Foi logo de cara. Eu nem havia encontrado com o fotógrafo para iniciar a jornada de 24 horas pelo Minhocão e já topei com vinte garotos maltrapilhos sob a mira da arma de um policial. Era meio-dia em ponto de sábado (8). Como a cena ocorria na alça de acesso ao elevado, não foi possível parar o carro para entender o motivo da abordagem. Segui em frente e logo comecei a pé o périplo pelos baixos do viaduto que dois dias antes havia voltado às manchetes dos jornais, quando o prefeito Gilberto Kassab anunciara o desejo de colocar abaixo a via erguida em 1971 para ligar as zonas Leste e Oeste.
Depois de conversar com Adib Youssef, um dos mais antigos comerciantes do pedaço — há 61 anos ele tem uma loja de cama, mesa e banho na Rua Amaral Gurgel —, fui surpreendido por um jovem bem-vestido, camisa pólo vermelha, tênis Nike e nitidamente drogado. Ele se aproximou, balbuciou algo incompreensível e se afastou. Da porta da loja, Youssef cumprimentou a enfermeira Carmen Almeida, que passeava com Terry, seu beagle bem nutrido. “Onde vão colocar essas crianças, meu Deus do céu?”, ela pergunta. A enfermeira diz ter visto “criança nascer e gente morrer” da sacada de seu apartamento e já levou adolescente para parir no hospital. “Elas preferem dar à luz na rua, porque têm medo de que lhes tirem o bebê.”
Percebo estar sendo vigiado de longe pelo tal rapaz da camisa vermelha. Ele me olha fixamente e dispara em minha direção. Arrisco um diálogo. Diz se chamar Sami e, sem que eu perguntasse, conta que pode me levar ao seu vendedor de crack. Com medo, topo. Poderia, quem sabe, render uma entrevista. Mas ele se arrepende e no meio do caminho me deixa falando sozinho. O maranhense Mário Araújo Miranda, funcionário de uma fábrica de móveis perto da esquina com a Rua Jaguaribe, garante não ter problema com os usuários de drogas, muito menos com os moradores de rua. “Mas não tem madame que pare o carro aqui para comprar”, afirma. “Na nossa filial, na Rua Santo Antônio, já foi até a Glória Menezes.” Ele lembra que meses atrás encontraram um corpo na praça ao lado do terminal de ônibus, no Largo Santa Cecília, sob o Minhocão. Sigo até lá e vejo o local coberto pelo mato e fechado com grades de ferro.
Agliberto Lima
No sábado à noite, o que se vê no Minhocão é consumo de crack e prostituição
O terminal, por outro lado, parece fora de lugar. Apesar das poucas goteiras, é limpo, organizado e tem o jardim muito bem cuidado. Com um buquê de flores para presentear a mãe, a tesoureira Maria do Carmo Soares conta que poderia ir a pé até seu destino, mas não arrisca andar sob o Minhocão. Prefere o ônibus. Já no trecho sobre a Avenida São João, a sujeira, a quantidade de moradores de rua e, consequentemente, o cheiro de urina e fezes são ainda mais presentes. O chileno Abel Baltazar Basculan Galvez, de 62 anos, dono do antiquário Different, precisa lavar todo dia a fachada de sua loja. “Cheira mal. Em sete anos, imagine quanto eu já gastei de água.” Ele reclama das igrejas e instituições que distribuem alimentos. “Se querem ajudar, que deem casa com banheiro a essas pessoas.”
Barulho de freada! Às 14h30, carro e moto se chocam na esquina da Avenida Angélica. Atropelada pelo automóvel quando esperava para atravessar, uma mulher está no chão. O trânsito para. A vítima passa bem. No cabeleireiro Ylux, não há acidente que acabe com a alegria de Eliane e Lenira de Souza, as proprietárias. A casa está cheia. Elas não acreditam que tenham algo a ganhar com o fim do Minhocão. “Aonde vamos caminhar à noite para manter esse corpinho?” Alguns metros adiante, a Ótica Regina está vazia. Seu dono, o advogado Luis Solazzi, 71 anos, que começou lá aos 11, como office-boy, lê livros jurídicos enquanto espera algum cliente. “Já tentei vender a loja. Pedia 120 000 reais. Ninguém se interessou.”
Por volta das 17h30, quando começa a escurecer e o frio aumenta com a chegada da chuva, uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) chega para resgatar um morador de rua nas imediações do terminal de ônibus. É um cadeirante. Pelo rádio, a enfermeira informa se tratar de “um homem de 44 anos em péssimo estado de higiene, com diarreia e feridas no glúteo”. Ele é levado ao Pronto Socorro da Barra Funda.
A chuva aumenta. Cascatas desabam do Minhocão. As calçadas laterais esvaziam-se, mas o movimento se concentra no passeio central. Às 19h15, um motoqueiro não consegue desviar-se do buraco aberto no asfalto na esquina com a Marquês de Itu. A moto perde o farol, mas ninguém se machuca. Minutos depois, Carlos Cimino, agente da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), chega para sinalizar o buraco. “Quando chove muito, a tubulação não dá vazão e a água levanta o asfalto”, explica.
João Batista, sócio do Amigo Leal, bar que há 43 anos ocupa o número 165 da Rua Amaral Gurgel, espera o movimento que não vem. Junto com outros lojistas, ele paga a seguranças para afastarem os moradores de rua. Daí o fato de os outros pedaços sob o Minhocão concentrarem mais sem-teto. Ele aponta para o pilar do viaduto, bem em frente ao restaurante, com o desenho de um vaso sanitário. “Você acredita que a prefeitura diz não poder apagar porque é grafite?” Por volta das 20 horas, o movimento do hotel na esquina da Rua Major Sertório aumenta. Casais, travestis e solitários entram e saem.
Na porta, uma faixa anuncia o programa de fidelidade: após cinco hospedagens, a sexta é grátis. O jovem de camisa vermelha desce as escadas do hotel. Parece ainda mais alterado. A essa altura, a Rua das Palmeiras assume o posto de nova Cracolândia. Dezenas de pessoas fumam a droga. Bem mais adiante, na Avenida São João, uma pequena aglomeração toma conta do Boteco do Caê. No bar, voltado para o público GLS, no mesmo local onde funcionava a badalada discoteca Susi in Transe, começa o show de lançamento do CD do desconhecido cantor Felipe Defall. “Abri meu negócio aqui porque a região não é perigosa como dizem”, assegura Caê Bianchin, que já teve bar em Pinheiros e no Largo do Arouche. “Mas que é feio, isso é.”
Agliberto Lima
No domingo de manhã, há pessoas fazendo exercício ou simplesmente passeando, como a advogada Cristina Gusso, com o marido, André, e os filhos, Francisco e Tomás
À meia-noite, as calçadas lotam. Uma contagem sem maior esmero mostra mais de 200 sem-teto sob o viaduto de 3,5 quilômetros de extensão. A Cracolândia ferve. Na Avenida General Olímpio da Silveira, também sob o Minhocão, carros importados estacionados onde antes funcionava um bingo chamam atenção. O local agora é uma sinuca. De primeira, com 21 mesas, todas oficiais ou profissionais. O Bahrem Snooker Bar abriu as portas em julho do ano passado e chega a receber 400 pessoas aos sábados. “Já vieram aqui a Helena Ranaldi, o Celso Freitas, a Lucélia Santos, o Belo…”, gaba-se o proprietário, Amarildo Duarte. Do lado de fora, um caminhão da prefeitura recolhe o entulho largado na calçada. O gari Flávio Felix coleta 5 toneladas por noite apenas sob o viaduto.
Por volta da 1h30, caminhões de feira começam a estacionar na Rua das Palmeiras. Resolvo parar no posto de combustível da esquina da Rua Major Sertório para descansar. Uma garota de 13 ou 14 anos entra na loja de conveniência e compra um maço de cigarros. Logo depois, outra menina da mesma faixa etária, maltrapilha, descalça, aparece e tenta vender um capacete vermelho. “Ela queria qualquer 10 reais”, diz o frentista. Quando a fome aperta, às 2h30, o Amigo Leal já está fechado. O Ponto Chic, no extremo oeste do viaduto, também.
O Minhocão entrega-se, definitivamente, às drogas e à prostituição. Às 4 horas, um rapaz na faixa dos 30 anos de idade, bem-vestido, com cara de classe média (pelo menos), aparece no posto. A cada meia dúzia de passos, coloca a mão no bolso e tira três ou quatro moedas. Atrapalha-se. Deixa os poucos níqueis cair e mal tem coordenação para se agachar e apanhá-los de volta. Pede dinheiro a quem cruza seu caminho. Está perdido. Entregue ao vício.
O trânsito diminui — quando está aberto (das 6h30 às 21h30 de segunda a sábado), o elevado chega a receber 21 000 veículos nos horários de pico. Fico impressionado com a quantidade de motoristas com bebidas na mão — uma operação bafômetro ali seria tiro e queda. Por volta das 6 horas, quando começa a clarear, a sujeira fica mais evidente. A esquina da Rua Apa lembra um cenário de guerra. Moradores de rua, muitos com idade avançada, dividem espaço com o lixo. Caminham sem direção. Parecem buscar comida no chão. A garoa e o frio deixam a cena ainda mais dramática.
Perto da Rua da Consolação, a fumaça denuncia os jovens marginais queimando o fio de cobre furtado durante a noite. Eles vendem o metal a ferros-velhos para comprar crack. No outro extremo do viaduto, a Igreja Batista Ágape abre as portas. Por meia hora, eu me sento em seus bancos para ver a beleza dos vitrais. Independentemente de religião ou religiosidade, o lugar envolve e passa uma calma gigante após uma madrugada triste. Subo na via elevada, fechada para o trânsito. A baixa temperatura espanta, mas não evita que as pessoas venham fazer exercícios físicos.
O Minhocão mostra seu lado bom. “Não é o melhor lugar do mundo, mas é perto de casa e as crianças podem correr”, conta a advogada Cristina Gusso, que aproveitava o espaço com o marido, André, e os filhos, Francisco e Tomás. Caminho de ponta a ponta e desço até a feira livre, que a essa hora, quase 11 da manhã, está lotada. Vou ao local onde durante a madrugada o crack reinou. Um cachimbo quebrado, papelotes e outros vestígios denunciam o consumo da droga. Atrás da barraca de frutas, uma menor ainda dorme sobre um colchão velho. Está molhada. Tosse. “Vamos chegando, freguesia. Olha o abacaxi”, grita o feirante.
Para descascá-lo, fica evidente que não basta derrubar o Minhocão. “Não se trata de problema estético, mas social. Seu desaparecimento, logicamente, não vai acabar com moradores de rua nem com o consumo de droga”, afirma a socióloga Aline de Oliveira, que faz seu cooper todos os domingos no local. “É preciso de uma vez por todas uma política de assistência a essas pessoas.” É meio-dia. Domingo. Em meio a seres humanos que ainda dormem nas calçadas, famílias com flores na mão seguem para o almoço de Dia das Mães.