O assunto que um dia provocou polêmicas em uma novela da Gloria Perez hoje é a realidade de muitos brasileiros. Visto quase como ficção científica nos anos 1990, o roteiro de Barriga de Aluguel abalou o conceito de “família tradicional brasileira” da época e apresentou ao público a gestação de substituição, um dos métodos escolhidos por homens solteiros ou casais gays masculinos que sonham em se tornar pais. Feito com a ajuda de uma mulher que aceita ceder o útero para gerar o bebê, o procedimento atualmente é conhecido como barriga solidária no Brasil e envolve a transferência de embriões para a doadora temporária da barriga, que não tem participação genética na gravidez.
“Sempre quis ser pai e cheguei a iniciar o processo de adoção, ainda complexo no país”, relembra o advogado Eduardo Veríssimo Inocente, 43. Sem uma parceira à época, ele passou a buscar uma barriga de aluguel internacional, que em alguns países envolve pagamentos à mulher doadora. Seu primeiro destino foi o Nepal. “Fiz a coleta do material genético. Quando voltei ao Brasil, soube que um terremoto tinha devastado o país”, conta. O plano foi interrompido. Depois, outra experiência frustrada no México quase o fez desistir. “Até aí eu já tinha gasto quase 200 000 reais”, diz.
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No Brasil, a prática não permite nenhuma recompensa financeira — daí o termo “solidária”. “Tem gente que defende a barriga de aluguel (que inclui pagamento à grávida), mas isso envolve a mesma questão ética de vender um órgão”, afirma Iberê Dias, juiz da Vara da Infância. “Sabemos que esse comércio existe em grupos da internet, mas eticamente nossa sociedade não aceita essa opção”, diz.
O Conselho Regional de Medicina, responsável por regulamentar a técnica, determina ainda que a mulher que cede a barriga deve pertencer à família de um dos parceiros “em parentesco consanguíneo até o quarto grau” e precisa ter tido um filho antes. Parentes como irmãs, avós, primas ou as próprias mães do casal podem ser barrigas solidárias, mas mulheres sem parentesco só são aceitas após um pedido de autorização ao Conselho, que avalia o perfil psicológico da voluntária e tenta confirmar que a doação não tem caráter comercial. Foi assim que Veríssimo chegou à sua barriga solidária, uma brasileira amiga de sua mãe.
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“Dei entrada em uma clínica que fez a fertilização in vitro com os óvulos de uma doadora (anônima) e a transferência dos embriões”, diz. A técnica consiste em formar os embriões a partir dos espermatozoides do pai (ou pais) e os óvulos fornecidos pela clínica. Em seguida, os embriões são transferidos para o útero. “Na minha cabeça, achava que não iria dar certo”, ele temia. Deu certo e ele se tornou pai de Julia e Vitor, atualmente com 3 anos.
“Hoje, não sou mais solteiro, embora não misture as coisas. Nunca vou querer substituir o papel de mãe, eles têm a babá e a madrinha como presenças femininas e eu tenho uma paternidade ativa”, avalia. “No começo, eu ficava sem graça de entrar em berçários, pois só tinha mulheres. Esses paradigmas sociais sempre me incomodaram”, conta.
O estranhamento e preconceito contra pais solteiros ou gays permeou boa parte da experiência do médico Wagner Alexandre Scudeler, 43, pai-solo de Arthur por barriga de aluguel nos Estados Unidos. “Perdi dois empregos quando mencionei a gravidez”, revela. Após pedir licença à direção de um dos hospitais onde trabalhava, na Grande São Paulo, o local decidiu demiti-lo.
“Minha renda diminuiu no momento mais importante da minha vida, às vésperas de viajar para ver o bebê nascer”, lamenta. A única exceção foi a prefeitura de Barueri, onde é concursado, que concedeu uma licença-paternidade sem levar o caso à Justiça. “Foi nos moldes de uma licença para a mulher.” Por parte da família, não faltou apoio e hoje ele se reveza entre a capital e a casa dos pais no interior, onde passa o tempo livre com o filho e o ensina a cuidar de uma horta orgânica.
“Eles achavam inusitado atravessar o planeta para ter um bebê sozinho”, conta. “Não tive em momento nenhum um namorado que tivesse o projeto de ter filhos comigo, mas em uma próxima gravidez gostaria de ter um companheiro para vivermos isso juntos.”
“Perdi dois empregos quando revelei a gravidez de pai solteiro. A renda caiu no momento mais importante da minha vida”, diz Wagner Scudeler
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“Enquanto alguns países ainda obrigam os pais a registrar a doadora da barriga solidária como mãe da criança, no Brasil esse registro só inclui os beneficiários da barriga (os pais), não a mulher”, explica o juiz Dias. “O regulamento existe também para que a barriga não queira depois reclamar a criança para si. Quem topar fazer assina um contrato antes”, diz.
Não existem limitações para os diferentes tipos de casal. “As regras são as mesmas para mães solteiras e casais heterossexuais, só precisa ter alguém que assuma (a barriga) e no caso de duas mulheres isso é mais fácil, pois uma delas pode gestar”, acrescenta Gustavo Ferraz de Campos Monaco, professor da USP e consultor da LBCA Advocacia.
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Na clínica Neo Vita, especializada no procedimento, várias avaliações psicológicas são feitas para preparar a doadora do útero. “O CRM só pede uma avaliação inicial, mas fazemos três ou quatro para ajustar o emocional dela”, diz Fernando Prado, especialista em reprodução. “No primeiro ultrassom, quando escutam o coração pela primeira vez, a carga emocional é grande, então ela não pode se apegar”, diz.
Sem cobertura por planos de saúde, o método pode custar entre 15 000 e 30 000 reais. “As regras não são um entrave no Brasil. Para casais masculinos, é necessário ter mais paciência”, diz Letícia Piccolo, ginecologista especialista em fertilidade e reprodução. “A maior parte acaba indo para fora do país pela dificuldade em achar um útero”, acredita.
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Estados Unidos, Colômbia, Canadá e Ucrânia (apenas para casais héteros) estão entre os destinos mais populares para a barriga de aluguel, que pode custar entre 70 000 e 130 000 dólares. No Brasil, a Tammuz é a agência mais famosa no segmento, com um plano-garantia que concede tentativas ilimitadas de fertilizações — se uma transferência de embriões não der certo ou uma doadora de útero desistir, o valor fixo garante novas chances até o cliente “engravidar” e ter o bebê. Fundada em 2008 em Israel, a empresa hoje é comandada por Roy Rosenblatt-Nir, 45.
“Desde o primeiro encontro com meu marido, falei que queria filhos. Quando conheci a Tammuz, fizemos dois processos de barriga de aluguel ao mesmo tempo”, ele conta. “Um vingou antes do outro e tivemos nossos filhos com um intervalo de quatro meses.” Em 2011, Saar e Rotem nasceram na Índia, até então um dos países que permitiam a surrogacy, termo em inglês mais aceito para se referir à barriga de aluguel. “Na época, eu era cônsul de Israel em São Paulo e, quando falávamos dos nossos filhos, todo mundo achava que estávamos nos referindo aos cachorros”, diz. “Eu até queria um terceiro, mas meu marido vetou, disse que não vai voltar mais para as noites mal dormidas.”
De volta a Israel, em 2014, Roy decidiu trazer o empreendimento ao Brasil. “No mundo todo, pelo menos 1 200 bebês nasceram conosco, algumas dezenas deles no Brasil”, estima. Casos difíceis não faltam, segundo o empresário. “É uma montanha-russa. Sempre aviso que muitas tentativas não dão certo e há casos de partos prematuros. Hoje em dia, desaconselhamos a gravidez de gêmeos, que é de risco.”
“Desde o primeiro encontro com meu marido falei que queria ter filhos”, diz Roy Rosenblatt-Nir
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A surpresa veio multiplicada para Fábio Santos, 47, e Peter Patrick, 39, que vivem na Austrália com seus trigêmeos. “Demorou três semanas para o médico anunciar gêmeos e mais um tempo até descobrirmos o terceiro. Quase derrubei o telefone com a notícia”, diverte-se Fábio. Os dois apostaram em vários países antes de optar pelo Brasil para ter um bebê. “Acabou sendo muito fácil e seguro, diferentemente de relatos que ouvimos a respeito de países asiáticos e do Canadá”, comenta Patrick. “Nunca pensamos que São Paulo teria essa opção, com tudo tão organizado, inclusive legalmente.”
Uma amiga assumiu como barriga solidária e o casal passou um bom tempo na capital para acompanhar a coleta de óvulos, a fertilização, o pedido de autorização ao CRM e o parto, que acabou sendo prematuro. “Ela era uma amiga nossa de coração e seguirá assim pela vida inteira”, diz Santos. “Mantemos bastante contato e a definição do papel dela na família fica entre ‘tia’ e ‘amiga’. Quando as crianças crescerem, vamos deixar elas decidirem”, explica.
Nem todos os pais permanecem em contato com as doadoras. “No nosso caso, ela pergunta se estamos bem e acompanha nas redes sociais, mas não quero confundir a cabecinha das crianças”, conta Veríssimo. A mesma abordagem foi escolhida pelo anestesista Jorge Luiz Signoretti, 55, pai de uma criança gerada no Brasil. “A moça já tinha uma filha e foi muito ética e profissional. Hoje, o contato é mais superficial”, descreve.
O maior desafio foi explicar a novidade aos familiares. “Meus parentes são italianos do interior de São Paulo, muito tradicionais, então as tias não entendiam. Até para mim, como médico, foi uma grande descoberta”, admite. “Eu já tinha trabalhado e viajado muito e cheguei a um momento em que ser pai era o que estava faltando para mim. Ainda gostaria de ter mais um filho, mas penso em adotar.”
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A adoção também foi levada em conta por Rodrigo Santana, 37, que vive na Alemanha com o marido, Patrick Hohmann, 36, e seus dois filhos. “Sempre quisemos ser pais e por muitos anos analisamos todas as possibilidades. Não são muitas para um casal homossexual”, observa Rodrigo. Após considerarem a barriga de aluguel nos Estados Unidos, eles logo tiveram um contratempo: ao assumir a Presidência, Donald Trump excluiu crianças de pais estrangeiros do sistema de saúde americano.
“Se nosso bebê precisasse ir a uma UTI pré-natal, teríamos de pagar cerca de 10 000 a 15 000 dólares por dia, um risco financeiro muito alto”, diz. Com a família envolvida no processo, a cunhada de Rodrigo, Dayane Silva, escolheu fazer o papel de barriga solidária para Elis, primeira filha do casal. “Muitos me perguntaram: ‘Mas você vai dar sua filha?’. Eu tinha de explicar que só iria gerar o bebê”, relembra Dayane, hoje com 24 anos e mãe de uma criança.
“No começo, fiquei preocupada porque também não entendia como funcionava, mas hoje sou tia e madrinha. É uma experiência que me enche de gratidão”, diz. Lucas, segundo filho do casal, nasceu em 2020 com ajuda da melhor amiga de Dayane, que se encantou com a história ao acompanhar a gestação. “Por causa do coronavírus, não pudemos estar presentes em todas as consultas dessa vez, mas ficamos superfelizes. As crianças são lindas”, comemora Santana. “E são boas pessoinhas”, completa Hohmann.
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Juntos há onze anos, Rogerio Capela, 42, e Gustavo França, 31, tiveram o primeiro contato com a ideia de ter filhos fora do país após acompanhar uma palestra. “Saímos de lá dizendo que faríamos isso em dois anos. Começamos após quinze dias”, relembra Capela. Com uma barriga em Boston, nos Estados Unidos, eles planejavam ter gêmeos, mas, após a doadora sofrer um sangramento, um dos embriões não resistiu. O nascimento de Alice veio antes da hora e foi acompanhado pelos dois por meio do celular, enquanto corriam no aeroporto.
“Nasceu com a gente no saguão! Ninguém mentiu quando disse que era a coisa mais legal do mundo”, admira-se. “Dentro do possível ela tem uma vida normal: vivemos do lado dos meus cunhados, ela faz natação, está começando a se interessar por balé e ama nosso cachorro. Eu rezava para ela gostar de animais e Deus me escutou: ela é a maluca dos bichos.” Para Capela, a chance de construir uma família foi uma novidade e uma conquista. “Na minha adolescência, eu achava que nunca poderia casar ou ter filhos. Cresci pensando que morreria sozinho”, confessa. “Hoje, toda vez que ela sai para dar uma voltinha, eu dou tchau e digo: ‘Vai viver!’”
“Na minha adolescência, eu achava que nunca poderia casar ou ter filhos. Pensava que morreria sozinho”, diz Rogerio Capela
Regras no Brasil
- A doadora temporária do útero deve pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau. Quando não há parentesco, é preciso pedir autorização ao Conselho Regional de Medicina.
- A doadora deve ter ao menos um filho vivo antes do tratamento.
- A doação temporária do útero para a fertilização e a gravidez não pode ter caráter lucrativo ou comercial.
- As clínicas de reprodução assistida devem incluir no prontuário do paciente alguns documentos, entre eles termo de consentimento, relatório médico com perfil psicológico e emocional dos envolvidos e o termo de compromisso entre paciente e cedente temporária da barriga.
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Publicado em VEJA São Paulo de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750