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OLÁ,
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Melhor não

Digamos que ele tinha relações com o mistério. Não fazia alarde, nem pose, era discreto nos possíveis erros e nos comprovados acertos. Nunca foi de dizer: “Eu sabia”, “Eu avisei”. Também nunca se atribuiu relações privilegiadas com qualquer divindade ou entidade, não jogava para cima a responsabilidade pelas suas intervenções. Se alguém disse “Foi Deus […]

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h46 - Publicado em 18 set 2009, 20h18
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  • Digamos que ele tinha relações com o mistério. Não fazia alarde, nem pose, era discreto nos possíveis erros e nos comprovados acertos. Nunca foi de dizer: “Eu sabia”, “Eu avisei”. Também nunca se atribuiu relações privilegiadas com qualquer divindade ou entidade, não jogava para cima a responsabilidade pelas suas intervenções. Se alguém disse “Foi Deus quem avisou”, não foi ele. Nunca atuou por encomenda nem se preparou: o que acontecia, acontecia quando acontecia.

    Na aparência, uma pessoa normal, simples. Discreto no vestir, jeans e camisa social, de cores sempre neutras, limpos e bem passados; no calçar, sempre sapatos pretos e engraxados; discreto na barba e no cabelo, sempre aparados; no falar, cordato, econômico e em tom audível; no mover-se, meio lento, como se desse passagem para alguma coisa que vinha com mais pressa. Ria pouco, mas não era mal-humorado nem triste. Enfim, não chamava atenção: um traço, um ponto, um lápis.

    Apresentou-se para trabalhar como motorista. No currículo: ex-guarda municipal. Gostaram dele na entrevista, olho no olho, sem atrevimento. Notaram certa elegância no gesto de entregar os documentos e recebê-los de volta.

    A primeira vez que perceberam a sua diferença – estou evitando a palavra dom, não sei por quê – foi num dia de jogo do Brasil. Ele estava trepado numa escada, prendendo uma guirlanda no teto da sala do apartamento, e o patrão, já com a mão na porta, disse que ia à garagem buscar a bandeira que havia esquecido no carro. Lá de cima ele bradou enérgico, fora do seu normal:

    – Melhor não!

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    Estranheza geral na sala. O patrão voltou, já meio encrespado:

    – Como é que é?

    Ele, como se caísse em si, repetiu mais brando, e consertando:

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    – Melhor não. Daqui a pouco eu pego.

    A estranheza não se desfez, os da família entreolhando-se, e daí a pouco se ouviu um grande estrondo. O elevador havia despencado – dois feridos graves, um em coma.

    Não soube explicar, disse apenas que fora um impulso. Dias seguidos perguntaram, e ele, simples: “Não sei, foi um repente”. Tiveram dificuldade até de saber se já havia acontecido, ele achava que sim, mas não registrava. Lembrava-se de um dia, porque lhe custou o emprego. Acordou e não foi para a Guarda, fazer a ronda: “Melhor não”, veio na sua cabeça. Naquele dia, bandidos do PCC barbarizaram a cidade matando policiais e bombeiros, e em seguida ele foi demitido por faltar ao dever.

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    O patrão começou a chamá-lo de Anjo da Guarda. Ele pediu que o chamassem pelo nome, não brincava com essas coisas. Mas o patrão gostava de apelidos; o máximo que fez foi abreviar, e ele ficou sendo o Da Guarda.

    Da Guarda raramente dizia “Melhor não”. Repararam que ele usava a expressão naqueles momentos em que parecia ter levado um imperceptível choque, sua cabeça dava um milimétrico tique. Quando acontecia, a sequência era sempre parecida: alguém propunha fazer uma coisa, ele dava o tique, “Melhor não”, e alguma coisa ruim para a família era evitada. Sair de carro para tal lugar: “Melhor não” – tromba-d’água e enchente com morte na região aonde iam. Brinquedo gigante no parque: “Melhor não” – um cabo de aço se parte, feridos. Atravessar a rua, na faixa, sinal verde para pedestre: “Melhor não” – um automóvel acelerado não respeita o sinal. Uma viagem para esquiar: “Melhor não” – avalanche. Uma compra: “Melhor não”. Em dois anos, foram salvadoras as vezes em que Da Guarda se pôs entre uma ação e um desastre com pessoas da família.

    Um dia, anunciou que precisava ir embora. Não disse que queria, disse que precisava. Foi inútil apelar, oferecer aumento, perguntar se havia algum problema. Suave como sempre, Da Guarda esquivou-se:

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    – Eu tenho de ir.

    Insistiram: por que não ficava?

    – Melhor não.

    Arrepiaram-se diante da expressão fatal. Ao partir, o que teria ele evitado que acontecesse? Sentiram-se desamparados.

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