O diretor canadense Guy Maddin faz sempre o mesmo comentário quando pedem para que ele opine sobre a comédia muda “O Artista”, vencedora do Oscar deste ano: “Odeio, mas tenho medo de amá-lo”. O cineasta ainda não assistiu ao sucesso do francês Michel Hazanavicius, mas, desde o início do ano, é provocado a falar sobre o assunto. A insistência dos jornalistas tem explicação. Há mais de duas décadas, Maddin faz filmes com o visual (e o espírito) de produções dos anos 1920 e 1930.
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Ganhar uma estatueta dourada, porém, não é com ele. O aspecto experimental de sua filmografia, que vai buscar inspiração no surrealismo de mestres como Luís Buñuel, afasta o diretor das grandes plateias. Nenhum de seus dez longas-metragens teve exibição no circuito brasileiro, com acesso restrito a festivais. Nesta semana, a Mostra Sesc de Artes exibe, com entrada gratuita, duas dessas produções raras (“Archangel”, de 1990, e “Dracula: Pages from a Virgin’s Diary”, de 2002), além de uma seleção de quinze curtas-metragens.
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Com um estilo radicalmente pessoal, e repleto de estranhezas, Maddin chamou atenção em mostras internacionais graças a filmes como “My Winnipeg”, de 2007, e “Brand Upon the Brain!”, de 2006. O mais recente, “Keyhole”, estreou no Festival de Berlim deste ano. Em entrevista à VEJINHA.COM, o diretor de 56 anos, que já foi apelidado de “David Lynch do Canadá”, fala sobre um cinema que combina sonho, memória, melodrama e velhos filmes em preto-e-branco.
VEJA SÃO PAULO – Nos seus filmes, a influência do cinema mudo aparece de uma forma muito natural. De onde vem esse gosto pelos filmes silenciosos?
GUY MADDIN – Não tenho vocação para ser um ótimo técnico em coisa alguma. Quando comecei a fazer filmes, sabia que nunca conseguiria aprender muito sobre técnica. Então, fui atraído por um cinema tecnicamente primitivo. “A Idade de Ouro” (1930), de Buñuel, e “Zero de Conduta” (1933), de Vigo, foram feitos por diretores com total domínio sobre as próprias ideias, mas que não se preocupavam tanto assim com performances realistas, continuidade ou cenários. No caso desses dois gênios, essas supostas deficiências criavam uma espécie de realismo poético – um surrealismo da melhor estirpe. Quando vi os filmes desses dois titãs, foi amor à primeira vista. Pensei: por que não? Um pintor pode ir e voltar entre uma cor ou outra, entre pincéis maiores e menores… Por que um diretor de cinema não pode voltar à época em que os filmes começaram a falar?
VEJA SÃO PAULO – O senhor estudou os filmes desse período?
GUY MADDIN – Sim, mas só quando comecei a fazer os meus. Passei a pesquisar mais atentamente os longas da transição entre cinema mudo e falado. Acredito que um diretor ganha mais liberdade quando percebe que pode usar o vocabulário de qualquer época da história do cinema. E, nesse caso, é uma história curta.
VEJA SÃO PAULO – Quando “O Artista” ganhou o Oscar, muito se falou sobre a redescoberta do cinema mudo por uma nova geração. O senhor acredita que as homenagens aos filmes silenciosos podem instigar jovens cineastas a pesquisar essa época?
GUY MADDIN – Talvez, mas não me importo. Acredito que seja algo bom. Meu filme favorito de 2011 foi “Missão: Impossível 4”. É um filme barulhento, com muitos diálogos – muitos gritos até. Há tantos filmes para amarmos… Fico feliz ao saber que mais pessoas passaram a conhecer o cinema mudo graças a “O Artista”, mas não acho que alguém vá criar um grande hábito de assistir a essas produções antigas por causa dele.
VEJA SÃO PAULO – Existe um intervalo de doze anos entre os filmes “Archangel” e “Dracula: Pages from a Virgin’s Diary”, que serão exibidos na Mostra Sesc de Artes. No período entre esses dois projetos, o seu cinema mudou?
GUY MADDIN – Evoluí muito durante esses doze anos, mas esse processo de aprendizagem acabou me deprimindo. Acho que entendi demais como os filmes são feitos, e queria ser um cineasta primitivo. Então, tentei “desaprender” tudo para que pudesse recuperar um olhar infantil, capaz de ver o mundo de um jeito inusitado. Essa mudança ocorreu um ano antes das filmagens de “Drácula”, quando passei a filmar em Super-8. Em vez de mudar dos filmes em 16mm para 35mm, como geralmente acontece, decidi dar uma guinada e retornar ao começo de tudo.
VEJA SÃO PAULO – Por que o senhor decidiu rejeitar o 35mm, que é o modelo convencional de película usado no cinema?
GUY MADDIN – Com o 35mm eu via muito do mundo real, e meus cenário em papel marche ficavam expostos demais, sem charme, como se fossem fraudes. O Super-8 recarregou minhas baterias, turbinou meu entusiasmo, e o tamanho portátil das câmeras facilitou a filmagem de cenas em movimento. Isso foi necessário em “Drácula”. Em “Archangel” eu queria que tudo parecesse como se filmado dentro de um globo de neve, então a câmera teria que ficar parada. Ao contrário de “Drácula”, no qual eu precisava de movimento, muito movimento. O Super-8 fez com que eu me sentisse como uma criança criativa diante de potes de tinta – e eu adorei filmar todos aqueles vampiros!
VEJA SÃO PAULO – “Archangel” é o seu segundo longa-metragem, e veio depois de uma estreia muito bem recebida, “Tales from the Gimli Hospital”. O senhor ficou satisfeito com o resultado?
GUY MADDIN – Fiquei arrasado com a forma como “Archangel” foi recebido, em 1990. Em cada sessão, cerca de 85% dos espectadores abandonavam a sala. Acredito que ele faça mais sentido hoje, mas não que estivesse à frente de seu tempo, de forma alguma. Só acho que a natureza primitiva do filme destruiu a confiança que o público depositou em mim. Eles simplesmente prefeririam ter visto o filme de um diretor que conhecesse melhor a técnica de seu ofício. Eles pensaram que eu não sabia o que estava fazendo por causa das performances, dos figurinos, da gravação de som, da fotografia… Tudo isso parecia muito infantil e primitivo. Fiquei muito entusiasmado com a forma como recuperei o espírito das minhas primeiras memórias, por isso fiquei triste com a resposta do público. Para minha sorte, o filme hoje é até elogiado por algumas pessoas.
VEJA SÃO PAULO – “Dracula: Pages from a Virgin’s Diary” é inspirado em uma produção do Royal Winnipeg Ballet. Por que adaptar o espetáculo?
GUY MADDIN – Gostei muito de filmar algo que já existia há três anos. Os dançarinos me mostravam o que eu devia filmar, e eu precisava acompanhar o movimento deles. Por isso, voltei às câmeras pequenas, em Super-8. Contratei vários operadores de câmera para que os dançarinos não ficassem cansados. Em vez de fazer vários takes, filmei a mesma cena de vários ângulos. E eu adoro a forma como os dançarinos se movem quando não estão dançando. Percebi que os trechos da narrativa entre os números de dança se pareciam muito com performances de filmes silenciosos. Então, simplesmente adicionei intertítulos para que os espectadores não se perdessem. Curiosamente, não queria ter feito esse filme por achar que não saberia mover as câmeras corretamente. Só aceitei o trabalho por estar sem dinheiro. Mas adoraria fazer algo parecido novamente. Os dançarinos são as pessoas mais duronas do planeta.
VEJA SÃO PAULO – Na Mostra Sesc de Artes, serão exibidos quinze curtas-metragens que você dirigiu. No decorrer de sua carreira, o senhor transitou entre eles e os longas. Quais são os desafios de cada formato?
GUY MADDIN – Nunca precisei usar curtas-metragens como cartões de visita para convencer os produtores de que eu poderia fazer longas-metragens. Por isso, tive liberdade para ir e vir entre os formatos. Por que não? Às vezes, a ideia só tem gás para durar alguns minutos. E, quando o filme é curto, o público não precisa perder muito tempo com uma ideia que talvez nem seja tão boa assim. Também faço curtas só quando estou sozinho e quero trabalhar com uma turma de pessoas divertidas.
VEJA SÃO PAULO – Os elementos fantásticos dos seus filmes têm fortes traços autobiográficos. Como o senhor descobriu que o cinema poderia ser um bom veículo para revelar esse mundo pessoal?
GUY MADDIN – Nunca tive tanta imaginação para fazer um filme que não fosse autobiográfico. Também não tenho conhecimento técnico ou dinheiro para dirigir uma autobiografia realista. Então, não corro o risco de ver minha vida exposta na tela de uma forma literal. Isso mataria o público de tédio. Em vez disso, o que faço é criar uma versão melodramática, onírica, de sentimentos que experimentei. Procuro equivalentes, de uma forma ou de outra, para episódios que vivenciei. Não tento exagerar para que sejam mais divertidos ou palpáveis. Simplesmente tento expressar o que foi reprimido. Tudo o que faço é abraçar o melodrama da vida.
VEJA SÃO PAULO – O senhor está desenvolvendo um projeto de cem curtas-metragens chamado “Spiritismes”. Como ele começou e em que estágio se encontra?
GUY MADDIN – Sim, estou fazendo cem curtas-metragens em cem dias, todos em espaços públicos. Começamos com dezoito dias dentro do Centre Pompidou em Paris, em fevereiro. Cada curta é a minha adaptação de um filme perdido ou abortado. Todos os dias, eu e meus atores nos reunimos para convidar o espírito de um velho filme. Então, quando eles entram em transe e encenam as tramas, me faço de um fotógrafo de espíritos e registro tudo. Quando concluir os cem curtas, postarei-os em um website para que todos entrem em contato com os filmes perdidos.
Programação (no Sesc Vila Mariana):
Curtas de Guy Maddin: quinta (26), às 20h30. 16 anos. Grátis.
“Archangel”: sexta (27), às 20h30. 14 anos. Grátis.
“Drácula: Pages from a Virgin’s Diary”: sábado (28), às 20h30. 12 anos. Grátis.
Veja trailer de ‘Dracula: Pages of a Virgin’s Diary’
Veja o curta ‘Send me to the ‘letric chair’, de 2009