Todos os dias, entre as 18h e as 19h, os pontos de ônibus instalados na Avenida Doutor Gastão Vidigal, na Vila Leopoldina, ficam repletos de pessoas que trabalham em empresas nas imediações. Poucos são os estabelecimentos que permanecem de portas abertas após esse horário naquele trecho da Zona Oeste, embora o movimento nos entrepostos da Ceagesp ainda esteja a todo o vapor. O motivo é o receio de ser abordado — nem sempre de forma gentil — por dependentes químicos que aportam na região no começo da noite em busca de crack.
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“É tipo um toque de recolher. Quanto mais tarde fica, pior é”, diz a vendedora Eli Lima, de 43, funcionária há doze anos na região.
Além da Gastão Vidigal, a capital tem pontos de consumo da droga na Avenida Jornalista Roberto Marinho, na Zona Sul, na Baixada do Glicério e na Avenida Paulista, ambos na área central e existentes há mais de dez anos. Também há casos de migração de “minicracolândias” do centro para ruas de bairros como Bresser, Mooca, Brás, Barra Funda e Vila Guilherme, além de Santa Ifigênia, essa última reflexo das ações na Nova Luz.
1. Santa Ifigênia
“O tráfico organiza e reorganiza esses pequenos grupos. Mas não é tão difícil dissolver a compra e venda de drogas, temos é que dar uma solução para essas pessoas”, defende o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que dirige a unidade de pesquisas em álcool e drogas da Unifesp.
Essas “minicracolândias” reúnem grupos de dependentes químicos que variam de dez a cinquenta integrantes, número bem inferior aos cerca de 600 que rondavam a Nova Luz. Ninguém sabe ao certo a quantidade de gente nesses locais, nem mesmo a prefeitura. “Nosso foco agora é debelar o grande mal que é a Cracolândia. Se a gente ficar focando todos esses outros pontos da cidade, perco força nessa ação”, diz Alexis Vargas, secretário-executivo municipal de Projetos Estratégicos.
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2. Água Espraiada
Embora a prefeitura não contabilize o número exato de usuários, os moradores notam que os aglomerados humanos vêm crescendo. “O bairro é ótimo para morar, mas fato é que, na verdade, é ‘Drogas Espalhadas’, e não Água Espraiada”, afirma a autônoma Cristina Menichetti, 58, que vive no Campo Belo, referindo-se ao antigo nome da Roberto Marinho.
Ela reside a dois quarteirões da via, onde fica uma “minicracolândia”, mas garante que outros pequenos grupos já se formaram por lá. “Chega a noite e é uma verdadeira cena de Walking Dead, gente revirando lixo, pequenos furtos. Fica difícil”, queixa-se. Um estudo da Unifesp mostra que entre 44% e 46% dos dependentes químicos mantêm o vício por meio de furtos.
Esse tipo de ação acontece em toda parte. No ponto de táxi Aroaba, localizado na rua de mesmo nome na Vila Leopoldina, os dependentes químicos já levaram itens como relógio e geladeira, segundo Aguinaldo Angelito de Souza, de 57 anos, taxista e coordenador das corridas. “Antigamente eram mais pessoas em situação de rua e alcoolizadas. Depois de tantas ações na Cracolândia, a gente começou a ver muito mais gente fumando essa pedra aí”, diz.
No furto mais recente, em março, desapareceu uma calha de luz do abrigo desses profissionais. “O jeito é ir embora cedo. Não tem como ficar depois que escurece”, lamenta.
3. Vila Leopoldina
Outra “minicracolândia” fica na Sé, em meio a centenas de pessoas em situação de rua que ocupam a raça. Trabalhadores das imediações relatam ser comum brigas entre os dependentes químicos. Na tarde do último dia 13, a reportagem da Vejinha flagrou um homem descalço e sem camisa correndo entre os carros da Avenida Rangel Pestana.
Ele estava com a cabeça ensanguentada, gritava, quase foi atropelado pelos veículos e conseguiu socorro na Secretaria Estadual da Fazenda, onde foi atendido emergencialmente por bombeiros civis. Com uma mão na cabeça tentando estancar o sangramento, e, na outra, um cachimbo, disse que foi golpeado ao tentar entrar numa roda para fumar uma pedra de crack. “Cheguei e nem deram conversa, foram dando paulada”, contou.
Segundo a psicóloga Maria Angélica Comis, 41, representante do É de Lei, que atua na Nova Luz, o fato de existirem serviços próximos às “minicracolândias” já estabelecidas não é suficiente para lidar com a questão.
“As pessoas continuam no território. Elas não desapareceram. Apenas abordar não é um cuidado, o cuidado vai muito além de um corte de cabelo, de oferecer um centro de acolhida, cheio de percevejos, banheiros inadequados”, afirma.
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O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirma que as ações realizadas até agora no centro não inibiram o tráfico, que continua em operação. “O que fizeram foi retirar os pertences de todos. É um absurdo”, afirma.
Alexis Vargas, secretário executivo de Projetos Estratégicos da prefeitura, diz que havia mais barracas do que pessoas na Praça Princesa Isabel. Ele garante que a prefeitura e os órgãos de segurança têm monitorado a movimentação dos traficantes para saber quais são os novos locais em que eles tentam se instalar. “A gente tem ficado de olho e agido de forma pontual”.
4. Alerta na Paulista
Um ponto conhecido de reunião de usuários de drogas é o da Praça José Molina, no entroncamento da Rua Doutor Antonio dos Santos Rocha com a Avenida Doutor Arnaldo, pertinho da Avenida Paulista. Por vezes, alguns acabam por invadir as pistas da saída da passagem que liga a Rua da Consolação à Avenida Rebouças.
O produtor de eventos Mateus Reis, de 27, diz que em fevereiro foi literalmente atropelado por um dependente químico quando pedalava na ciclovia que passa embaixo da praça. “Ele gritava e desceu correndo. Sorte é que não vinha nenhum carro atrás. Caí, mas foi só um arranhão, nem vi pra onde ele foi.”
Após as ações na Luz, uma “minicracolândia” se instalou no Túnel José Roberto Franganiello Melhem, que liga as avenidas Paulista e Doutor Arnaldo. A polícia diz que o ponto foi desbaratado, em março, após a prisão de dois traficantes no local.
Contenção
Acima, grade instalada em centro comercial na Vila Leopoldina para inibir saques; imagem ao lado mostra cerca elétrica em posto de combustível no Campo Belo após local ter grades de todos os aparelhos de ar-condicionado furtadas; abaixo, Aguinaldo Angelito de Souza, de 57 anos, mostra onde ficavam relógio e geladeira de água levados por dependentes químicos.
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Publicado em VEJA São Paulo de 4 de maio de 2022, edição nº 2787