A Fundação Casa encolheu. O sistema que aplica medidas judiciais a jovens infratores no estado de São Paulo tinha mais de 10 000 internos em 2015, o pico histórico dessa contagem. O número caiu ano após ano e, em setembro, chegou a 5 167 (veja os gráficos na matéria). Ou seja, a instituição tem metade dos adolescentes que tinha seis anos atrás.
Em julho, o governo paulista suspendeu a operação de 23 unidades (122 seguem abertas) por um motivo inimaginável nos tempos da antiga Febem: sobram vagas. A explicação para esse fenômeno não é simples — juízes e especialistas apontam apenas causas prováveis. Certo é que o esvaziamento ajudou a transformar a rotina dessas unidades, atualmente menos violentas e mais adequadas à recuperação dos jovens.
Outra novidade é uma reforma em curso de 100 milhões de reais, que deve instalar TVs conectadas, tablets e câmeras de vigilância nesses centros de regime fechado. A gestão estadual promete, ainda, começar já em outubro um programa inédito para ajudar os ex-internos a conseguir empregos após o cumprimento das medidas judiciais, orçado em 30 milhões de reais por ano.
Mesmo com o fechamento das unidades, a ocupação da Fundação Casa é de apenas 67% da capacidade. A queda expressiva da população de internos não é facilmente explicável, uma vez que o número de sentenças que encaminham jovens ao regime fechado não caiu nos últimos anos, segundo levantamento do Tribunal de Justiça feito a pedido de Vejinha.
O índice se manteve acima de 5 000 decisões por ano — com exceção de uma queda abrupta em 2020, quando o Judiciário decidiu que, devido à Covid-19, só mandaria jovens à reclusão em último caso. “A pandemia ajudou na redução do número de internos, mas o fato de que ele diminui desde 2015 é um enigma para muita gente. Recentemente, criamos um projeto de pesquisa para investigar o fenômeno”, diz Bruna Gisi, vice-coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
Um fator que provavelmente contou é a mudança de postura do Judiciário, que passou a dar preferência a penas alternativas (como a prestação de serviços comunitários) para casos mais brandos de tráfico de drogas, principal infração dos jovens — metade dos internos está privada de liberdade por esse motivo. “Quase 80% dos casos que julgo são de tráfico”, diz Jayme Garcia dos Santos Junior, juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude da capital.
A visão mais tolerante ganhou força após uma súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ), publicada em 2012, que orientou os juízes nesse sentido — mas que “custou a pegar”, principalmente em comarcas mais conservadoras do interior, daí o impacto levar anos para ser notado. “O STJ consolidou o entendimento de que o tráfico, por si só, não justifica a internação. É preciso avaliar diversos fatores, como o contexto familiar. A maioria dos jovens pode reorganizar a vida em meio aberto”, diz o juiz.
A maneira como o judiciário lida com casos de tráfico entre adolescentes sempre teve impacto decisivo na lotação da Fundação Casa. “Em 2005, quando virei presidente da instituição, havia perto de 5 000 internos. Na década seguinte, o número chegou ao pico de 10 000. O principal motivo foi uma lei de 2006 que deixava a critério dos juízes decidir se os casos eram de uso ou tráfico. A quantidade de jovens no sistema explodiu, com muitas internações desnecessárias”, diz Berenice Giannella, atual secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do município, que presidiu a Fundação Casa até 2017.
A nova postura dos tribunais, ao que tudo indica, conteve essa alta. Também caíram as condenações por roubo qualificado, a segunda infração mais comum. Nesse caso, a redução acompanhou uma diminuição geral desse crime no estado (veja os gráficos abaixo). Os números mostram, ainda, uma queda nas sentenças de internação provisória, um tipo de reclusão de 45 dias comparável à prisão preventiva, que os jovens cumprem enquanto aguardam o julgamento definitivo.
MENOS JOVENS, MAIS DISCIPLINAS
Dados que ajudam a explicar a queda do número de internos e o impacto dessa mudança nas unidades]
Para os atuais responsáveis pela Fundação Casa, o menor fluxo de adolescentes enviados ao sistema teria criado um ciclo positivo: unidades mais vazias permitem que técnicos, professores e psicólogas deem mais atenção aos internos, que desse modo conseguem progredir de regime (para o semiaberto) mais rapidamente, o que, por sua vez, ajudaria a reduzir o número de adolescentes nas unidades.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
São Paulo, de fato, está entre os estados onde a duração média das internações é a mais baixa: oito meses, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público de 2018, os mais recentes disponíveis. (Para comparação, são dez meses no Rio Grande do Sul, dezoito no Distrito Federal e 36 no Piauí.) “Os jovens têm aderido com maior facilidade aos planos de metas (que permitem a progressão de regime)”, acredita Fernando José da Costa, secretário estadual de Justiça — desde 2017, esse cargo acumula a função de presidente da Fundação Casa.
Nas últimas semanas, Veja SP visitou quatro unidades — duas na Zona Sul e duas na Zona Norte, todas entre as maiores da capital — e conversou com dezenas de internos. No geral, os relatos confirmam o que indicam os números. “A gente tem sido bem tratado, sim. Tem comida, roupa limpa, aula todo dia, psicóloga toda a semana”, diz N.V., 16 anos, flagrado no início do ano com vinte papelotes de cocaína em Bragança Paulista.
Segundo funcionários experientes ouvidos sob anonimato, os casos de maus-tratos diminuíram significativamente, mas não acabaram. “Eram generalizados. Hoje, são pontuais”, diz o advogado Ariel de Castro, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente. Na Fundação Casa, o jovem fez cursos de informática e de atividades físicas.
“Quero usar para começar uma ação social no meu bairro. Sei que é minha última chance. Se errar novamente e cair em um CDP (Centro de Detenção Provisória para adultos), a realidade é bem diferente, a comida é azeda, conheço gente ali que preferia comer papel higiênico misturado com pasta de dente”, ele diz.
“Aprendi muita coisa com a psicóloga, como a ter empatia, até para se colocar no papel das nossas vítimas”, acrescenta J.V., 14 anos, pego ao assaltar um carro no Morumbi em abril. “Fiz vários cursos e quero ser cabeleireiro”, ele diz. “Cheguei achando que a Fundação Casa era uma ilusão, uma tiração (de sarro). Só queria voltar para a rua”, completa K.H., 18 anos, também detido após um roubo de carro.
“Depois de um ano, sou outra pessoa. A (área de) pedagogia tem muita paciência. Aprendi a ler, a mexer em computador. Na escola pública, cheguei ao 9º ano sem saber juntar A com B. Agora consigo ler um livro, escrever uma carta. Não tenho mais a raiva que eu tinha dentro de mim”, diz.
“Aqui é nossa última chance. No presídio adulto, tem gente comendo papel higiênico com pasta de dente.”
N.V., 16 anos, interno da Fundação Casa
Nos relatos dos jovens, as brigas (entre eles ou com os funcionários) são raras. Também é amplamente dito que não há presença do crime organizado nas unidades — as principais facções não “batizam” menores de 19 anos. As rebeliões, tão comuns nos tempos da Febem (nome do sistema até 2006), praticamente desapareceram. “Quando cheguei, em 2005, tinham acontecido 35 rebeliões e 652 fugas só no primeiro semestre”, lembra Berenice. Desde 2018, os motins não passam de um por ano.
Nos doze anos em que comandou a Fundação Casa, Berenice fez mudanças importantes. Uma delas foi a construção de 74 unidades pequenas (para até sessenta jovens) no estado, o que permitiu fechar megacomplexos como o do Tatuapé, que chegou a abrigar 1 800 internos. “Lá havia rebelião toda semana.”
Desde 2017, porém, os investimentos pararam na instituição. O resultado é visível nas estruturas físicas deterioradas, enferrujadas e sem pintura. “Até o ano passado, a verba para investimentos era de 10 reais, dos quais 5 estavam contingenciados”, diz o atual secretário. Agora, o governo promete investir 100 milhões em uma reforma das unidades, já em andamento em algumas delas. “Terão TVs conectadas, 3 200 tablets, câmeras de vigilância e tabelas de acrílico nas quadras de basquete”, diz José da Costa.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
A verba surgiu após economias feitas pela pasta, que incluem o fechamento das unidades, a instalação de poços artesianos nos centros (o que reduziu as contas de água) e um plano de demissão incentivada que baixou de 11 000 para 10 500 o quadro de funcionários. (Como 80% do orçamento de 1,55 bilhão de reais da Fundação Casa vai para o pagamento de pessoal, e o quadro se manteve quase o mesmo, a queda no número de internos criou uma distorção: cada jovem, hoje, custa 20 000 reais por mês ao estado.)
“Nos últimos anos, a verba para investimentos era de 10 reais. Dos quais 5 estavam contingenciados.”
Fernando José da Costa, secretário de Justiça
A outra promessa é anunciar, ainda em outubro, um programa para ajudar os adolescentes a encontrar emprego após deixarem as unidades. “A organização que gerir o projeto só será remunerada se cumprir metas, como marcar três entrevistas para cada egresso”, diz o secretário. Um dado que não melhorou, afinal, é a reincidência, próximo de 26% (no sistema adulto do país, é de 42%).
“Dentro da Fundação Casa, a gente constrói um castelo para eles: cinco refeições por dia, tratamento odontológico… Quando voltam à miséria das comunidades, o castelo desmorona”, diz Adriana Souza, diretora regional da instituição. O recorte social nas unidades, de fato, é claríssimo. “Dos casos que julgo, 92% dos acusados são pretos ou pardos e quase 100% são pobres”, diz o juiz Santos Junior. “A polícia reprime o tráfico só nas periferias. Casos de drogas dos Jardins nem chegam ao judiciário”, ele afirma. “O jovem infrator precisa de atenção do estado, por mais que isso tenha um custo. Se virar um adulto infrator, vai sair mais caro”, completa o secretário.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759