“Minha vida virou de cabeça para baixo. Nunca pude imaginar que eu seria o motivo de uma passeata capaz de parar uma faixa de carros da Avenida Paulista.” Com um sorriso tímido como forma de conter o orgulho e a surpresa, o ginecologista e obstetra paulistano Jorge Kuhn, de 57 anos, tem tentado se acostumar à nova rotina de médico-celebridade. No domingo (17), cerca de 1.500 pessoas — a maioria gestantes e mães acompanhadas dos filhos — seguravam cartazes com a frase “I Love J.K.” e bradavam em alto e bom som slogans como “O Jorge Kuhn é meu amigo: mexeu com ele, mexeu comigo”. Algumas choraram ao cumprimentá-lo e, emocionadas, formaram filas para tirar uma foto ao seu lado.
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Curitiba, Salvador e Recife engrossaram o coro de outras capitais onde passeatas semelhantes tomaram as ruas. Todas as pessoas presentes marcharam com o mesmo propósito: enaltecer a conduta do profissional. Ele é um dos maiores defensores da tese de que as mulheres com uma gravidez tranquila e sem histórico de doenças como diabetes e hipertensão podem dar à luz em casa, sem a necessidade de correr para a maternidade. “A taxa de mortalidade nos partos domiciliares e nos realizados em hospitais é a mesma, em torno de 1,5%”, afirma Kuhn, citando um estudo publicado em 2009 pelo conceituado “British Journal of Obstetrics and Gynecology”. As conclusões foram baseadas na análise de cerca de 530.000 partos realizados na Holanda. Esse tipo de pesquisa, no entanto, é insuficiente para acabar com a polêmica que há em torno do assunto. Para muitos especialistas, aqui e fora do Brasil, a prática representa uma temeridade. “Ter filho em casa, sem estrutura, é coisa dos tempos da caverna”, diz Renato Kalil, um dos obstetras mais conhecidos de São Paulo. “O avanço da medicina não pode ser ignorado.”
O assunto alcançou uma repercussão inédita por aqui após uma entrevista concedida por Kuhn no dia 10 ao programa “Fantástico”, da Rede Globo, na qual defendeu sua causa. Incomodados com a história, representantes do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) solicitaram à seccional de São Paulo, onde está registrado o diploma do médico, a abertura de uma investigação por desvio de conduta. “Ele foi antiético, pois sabe que essa prática põe em risco a saúde da mãe e do bebê”, acusa o obstetra Luis Fernando Moraes, conselheiro do Cremerj. Já há algum tempo, as principais entidades da classe no país vêm se posicionando claramente contra o procedimento.
Em sua carreira de 34 anos, Kuhn calcula ter realizado cerca de 100 partos domiciliares. “Nunca tive nenhum problema mais grave”, declara. Nessas ocasiões, cobra até 17.500 reais pelo trabalho e, entre outros cuidados, além de uma equipe médica formada por pelo menos três profissionais, seleciona residências localizadas a menos de vinte minutos de um hospital, deixando tudo preparado para uma eventual emergência. No entanto, ele diz que no fim do ano passado interrompeu a prática, para não sofrer represálias: “Realizo partos naturais, mas apenas em maternidades”.
Apesar disso, continua se posicionando com firmeza a favor de as gestantes terem o direito de decidir onde dar à luz. A consequência da postura será enfrentar agora um processo que, em caso de condenação, pode lhe render uma reprimenda pública ou, na hipótese mais drástica e um tanto quanto remota, a suspensão de sua licença.
Coordenador do departamento de obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e com especialização em parto natural na Alemanha, Kuhn virou o símbolo na cidade da ala mais radical de especialistas que tentam combater a chamada “indústria da cesariana”. Do total de partos na capital, 53,9% são realizados por cirurgia, quase quatro vezes a média considerada ideal pela Organização Mundial de Saúde. Boa parte deles ocorre a pedido das gestantes, que preferem fugir das dores das contrações. Devido a fatores como a sua própria conveniência e a baixa remuneração dos planos de saúde — que pagam, em média, 500 reais por um parto, seja natural, seja cirúrgico —, muitos médicos não apenas aceitam o jogo como até incentivam o procedimento.
“Sou visceralmente contra isso, mas acho compreensível que muitos colegas evitem passar oito horas ao lado de uma mulher sentindo dores para receber tão pouco”, afirma o obstetra e ginecologista Carlos Eduardo Czeresnia, da clínica Célula Mater. Ele cobra 17.000 reais por parto, incluindo a equipe completa, e diz optar, sempre que possível, pelo procedimento natural. “Não considero absurda a ideia de as mulheres desejarem realizar o parto em casa, mas acho complicado pôr isso em prática numa cidade como São Paulo”, comenta. “Devido ao trânsito, há o risco de não conseguir chegar a tempo a um hospital no caso de uma emergência.”
A advogada Bruna Betoli quase passou por tal sufoco. Ela estava havia oito horas em trabalho de parto em sua casa, na Vila Formosa, Zona Leste, quando as duas obstetrizes disseram que sua filha precisaria do auxílio de um vácuo extrator, parecido com o fórceps, para nascer. Bruna saiu às pressas de carro rumo à unidade do Hospital São Luiz no Itaim Bibi, onde Lila, hoje com 1 ano e 8 meses, nasceria de parto normal com o auxílio de um médico. Grávida novamente, com quatro meses de gestação, quer tentar mais uma vez a experiência de dar à luz na sua residência. “Sonho em ter meu filho num ambiente íntimo”, explica. Algumas maternidades oferecem estrutura para partos humanizados, como salas com iluminação baixa, som ambiente e banheiras onde a paciente pode relaxar durante as contrações. Nina, de 9 meses, filha do casal de administradores Mauricio Sartori e Tatiana Zambon, veio ao mundo dessa forma, também no Hospital São Luiz. “Foi tudo muito tranquilo”, conta a mãe.
São mulheres como ela que engrossam a fileira que defende hoje o obstetra Jorge Kuhn da censura dos outros médicos. Não é a primeira briga que ele compra devido a suas convicções. Nas maternidades Santa Joana e Pro Matre, virou persona non grata e está descredenciado a trabalhar. “Eles incentivam o uso de anestesia em quase todos os procedimentos”, conta. “E eu discordo completamente disso.” Pai de três filhos (nascidos em partos normais) e casado com uma ginecologista e obstetra, o médico diz estar preocupado com o processo no conselho de ética. “Não posso ser penalizado por defender uma escolha que cabe às mulheres”, argumenta. “Elas, e não os médicos, têm o direito de protagonizar o próprio parto.”
RAIO-X
O currículo do profissional que está no centro da discussão
■ Nome: Jorge Kuhn
■ Idade: 57 anos (nasceu pelo método fórceps no Hospital das Clínicas)
■ Formação: medicina pela Universidade de Mogi das Cruzes e mestrado em obstetrícia pela Escola Paulista de Medicina
■ Atuação: faz consultas particulares por 400 reais e gratuitas no Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belenzinho. É professor de obstetrícia na Unifesp
■ Honorários: cobra 7.000 reais pelo parto humanizado. Se a paciente quiser toda a sua equipe, esse valor sobre para 17.500
■ Número de partos realizados em casa e no hospital: 10.000 (10% foram cesarianas)
Nascimento com hora marcada
As cesarianas ocorrem numa proporção quatro vezes superior à considerada ideal pela Organização Mundial de Saúde
176.464 partos foram realizados em São Paulo em 2011
95.235 foram cesarianas (53,9% — a Organização Mundial de Saúde considera apenas 15% o ideal)
80.195 foram naturais em hospital (45,4%)
643 foram naturais em domicílio (0,36%)