Milhares de famílias de judeus que fugiram dos horrores da II Guerra Mundial desembarcaram no Porto de Santos nos anos 40, tendo como ponto final da viagem a região paulistana do Bom Retiro. Lá, vários outros membros da comunidade já haviam recomeçado a vida, tocando os próprios negócios em ruas como a Prates, a Ribeiro de Lima e a José Paulino. Muitos abrigavam os parentes no andar de cima dos sobrados, enquanto trabalhavam em suas lojas no térreo. Assim fizeram os Rabinovitsch, recém-chegados da Romênia nessa época. Décadas depois de prosperar no ramo de compra e venda de ouro, decidiram seguir uma segunda onda migratória de seu grupo. Dessa vez, porém, a mudança não era motivada pelo medo, e o destino, muito mais próximo: Higienópolis, um antigo reduto dos barões do café. Com a chegada dos novos moradores, o bairro nunca mais foi o mesmo. Ganhou sinagogas, escolas de hebraico e padarias kosher. “Virou uma localidade emergente graças, em boa parte, aos judeus emergentes”, afirma o engenheiro Jaime Rabinovitsch, de 46 anos, presidente do Colégio Renascença e um dos dez netos de Fernando, o romeno que começou a saga do clã em terras brasileiras.
Nos primeiros anos pós-mudança, famílias como a dele ainda tinham uma rotina dividida: os pais trabalhavam no Bom Retiro e os filhos estudavam na nova vizinhança. A maioria dos alunos, depois de formados, fixou-se definitivamente na vizinhança, expandindo seu raio de atuação para além do comércio. Engenheiros judeus, por exemplo, começaram a trabalhar no ramo de construção e incorporação imobiliária, enriquecendo com essas atividades. Outros abriram as portas daqueles que se tornariam alguns dos mais prósperos escritórios de advocacia da cidade. Assim, a comunidade cresceu até atingir a marca atual de 60.000 pessoas em São Paulo — das quais 25% se concentram em Higienópolis. Só a família Rabinovitsch, que se encontra na quarta geração, tem 35 membros vivendo no entorno (Fernando, o pioneiro, morreu em 1972).
Além da concentração crescente na região, os judeus apreciavam as ruas planas e arborizadas de Higienópolis. “Até hoje, é tudo muito tranquilo e civilizado, as pessoas se cumprimentam nas ruas”, afirma o rabino David Weitman, de 56 anos, da Beit Yaacov, uma das onze sinagogas do bairro. Nesses e em outros locais bastante frequentados pela comunidade, é possível observar com clareza algumas divisões. Nos restaurantes de comida típica, como o Nur, na Rua Tupi, é possível reconhecer mulheres ortodoxas, sempre de saia longa de algodão e peruca para encobrir os cabelos, ao lado de jovens moderninhos, com roupas que não passariam pelo crivo dos seguidores mais fervorosos das leis da Torá. Esse mesmo contraste pode ser visto no Shopping Higienópolis. Em seus corredores, famílias “liberais” (compostas quase sempre de pai, mãe e, no máximo, dois filhos), cruzam-se com os casais mais tradicionais, que seguem à risca o mandamento bíblico “Crescei e multiplicaivos” (alguns deles trazem consigo proles de oito ou até mais crianças).
Os adolescentes da comunidade têm outros pontos de encontro, a começar pelo Colégio Renascença. Fundada em 1922, a escola acompanhou o fluxo de judeus rumo a Higienópolis, inaugurando em 1968, na esquina das ruas Bahia e Pará, sua primeira unidade fora do Bom Retiro. Os lugares de lazer se concentram nas redondezas da Praça Vilaboim, onde é possível encontrar pizzarias e até restaurantes japoneses com receitas elaboradas dentro das normas kosher. Outro local é o Espaço K uma espécie de centro cultural com aproximadamente 3.000 associados que abriga, entre outras atrações, uma choperia e uma hamburgueria. Todos os itens do cardápio, incluindo os etílicos, são elaborados de acordo com as tradições judaicas. É um tipo de combinação com que jamais sonhariam pioneiros como os Rabinovitsch ao chegar ao bairro prometido.
A COMUNIDADE EM NÚMEROS
15.000
judeus residem hoje em Higienópolis — o equivalente a 25% da comunidade em São Paulo
11
sinagogas existem ali
6
restaurantes da região servem comida kosher, elaborada segundo as regras judaicas