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OLÁ,

Governanta da família Pascolato é personagem de mostra

Em documentário, na exposição de fotos e vídeos Suíços no Brasil, Blanche Raval aparece relatando como veio parar em São Paulo

Por João Batista Jr.
Atualizado em 5 dez 2016, 18h57 - Publicado em 22 fev 2010, 10h37

Ainda bebê, aos 9 meses de vida, Costanza Pascolato pulou no colo dela e ali ficou. Em seus braços, atravessou fronteiras fugindo da Europa, durante a II Guerra Mundial. Michele, o pai da mulher hoje considerada referência de estilo entre os paulistanos, havia sido ministro de Mussolini e toda a família passou a correr perigo quando os aliados começaram a vencer o conflito. Em outras palavras: a indústria fashion deve muito a Blanche Raval, ainda que jamais lhe tenha prestado reverência alguma. Sem o auxílio da governanta que virou quase sua irmã, Gabriella Pascolato, mãe de Costanza, talvez não tivesse chegado aqui para fundar sua tecelagem, a Santaconstancia, nem trazido ao país a grife Salvatore Ferragamo.

Esse lapso tem sido remediado, ainda que apenas parcialmente, na exposição de fotos e vídeos Suíços no Brasil, em cartaz até 31 de março na Escola Suíço- Brasileira. Num documentário, Blanche aparece relatando como veio parar em São Paulo, hoje lar de 3 430 de seus conterrâneos imigrantes e descendentes naturalizados — aos 95, ela é a mais velha. Basta sentar para conversar e, num português entrecortado de palavras em francês, ela lembra sem hesitação a trajetória desde a cidade em que nasceu, Porrentruy, até a vida na capital paulista. Datas, cenários e situações permanecem frescos na memória, numa lucidez impressionante para sua idade. Aos 5 anos, já havia perdido mãe e pai, que foram duas dos 25 milhões de vítimas da gripe espanhola. No orfanato em que foi criada, obteve um diploma de governanta. A demanda por essas profissionais, sobretudo as de origem suíça, fluentes em francês e alemão, era alta entre as famílias europeias abastadas. “Também éramos mais rigorosas.”

Foi no verão de 1940, aos 26 anos de idade, que seu caminho cruzou o dos Pascolato — antes havia trabalhado para três famílias. O local da entrevista foi a fazenda dos pais da futura patroa, nos arredores de Roma. “Contratei-a na hora”, lembra Gabriella. “Duas governantas já tinham sido chamadas sem que Costanza, então ainda filha única, esboçasse simpatia.” Cinco anos mais tarde, Blanche ajudou a atravessar a primogênita e seu irmão, Alessandro (com 6 e 2 anos, respectivamente), para sua Suíça natal. Eles carregavam doze malas com roupas e objetos. “Tentamos levar até uísque, mas os oficiais apreenderam”, conta Blanche. Gabriella e Costanza viveram por quarenta dias num campo de refugiados. “Mesmo lá, era uma mulher aristocrática, que chamava atenção pela beleza.” Enquanto os patrões tentavam agilizar a papelada para partir rumo à América do Sul, ela se empolgou com a ideia de vir junto. Afinal, sem parentes nem namorado, nada a prendia à Europa. “Em pouco tempo, estava apaixonada por São Paulo.”

Após uma breve fase de adaptação dos Pascolato ao novo país, quando moraram de favor em casas de outros imigrantes italianos, a situação financeira da família voltou a melhorar. E o mesmo se deu com Blanche. Seu guarda-roupa, por exemplo, era recheado de peças de grife doadas por Gabriella — a cada renovada no armário, eram repassadas a ela pela chefe. Blanche retribuía, como era de esperar de alguém em seu ofício, com serviço irrepreensível. Em cinco décadas de trabalho, ao longo das quais se tornou parte da família, jamais perdeu a hora. “Colocava o despertador dentro de uma panela para aumentar o barulho e eu não correr o risco de dormir demais”, lembra. Aproveitava as folgas, às quartas-feiras, para comprar livros que contribuíram para a formação das crianças. “Blanche me apresentou a obra de Rousseau, Simone de Beauvoir e Jean- Paul Sartre”, afirma Costanza. Nunca se casou e, jura por suas prendas domésticas, nem sequer teve um namorado. “Dediquei minha vida ao trabalho.”

Blanche leva hoje uma vida confortável. Proprietária de dois apartamentos em Perdizes, bancou ela mesma suas viagens a Alemanha, Israel e Suíça. Católica praticante, reza ajoelhada duas vezes todos os dias. Cuidou dos filhos (Consuelo e Alessandra) e dos netos (Cosimo e Allegra) de Costanza. Suas despesas, o que inclui uma enfermeira 24 horas, são pagas pelos Pascolato — a quem pretende deixar os seus bens. Aos sábados, chova ou faça sol, almoça com a família. “Por meus pais terem morrido, escolhi não ter filhos por medo de deixá-los abandonados”, conta. “Mas me realizei ao cuidar de crianças que me têm como mãe.”

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