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Construção de Memorial em sítio arqueológico vira impasse na Liberdade

Debate entre movimentos sociais, prefeitura e escritórios de arquitetura transbordou para as redes sociais e chegou a culminar em acusações de racismo

Por Guilherme Queiroz
17 nov 2023, 06h00
Da esq. para a dir,: Abílio Ferreira, Eliz Alves, Lucas Almeida e Roseli Coä, da comunidade da Capela (Leo Martins/Veja SP)
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Um debate que envolve a construção de um memorial de 4 milhões de reais, uma capela do século XVIII, um antigo cemitério de escravos, escritórios de arquitetura e o poder público toma conta de uma capela na Liberdade. O problema, que chegou a culminar em acusações de racismo nas redes sociais, parece longe do fim. O palco, que transporta para a vida real os embates vistos no mundo digital, é a vizinhança da Capela dos Aflitos, de 1774, ao fim da Rua dos Aflitos. O local arrecada fundos para um restauro que deve custar cerca de 2,5 milhões de reais e é o que restou da primeira necrópole paulistana, onde eram enterrados escravizados, indígenas e condenados à forca.

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Durante obras em um terreno de cerca de 400 metros quadrados lateral à capela foram encontradas em 2018 ossadas da época da escravidão. Em 2020, iniciou-se um processo de desapropriação da área e no final de 2022 a prefeitura anunciou um concurso para escolher o projeto do Memorial dos Aflitos. “O objetivo é que o espaço seja um memorial aos ancestrais indígenas e africanos, um local em que os remanescentes humanos sejam guardados de maneira correta”, explica Eliz Alves, 59, coordenadora da Unamca, a União dos Amigos da Capela dos Aflitos. “Também queremos que seja um centro cultural”, afirma a artesã indígena pataxó Roseli Coä, 53.

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Capela dos Aflitos, de 1774, ao fim da Rua dos Aflitos, na Liberdade (Leo Martins/Veja SP)

Em abril deste ano foi divulgado o vencedor: o projeto comandado por Eduardo Colonelli, do Escritório Paulistano de Arquitetura. Desde então, complicou. “O movimento da capela fez várias observações. A sugestão deles de construir as paredes usando terra do próprio local, que é um cemitério, foi algo que pegou”, lembra Abílio Ferreira, 63, do Instituto Tebas. “A proposta era de expor os remanescentes humanos em uma vitrine, algo que não concordamos”, afirma Lucas Almeida, 21, técnico em museologia. O projeto também previa intervenção em espaços da capela tombada. “Tinha a demolição do velário e da nossa lojinha, um absurdo”, diz Eliz.

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Um encontro foi realizado no fim de maio para discutir o projeto com a prefeitura, a comunidade e o escritório de arquitetura. Conforme os pontos discordantes eram debatidos, o clima esquentava. Uma discussão registrada em vídeo mostra o momento que a cuidadora infantil e indígena puri Rafaela Puri, 32, diz uma frase em puri, idioma do seu povo, e a arquiteta Ana Ditolvo, até então no projeto, pede a ela que “fale em português”. O momento vira corte nas redes sociais e repercute como racismo. Procurada, Ana Ditolvo não concedeu entrevista e afirmou por mensagens que recebeu ameaças de morte após a publicação do vídeo. Em nota, o escritório Fernando José da Costa Advo gados, que representa Ana, afirma que ela e a equipe foram “alvo de críticas, algumas inadequadas, por parte de interessados na edificação do memorial”.

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Foto de terreno de 400 metros quadrados que fica à direita da fachada da igreja e deve ser lar do Memorial dos Aflitos (Leo Martins/Veja SP)
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Após o episódio, o Paulistano realizou uma reunião de retratação com os frequentadores da capela. “Nós aconselhamos eles a se retirarem do processo”, afirma Eliz. “O Escritório decidiu não seguir adiante por reconhecer que é necessário aprofundar o entendimento das questões envolvidas nesse território”, diz a equipe de arquitetura.

A obra foi para o segundo colocado no edital, o escritório Carollo Arquitetura e Restauro, também responsável pelo restauro da capela. “Nos encontramos com o segundo colocado e houve uma recusa. A comunidade quer uma nova forma de escolha do projeto”, afirma Eliz. “Queremos arquitetos negros e indígenas”, diz Rafaela Puri. O movimento pede a revogação do concurso. “Chegamos a propor que a autoria fosse coletiva. A gente respeita (a decisão). Mas não tenho formas legais de desistir do edital”, afirma Igor Carollo, 26, um dos sócios do escritório.

A secretária municipal de Cultura, Aline Torres, que não concedeu entrevista, foi uma das figuras presentes no processo e afirmou em uma das reuniões que a verba “precisa ser executada este ano para contratar o projeto”. Em nota, a pasta afirmou que possui 4 milhões de reais reservados em 2023 para o Memorial. A secretaria também afirma que em 24 de outubro houve encontro com a equipe do Carollo e a comunidade da capela em que “foram colhidas ponderações dos movimentos da sociedade civil acerca do projeto, que serão analisadas pelo escritório. O contrato com o escritório ganhador foi assinado e o projeto executivo deve começar em breve”.

Publicado em VEJA São Paulo de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868

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