e continuidade equiparáveis aos da propaganda da Coca-Cola, tivesse sido desencadeada lá atrás, em algum ponto da década de 70, quando tomou corpo o avanço avassalador dos automóveis na ocupação dos espaços urbanos — e o correspondente recuo das condições de segurança e conforto para a circulação dos pedestres.

    Mas vá lá — antes tarde do que nunca. Dezenove pessoas são atropeladas por dia em São Paulo. Foram 7.007 no ano de 2010. Seiscentas e trinta morreram. No desenho no asfalto em que se alternam listras claras e escuras, como pele de zebra, conhecido universalmente como faixa de pedestres, concentra-se um desafio aos paulistanos que diz respeito à integridade física e à vida, mas também a algo mais — é um desafio civilizacional. No dia em que os motoristas aprenderem a respeitá-lo, teremos subido de patamar no quesito da pacífica e respeitosa convivência entre os habitantes da cidade — não por acaso chamados de cidadãos (na origem, os habitantes das cidades), e dos quais se espera um comportamento não por acaso chamado de civilidade (de ‘civitas’, cidade em latim).

    A campanha da prefeitura, iniciada em 11 de maio, concentra-se, por enquanto, em 300 cruzamentos compreendidos na primeira das oito Zonas de Máxima Proteção ao Pedestre, como foram batizadas as áreas da cidade consideradas mais críticas para a convivência harmoniosa entre veículos e pessoas. Essa primeira zona, onde a campanha se desenvolve em caráter piloto, se estende entre o centro e a região da Avenida Paulista, perfazendo um total de 14 quilômetros quadrados.

    Nela, os “orientadores de trânsito” da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) exercem sua vigília, engalanados com a inscrição “Dê preferência à vida. Respeite o pedestre” sobre o colete amarelo, armados com uma mãozinha de plástico que lhes serve de cancela para fazer parar os carros, e às vezes secundados por uma equipe de mímicos contratados para, com seus gestos, educar a população. A campanha consiste ainda em placas com a inscrição “Na conversão à direita, a preferência é do pedestre”, em palestras para motoristas de ônibus e de táxis e na distribuição de folhetos, não nos cruzamentos, porque a Lei Cidade Limpa o impede, mas em estações de metrô e em repartições públicas.

    Dará certo? A campanha se inicia com vulnerabilidades que levam a duvidar de sua eficácia. Para começar, a faixa de pedestres que interessa, na qual se encontra o X da questão, é a faixa desacompanhada de semáforo. A outra modalidade, a faixa amparada por um semáforo, conta com um aliado dotado do maior dos instrumentos educativos — a punição. Passou no sinal fechado, é multa. Muitas vezes, nem precisa estar presente o guarda; a multa é disparada por radar. Faixa de pedestres amparada por semáforo, por essa razão, é em geral respeitada.

    O repórter Daniel Salles, de VEJA SÃO PAULO, observou por quatro horas o cruzamento do Viaduto do Chá com a Rua Líbero Badaró, onde um semáforo vigia sobre a faixa de pedestres, e não presenciou nenhum caso de desrespeito ao semáforo ou de avanço sobre a faixa. 

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    Avenida Paulista - capa 2223
    Avenida Paulista – capa 2223 ()

    Ao não estabelecer diferença entre a faixa com e sem semáforo, a campanha comete seu primeiro erro. É a faixa sem semáforo que, em São Paulo como em quase todo o Brasil, costuma ser ampla e irrestritamente desrespeitada. Pela boa regra internacional, basta o pedestre pôr o pé na faixa, e o motorista é obrigado a dar-lhe passagem. A faixa é como o pique na brincadeira das crianças. Pôs o pé ali, e o pedestre garante sua imunidade. Vá um europeu ou americano imaginar que tais princípios, tão simples e claros, vigoram em São Paulo.

    Já com a campanha em andamento, a prefeitura inventou de recomendar às pessoas que levantem o braço, em sinal de que vão atravessar a rua. Fora a publicação de portaria a respeito no “Diário Oficial”, no entanto, pouco se fez para divulgar a novidade. De resto, mesmo que se fizesse, como esperar seu cumprimento, se não há sanção a quem desrespeitá-la? O Código de Trânsito estabelece que o desrespeito à faixa de pedestres é infração “gravíssima”, punível com multa de 191,54 reais e 7 pontos na carteira. Alguém já viu um motorista ser multado porque desrespeitou a faixa quando não há semáforo? 

    Mímica - Viaduto do Chá - capa 2223
    Mímica – Viaduto do Chá – capa 2223 ()

    Entre fevereiro e abril, a CET realizou uma pesquisa desenvolvida em duas etapas. Diante de uma faixa sem semáforo, um pesquisador observava o comportamento do motorista. Outro, poucos metros adiante, entrevistava o mesmo motorista, perguntando-lhe se costumava respeitar as faixas. Noventa por cento dos motoristas não pararam na faixa; mas, na entrevista, 76% disseram que costumam respeitá-la. Como explicar a discrepância? Estariam mentindo? A distração e a ignorância soam como apostas mais consistentes — distração porque já nem mais reparam naquele sinal no chão, mero adorno, desprovido de poder de coação; e ignorância porque, para muitos, aquela seria apenas a marcação do lugar em que preferencialmente os pedestres deveriam atravessar a rua, desde que não haja carros passando.

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    Ao concentrar esforços na faixa com semáforo, a campanha da prefeitura erra no foco e desperdiça munição. É nesses locais, e só neles, que se desenvolve a mais vistosa ação, a da equipe de três mímicas e um mímico, alocados cada dia num cruzamento. Nas faixas sem semáforo, a campanha restringe-se à atuação mecânica e, coitado, boboca, do “orientador de trânsito”, que ora dá o sinal de parar aos motoristas, ora faz o inverso. É o substituto humano do semáforo, cuja ação “educativa” se limitará ao período em que estiver lá. Saiu, acabou. Ele não possui instrumentos que garantam o respeito dos motoristas para além de sua presença. Ao centrar fogo na faixa com semáforo, só residualmente enfocando a outra, a prefeitura faz como o catequista que se concentrasse num grupo em que a maioria já é convertida, deixando de lado os pagãos. 

    Rua Sete de Abril - capa 2223
    Rua Sete de Abril – capa 2223 ()

    Outro erro é dar mais destaque à educação do pedestre que à do motorista. É para os pedestres que as mímicas, de saia florida, blusa listrada e cara pintada de branco, esticam os braços, quando o sinal está vermelho, ou os afastam, com um largo sorriso, quando fica verde. Quando um pedestre descumpre a regra e arrisca atravessar entre os carros, elas batem os pés ou o encaram com o dedo em riste. Para os motoristas, a performance não passa de distração semelhante à proporcionada pelos malabaristas e comedores de fogo. Ora, são os carros que agridem e matam. São eles a parte forte do confronto. No dia em que forem educados, a educação do pedestre virá por gravidade. O tratamento deveria ser no mínimo equitativo, e de preferência mais intenso para o lado do motorista; de preferência maior ainda, muito mais intenso. 

    Avenida Sapopemba - capa 2223
    Avenida Sapopemba – capa 2223 ()

    Outro erro, o mais clamoroso, é a campanha não acenar com futuras punições. Campanha para valer seria a que fixasse um prazo a partir do qual a ação educativa daria lugar à aplicação de multas. Foi o que ocorreu em Brasília, a única capital brasileira em que a população aprendeu a respeitar a faixa de pedestres — um exemplo que será esmiuçado mais adiante. A CET informa que está, sim, em seu horizonte aplicar multas, mas não informa nem quando nem como. A questão estaria “em estudo”, o que revela indecisão com relação a um item que já deveria constar da campanha desde o início. Não há educação que não acene com a punição ao infrator. Se, ao destinar seus melhores esforços às faixas com semáforo, a campanha descambava para o desperdício, com a falta de perspectiva de multa condena-se à inutilidade.

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    Aos erros da campanha somam-se outros, antigos, aqueles que se foram acumulando ao longo dos anos e hoje configuram um entulho difícil de remover. Um deles está na colocação das faixas. Na esquina da Avenida Paulista com a Rua Frei Caneca, um desamparado “orientador de tráfego” cumpria, dias atrás, a mecânica tarefa que lhe foi designada. Sinal para cá, e os motoristas se detinham; sinal para lá, e os pedestres é que aguardavam sua vez. Não há semáforo naquele ponto. Ou melhor, naquele momento havia: ele mesmo fazia as vezes de sinal vermelho e de sinal verde. E quando ele for embora? Se os motoristas forem aguardar o momento em que não há nenhum pedestre com o pé na faixa para avançar, esperarão o dia inteiro. O fluxo de pedestres ali não dá trégua. É igualmente considerável o número de carros que, vindos da Paulista, dobram à direita na Frei Caneca. Se se dispuserem a parar até os pedestres lhe darem uma chance, provocarão monumental congestionamento às suas costas, na Paulista. 

    Praça da Sé - capa 2223
    Praça da Sé – capa 2223 ()

    O que ocorre é que a faixa está evidentemente no lugar errado. A situação ali pede um reestudo das travessias em todo o quarteirão. Casos semelhantes se multiplicam pela cidade. Ao longo dos anos, as faixas foram salpicadas no asfalto como faria um chimpanzé munido de um balde de tinta e uma tela. Campanha realmente para valer exigiria a prévia revisão geral da localização das travessias. Nem sempre a faixa deve ficar exatamente na esquina; muitas vezes, ela seria mais eficaz se colocada mais para o meio do quarteirão.

    Também se poderiam imaginar soluções que diferenciassem a faixa com semáforo da faixa sem semáforo. A faixa zebrada teria melhor uso se fosse exclusiva dos cruzamentos sem o apoio do semáforo. Quando há semáforo, bastaria uma linha que indicasse o ponto que os motoristas não devem ultrapassar. É a solução adotada, entre outros países, na Inglaterra. A faixa zebrada, elegante e soberana, tal qual a que é atravessada pelos quatro Beatles na histórica capa do disco “Abbey Road”, é malversada em São Paulo como adorno ao pé dos semáforos. Em Londres, nas calçadas que margeiam a faixa zebrada, há postes encimados por globos que se acendem e apagam. Com isso, mais ainda se chama a atenção do motorista. Em São Paulo, o mesmo papel poderia ser desempenhado por amarelos pisca-pisca.

    Caso se chegue à conclusão de que a população é ineducável e as faixas onde não há semáforo são caso perdido, a solução extrema seria acabar com elas. Semáforos seriam alocados em todos os cruzamentos. Ocorre que a população é, sim, educável. Não há nada no DNA brasileiro que a torne incapaz de entender e de observar as leis de trânsito. Prova-o o exemplo de Brasília. Tantos casos de atropelamento se acumularam na cidade que, em 1996, o jornal “Correio Braziliense” iniciou uma campanha contra os desmandos dos motoristas. As notícias de atropelamentos passaram a ser publicadas na primeira página. Na mesma edição, vinham editoriais e comentários. A alturas tantas, o jornal convocou uma passeata, à qual compareceram de 25.000 a 30.000 pessoas.

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    Cruzamento em Brasília - capa 2223
    Cruzamento em Brasília – capa 2223 ()

    O governo da cidade demorou, mas acabou aderindo à causa. Primeiro, cobriu as vias expressas com radares, para coibir os excessos de velocidade. Em seguida, em janeiro de 1997, iniciou campanha para o respeito à faixa de pedestres. Note-se que as faixas, em Brasília, são em grande parte sem semáforo, para não atravancar o tráfego nas numerosas vias expressas. A campanha consistiu em anúncios nos meios de comunicação e na ação de guardas que orientavam os motoristas. Mas desde o início estes foram avisados de que, a partir de abril, seriam aplicadas multas. Milagre! O motorista brasiliense aprendeu que, ao avistar um pedestre com um único pé na faixa, no simples gesto de iniciar a travessia, deve parar. Justamente de Brasília, de onde vêm tantas más notícias, veio a excelente nova de que o brasileiro não difere geneticamente do suíço. Como o outro, está equipado para decodificar o significado de uma faixa zebrada e atender ao que ela reclama.

    Milagre? Mais exatamente apenas o resultado lógico de uma campanha conduzida com competência e determinação. Catorze anos passados, em Brasília continua-se a dar a mesma atenção à faixa de pedestres. Em 2010, registraram-se apenas sete mortes por atropelamento em todo o Distrito Federal. Nos últimos catorze anos, 77. Para garantir o bom comportamento, o braço repressor segue em alerta. No ano passado, foram aplicadas 3.512 multas por desrespeito à faixa. Outro efeito, mais inesperado, da reengenharia operada na cabeça do motorista brasiliense, é que ele passou a sentir orgulho ao parar na faixa. Pelo menos nesse aspecto, sentiu-se equiparado a um cidadão de Genebra ou de Estocolmo.

    Eis o que a prefeitura de São Paulo está perdendo, ao lançar uma campanha frouxa, com foco equivocado e metas indefinidas — um resultado, junto à população, semelhante ao da Lei Cidade Limpa. No princípio, os paulistanos se mostraram divididos. O sucesso da lei, ao cabo de uma campanha bem planejada e executada com prazos e punições bem definidos, os fez orgulhosos de habitar uma cidade preocupada com a poluição visual. Azar da prefeitura que, do jeito que as coisas se apresentam, o fenômeno não se repetirá desta vez. Azar do prefeito.

    Entidades de defesa do pedestre mostram-se pessimistas. “Acho difícil a ação funcionar sem multa, e Brasília provou isso”, diz o presidente da Associação Brasileira de Pedestres (sim, isso existe), Eduardo José Daros. Cássia Fellet, animadora do movimento Pedestre Primeiro, escreveu em seu blog: “Os próprios processos de gerenciamento de trânsito deveriam ser revistos, caso a caso, como o tempo para as travessias, o lapso de abertura dos faróis e o desenho das travessias. Somente uma ação que integre mudanças nesse sentido e que envolva uma estratégia integrada e ampla poderia trazer as consequências que esperamos: a redução dos atropelamentos e das mortes no trânsito”.

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    É curiosa e sintomática a existência de entidades como a Associação Brasileira de Pedestres. Curiosa porque, ora, ora, pedestres somos todos nós. Mal comparando, é como se existisse uma Associação dos Seres Humanos. Mas também sintomática porque indica, acertadamente, que os seres humanos, quando passam da condição de pedestre a motorista, encaram a nova condição como promoção. Ganham o direito de, na suposta hierarquia de usuários das ruas, assumir a posição dominante.

    Azar da prefeitura, azar do prefeito e azar, sobretudo, da cidade. Para quem não entendeu ainda, ao falar em faixa de pedestres não se está falando de faixa de pedestres. Ou melhor: não se está falando apenas de faixa de pedestres. Faz alguns anos, graças ao bom desempenho da economia, o Brasil recebeu o investment grade das agências internacionais de gerenciamento de risco — uma recomendação para que se invista no país. Não há agências que meçam o nível civilizacional de um país ou de uma cidade. Mas a observância da faixa de pedestres consistiria num item importante para a obtenção de um civilizational grade. Um argumento a favor de nos esforçarmos para tal conquista seria lembrar que daqui a três anos teremos por aqui uma Copa do Mundo. O planeta nos estará observando. É hora de aprimorar nosso status civilizacional.

    Não. O argumento é oportunista e colonizado. Antes de nos preocuparmos com o que os outros pensam de nós, preocupemo-nos com nós mesmos. O paulistano, ao longo dos anos, aprendeu a ver a cidade, preferencialmente, como um espaço de circulação. São Paulo é aquele lugar que fica entre minha casa e o local de trabalho. Importa deslocar-me de um para o outro. E dá-lhe carro, dá-lhe via expressa. Quanto mais carros, mais vias expressas, que atraem mais carros, que pedem mais vias expressas. Não há conversa mais frequente, entre os paulistanos, do que “o trânsito”.

    Ora, a cidade, este mais fundamental dos inventos humanos, concebido para as pessoas morarem umas junto às outras, e não isoladas, como no campo, é lugar de troca, de encontro nas praças e, pasmem os paulistanos, de contemplação. Assim foi concebida lá atrás, na Antiguidade, e assim frutificou, em esplêndidos exemplares, na Idade Média e no Renascimento. O desrespeito à faixa de pedestres, demonstração de prepotência e ameaça de violência contra quem anda a pé, é expressão daquilo que mais estamos perdendo — a cidade.

    NÚMEROS DA TRAGÉDIA

    7.007

    pessoas foram atropeladas em São Paulo em 2010, uma média de dezenove por dia

    630

    atropelamentos fatais foram registrados na cidade no ano passado, quatro vezes mais que em Nova York

    13,6

    milhões de reais é quanto a CET gasta por ano com a manutenção de faixas de pedestres

    69%

    foi a porcentagem da queda em atropelamentos na região central entre maio e junho,

    em relação ao mesmo período do ano passado, segundo a CET

    1.040

    será o total de novos orientadores de travessia que a prefeitura promete contratar nos próximos meses

     

    O QUE PODERIA SER FEITO

    – Um amplo e cuidadoso reestudo da alocação das faixas em que não há semáforo

    – O anúncio, amplamente alardeado, de que multas para o desrespeito às faixas, especialmente as não amparadas por semáforo, serão aplicadas a partir de determinada data

    – A reserva da faixa zebrada apenas para quando não há semáforo; quando há semáforo, bastaria uma linha que indicasse onde os carros devem parar

    – Nas áreas mais críticas, o reforço da faixa não semaforizada com um pisca-pisca amarelo

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