Prefeitura anuncia a construção do Parque Minhocão
Após décadas de discussões, a prefeitura decide construir um parque sobre o polêmico Elevado João Goulart, que corta o centro da cidade por 3,4 quilômetros
O Elevado Presidente João Goulart, mais conhecido como Minhocão, está prestes a passar por uma transformação profunda. Na última semana, o prefeito Bruno Covas (PSDB) anunciou a criação de um parque linear em parte dos 3,4 quilômetros de extensão da via. Em uma primeira etapa, ele ocupará 900 metros da pista, nos dois sentidos sobre a Avenida Amaral Gurgel. No total, estão previstos 17 500 metros quadrados de jardins — o equivalente a quase três campos de futebol —, além de floreiras e deques, dispostos em módulos pré-fabricados. O espaço, cuja inauguração está prevista para até o fim do ano que vem, é uma das principais apostas de Covas para deixar sua marca na capital, nos moldes do Cidade Limpa, do ex-prefeito Gilberto Kassab (2006-2012), ou da Paulista Aberta, de Fernando Haddad (2013-2016). “Vamos integrar o Parque Minhocão a outros espaços da região, como a Praça Roosevelt e o Parque Augusta”, promete o tucano.
O investimento previsto de 38 milhões de reais (em estimativa bem otimista) será bancado com recursos municipais. A primeira etapa do Parque Minhocão vai compreender um trecho da saída da Ligação Leste-Oeste ao entroncamento com a Avenida São João. Quem seguir no sentido dos bairros de Perdizes e Barra Funda só poderá pegar o elevado por um acesso próximo à Rua Helvétia, na região dos Campos Elíseos. Até esse ponto, o motorista deverá seguir pela Avenida Amaral Gurgel. No outro sentido, o caminho em direção à Zona Leste será interrompido na passagem para a Rua Sebastião Pereira, na Vila Buarque.
O projeto, baseado em um estudo do urbanista e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, prevê a instalação de nove acessos para pedestres ao longo de todo o elevado. Serão construídos elevadores, rampas e escadas tanto no trecho de 900 metros do parque quanto nos demais. A parte restante continuará a ser usada para lazer nos fins de semana.
A reforma também inclui a construção de uma ciclovia no meio da pista e arborização nas laterais. Nesse segundo ponto, grandes floreiras verdes deverão aumentar a privacidade dos moradores vizinhos à imensa estrutura de concreto. Não é de hoje que eles reclamam dos olhares intrusos de motoristas, passageiros e pedestres. “O projeto contempla vegetação e um ambiente de praia para a população do entorno se apropriar da área”, afirma Lerner. O arquiteto também concebeu a instalação de piscinas ao longo da via, mas a prefeitura optou por um modelo “mais pé no chão”. Serão instaladas estruturas de bambu para ampliar as sombras e áreas de descanso. Shows e apresentações artísticas poderão ser realizados em palcos provisórios. Para o futuro, outra medida prevê a construção de passarelas de ligação entre o Minhocão e alguns prédios vizinhos. “A implantação dessa segunda etapa ficará para o próximo prefeito”, explica Covas.
Há, no entanto, dúvidas quanto à capacidade da prefeitura em conservar corretamente a nova arborização que surgirá por ali. “A mesma administração que anuncia esse projeto não dá conta do jardim vertical da Avenida 23 de Maio”, afirma o botânico Ricardo Cardim. Em setembro do ano passado, VEJA SÃO PAULO publicou reportagem em que mostrava que a iniciativa da gestão João Doria estava praticamente abandonada após a desistência da empresa encarregada da manutenção. “Aqueles painéis sofrem um problema crônico de falta de irrigação e o mesmo pode ocorrer no Minhocão.”
Enquanto prepara as ideias do novo parque na parte superior do velho elevado, a prefeitura estuda o que fazer com a úmida, sombria e má ventilada área inferior, onde estão localizadas as avenidas Amaral Gurgel e São João. A proposta é abrir vãos na estrutura existente para que a iluminação natural irrompa em meio ao concreto. No lugar da ciclovia construída pela gestão Fernando Haddad, a intenção é instalar equipamentos públicos voltados a cultura e assistência social — a região é conhecida pela grande quantidade de moradores de rua e usuários de drogas.
Outra preocupação da administração municipal diz respeito ao trânsito. Hoje 78 000 veículos circulam diariamente pelo Minhocão. “Os próximos estudos vão contemplar a necessidade de desvios e eventuais novos traçados das vias no entorno”, afirma o secretário de Urbanismo e Licenciamento, Fernando Chucre. Mudanças nos semáforos e no sentido de algumas ruas também serão objeto de análises pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), mas especialistas veem as medidas com ressalvas. “Os motoristas que utilizam o elevado apenas como passagem para outras regiões serão desviados pelos aplicativos para outras vias. No caso de quem se destina aos bairros do entorno do Minhocão, eles enfrentarão congestionamentos com duração maior que a habitual”, estima o engenheiro de tráfego Sérgio Ejzenberg. “Ou seja, não só o trânsito vai piorar muito na já congestionada parte de baixo, como também continuaremos com o problema da poluição, que seguirá encaixotada, indo direto para os apartamentos”, completa.
Inaugurado em 25 de janeiro de 1971, durante a ditadura militar, por Paulo Maluf, o elevado entrou na mira de diversos outros prefeitos nas últimas quatro décadas. Em 1976, já com sinais da degradação acelerada do entorno, Olavo Setubal proibiu a circulação de veículos ali entre meia-noite e 5 horas. Onze anos depois, o arquiteto Luiz Antônio Pitanga do Amparo apresentou a Jânio Quadros um projeto para transformar o então Elevado Costa e Silva (o nome foi alterado em 2016) no maior jardim suspenso da América Latina. Em 1989, Luiza Erundina ampliou o fechamento, desta vez estabelecido para o período entre 21h30 e 6h30. Na segunda passagem de Maluf pela prefeitura, em 1996, o bloqueio para veículos começou a ocorrer em domingos e feriados. Em gestões posteriores, houve concursos de melhores projetos para a derrubada das estruturas (José Serra, em 2006) e até promessas de construção de um túnel para enterrar a linha férrea já existente de modo a suprir ao tráfego (Gilberto Kassab, em 2010).
Foi também no governo de Kassab que o Minhocão passou a ser utilizado durante a Virada Cultural. Em 2012, milhares de pessoas foram até lá prestigiar a concorrida galinhada do chef Alex Atala. A demanda enorme provocou confusão. A partir dali, o Ministério Público acatou pedido da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, que alegaram falta de segurança, e proibiu eventos no local. “Do jeito que está, não é seguro”, afirma o promotor César Martins, da Promotoria de Habitação e Urbanismo. “Com o anúncio do novo parque, vamos analisar as condições de segurança, conforto e comodidade”. A prefeitura afirma que vai aumentar o tamanho das grades e priorizar a acessibilidade.
A ideia de transformar uma das mais degradadas e criticadas vias de São Paulo em parque suspenso tem como principal modelo o High Line, em Nova York, criado em 2009. Ali, uma antiga linha férrea virou um ímã para turistas e investimentos. Em Paris, a Promenade Plantée também utiliza uma passagem desativada de trens para abrigar uma passarela verde. Abaixo da estrutura há lojas e uma galeria de arte. “Ambos são projetos inspiradores, mas pouco têm a ver com o nosso Minhocão”, diz o mestre em urbanismo Mauro Calliari, referindo-se ao fato de as duas passagens serem distantes do centro das respectivas cidades e não seguirem o curso de uma via específica.
Esses exemplos, no entanto, não constituem a única alternativa possível ao similar paulistano. Se o projeto da prefeitura sair de vez, vai dar fim a uma disputa tripla que perdura há décadas. Em 2014, uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que 53% dos paulistanos apoiavam a manutenção do elevado como é hoje e um grupo bem menor, de 23%, era favorável à criação do parque. Outros 7% defendiam sua demolição. “A doença é o Minhocão em si, e não o uso que se faz dele. Aquilo deveria vir abaixo para que a cidade recupere seu chão”, afirma o urbanista Valter Caldana, professor de arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, integrante do último time. Essa opção encontra eco em experiências de outras cidades. Em Seul, na Coreia do Sul, o viaduto Cheonggyecheon, de 5,8 quilômetros, foi ao chão em 2005. No lugar do concreto, um rio até então canalizado foi recuperado, com um parque linear em volta.
No Rio de Janeiro, a demolição do Elevado da Perimetral, em 2014, fez a área do porto ser reinserida na paisagem carioca. A favor desse argumento está ainda o valor a ser gasto. A demolição do Minhocão custaria cerca de 30 milhões de reais, 20% a menos do que o valor que a prefeitura precisaria desembolsar para a construção do parque. “O Minhocão tem hoje mais de 1 500 pontos de infiltração. Há décadas não vemos manutenção ali”, reclama o tradutor Francisco Machado, outra voz eloquente do grupo pró-demolição.
Mesmo com as dúvidas justificadas na terra em que viadutos racham com frequência, essa turma terá de se contentar com o pente fino que a prefeitura promete passar na edificação. A batalha parece ter sido vencida por seus opositores. “As pessoas definiram o uso do Minhocão ao longo dos últimos anos. Queremos que esse espaço, parte da cidade desde 2016, seja garantido definitivamente”, afirma o artista Felipe Morozini, diretor da Associação Parque Minhocão, criada há seis anos. Ele se refere a um projeto de lei de autoria de oito vereadores, aprovado pela Câmara em 2016 e sancionado pelo então prefeito Fernando Haddad. O texto previa que o elevado se chamasse Parque Minhocão quando estivesse fechado para carros. “Estamos vendo a transformação de um velho e feio elevado de carros em um simples parque para as pessoas”, diz o vereador José Police Neto (PSD), membro da associação e um dos autores da lei.
O novo Minhocão
O parque será criado entre a Praça Roosevelt e o cruzamento com a Avenida São João
9 acessos para pedestres serão abertos
900 metros será a extensão da fase inicial do projeto
38 milhões de reais é o custo previsto para a reforma
2020 é o prazo estimado pela prefeitura para a entrega
Linha do tempo
Alguns dos fatos e eventos relacionados à história do principal elevado da capital
1970: A Praça Marechal Deodoro e a Avenida São João antes do viaduto
1971: Anunciado pelo prefeito Paulo Maluf, o Minhocão levou onze meses para ser finalizado
1976: A prefeitura restringe a circulação de carros no local entre meia-noite e 5h
1987: O primeiro projeto para transformar o Minhocão em jardim suspenso é apresentado ao prefeito Jânio Quadros
1989: A prefeita Luiza Erundina decide fechar o elevado de segunda a sábado entre 21h30 e 6h30
1996: O fechamento das vias do Minhocão é ampliado pela prefeitura para domingos e feriados, durante o dia inteiro
2012: Evento gastronômico da Virada Cultural é marcado por confusão
2013: Um grupo de moradores funda a Associação Parque Minhocão para defender a criação de um parque suspenso
2014: O plano diretor inclui artigo sobre restrição de carros no elevado e posterior demolição ou transformação do viaduto
2015: A Câmara recebe lei que cria o Parque Minhocão e o prefeito Fernando Haddad inaugura ciclovia na Avenida Amaral Gurgel
2016: Os primeiros jardins verticais são instalados ao longo da via
2018: O prefeito João Doria sanciona lei que estipula as regras de funcionamento do Parque Minhocão durante a semana e nos fins de semana
Projeto em detalhes
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623.