No meio do empreendedorismo, Ana Fontes, 55, é a guru de pés no chão. Nascida em Alagoas, veio morar em Diadema com os pais e sete irmãos nos anos 1970. Teve uma carreira de sucesso, que terminou mal — como narra a seguir. Em 2010, criou a Rede Mulher Empreendedora (RME), um negócio social (com quarenta funcionários) que conecta mais de 1,1 milhão de mulheres donas de empresas. Avessa à glamorização do tema e atenta às questões sociais, Ana lança o primeiro livro em março: Negócios, um Assunto de Mulheres (Ed. Jandaíra).
Você diz que empreendeu por “inconformismo” com o mundo corporativo. O que tinha se passado?
Eu não me conformava com a maneira como as empresas tratavam a gente. Trabalhei por dezoito anos em uma grande corporação (a Volkswagen). Aconteciam desde coisas como eu nunca ser chamada para almoçar (era a única executiva mulher) até colegas receberem bônus maiores com desempenhos piores. Quando tentei uma promoção, o diretor falou: “Seu histórico aqui é perfeito, pena que você é mulher. Quero alguém que bata na mesa e fale alto, para as equipes entregarem os resultados”. (Ana era da área de marketing.)
Em que ano isso aconteceu?
Entre 1998 e 2000.
Passadas duas décadas, quanto as coisas realmente mudaram?
As coisas estão menos escancaradas. Hoje, o tal diretor não diria o que pensa de forma tão clara, teria receio. Mas todos os dias recebo mensagens de mulheres em grandes corporações que relatam assédio moral, sexual ou preconceitos. Quase 100% das mulheres já passaram por uma situação dessa. As estruturas de poder são muito fortes. Somos apenas 12% a 15% nos cargos executivos. A inclusão é muito falada, mas não é tão efetiva como pode parecer.
Hoje, as mulheres têm mais facilidade para denunciar os casos?
Elas têm medo de se queimar no mercado, de acabar com a carreira. E têm razão. Vi muitas mulheres que, após denunciarem, não arrumaram mais trabalho. Infelizmente, essa é uma cultura das empresas.
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Como denunciar sem se queimar?
Nos canais da empresa. Hoje, todas têm meios internos para isso. Se não for acolhida, busque ações jurídicas. Se optar pela denúncia nas redes sociais, é preciso estar preparada, porque você será julgada no “tribunal” virtual — onde não há justiça. Vejo muitos casos de mulheres que acabam atacadas. A internet é cheia de haters. Tenho muitos, porque falo de inclusão. Em 2021, fiz uma ação no perfil da Dell. Você precisa ver a quantidade de haters. Me chamavam de ridícula, feia, gorda, velha, cabelo ruim. Respondi a todos. Não deveria, mas fiquei com raiva. Nas redes sociais o clima é pesado. Por isso, aconselho os canais internos e os da Justiça.
Uma pesquisa da RME mostrou que 42% das empreendedoras tiveram pedidos de crédito negados em 2021. Há tratamento desigual nos bancos?
Sim. No Brasil, o dinheiro sempre foi um território dos homens. Quando você pergunta às empreendedoras quem faz a gestão financeira do negócio, mais de 80% respondem não serem elas. Esse contexto faz a gente ter medo de buscar dinheiro. Vamos aos bancos menos preparadas, com menos informação. O mercado financeiro é feito por homens e para homens.
A pesquisa mostrou que 26% das empreendedoras iniciaram o negócio na pandemia. Qual é o perfil delas?
São mulheres que foram demitidas. A maioria dos demitidos na pandemia é de mulheres e jovens. O empreendedorismo virou uma opção para elas botarem dinheiro na mesa. Boa parte empreendeu nas áreas de conforto para as mulheres, como estética e alimentação fora de casa.
Em depoimentos, você conta que seus pais melhoraram de vida após conseguirem empregos formais. Hoje, há uma glamorização do empreendedorismo. Ele dá conta de substituir a formalização no país?
Não acho. Não acredito no empreendedorismo quando ele significa a precarização do trabalho. Ouço muitas mulheres dizerem: “Se eu tivesse um emprego, não queria empreender”. O que ela quer, mesmo, é uma carteira assinada. E está tudo bem. Errado são pessoas dizerem: “Não vai ter emprego para todo mundo, crie seu negócio para dar emprego aos outros”. Nem todo mundo vai conseguir. Nem todo mundo tem privilégios. Vejo mulheres se matando para fazer bolos, costurar roupas… E muitas vezes não dá certo. Nas redes sociais, as pessoas dizem: “Se esforce, você não está sendo boa o suficiente”. É uma sacanagem. Isso é o que a glamorização do empreendedorismo vende. A realidade, que vejo todos os dias, é bem mais dura. Não depende só de você, 60% dos negócios fecham em até cinco anos. Não tem apoio, crédito ou política pública séria para os pequenos empresários.
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Qual foi seu maior erro ao abrir a primeira empresa (o site ElogieAki, de avaliação de negócios)?
Foi a sociedade. Viramos sócios por amizade, o que é comum. Foi duro, porque você perde a sociedade e os amigos. Ter sociedade é bom, mas é preciso se preparar. Existem regras básicas: os sócios devem ter habilidades complementares, valores alinhados e vaidades resolvidas. As sociedades se dissolvem por: muito dinheiro, pouco dinheiro, vaidades e diferença de tempo dedicado ao negócio. O problema que mais atendi, nos últimos doze anos, é de sociedade. O que falo é: combina o jogo antes, bota no papel. Quando as coisas não são claras, a chance de dar errado é grande.
A RME fica no Jabaquara. Por que escolheu o bairro?
Não quis ir para o hype. Aqui é bom para os colaboradores: não é caro e fica perto do metrô Conceição. Muita gente me pergunta por que não vou para bairros da cena empreendedora. Não quero. Minha vida circula aqui. Eles dizem: “Vá para a Paulista, o Itaim, o Brooklin…”. Eu digo: “Vou, sim. De metrô”.
Você veio de uma família pobre, mas sempre gostou de livros e se destacou. Leitura fez diferença?
Teve uma importância fundamental. Olho para meus irmãos e vejo isso, porque nem todos se formaram. A gente passou situações tristíssimas, minhã mãe limpava sardinha para as vizinhas, para ficar com o resto. O que fez diferença, na minha jornada, foi gostar de ler. E de me conectar com as pessoas.
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Publicado em VEJA São Paulo de 9 de março de 2022, edição nº 2779