É certo que a natureza tem sido cruel, castigando-nos com a pior estiagem dos últimos 84 anos. Um dos melhores retratos da situação é a mudança de comportamento dos profissionais que monitoram o Radar Meteorológico de São Paulo, instalado na divisa entre Salesópolis e Biritiba Mirim, onde nasce o Rio Tietê, a 94 quilômetros da capital. Trata-se de uma das principais ferramentas do sistema de alerta contra inundações, particularmente útil durante o verão, quando tempestades provocam enchentes e desabamentos na metrópole. Neste ano, as imagens do aparelho continuam sendo aguardadas com ansiedade pelos operadores, mas por motivos diferentes. “Quando o tempo fecha, a gente sai correndo para olhar se está caindo água nos reservatórios da Cantareira”, conta a engenheira Monica Porto, coordenadora do trabalho, referindo-se ao sistema responsável por 61% do abastecimento da capital.
Apesar da torcida dos técnicos nesses momentos, não chove nas seis represas que formam a Cantareira. Os meses de dezembro e janeiro registraram os piores índices desde 1930, quando a medição começou a ser feita. Para piorar, o calor também ficou além do esperado, o que aumentou a evaporação da água nos reservatórios. “A causa foi a presença de uma massa de ar de alta pressão sobre São Paulo, que impediu a chegada de umidade”, explica o meteorologista Alexandre Nascimento, da Climatempo. Caso esse fenômeno tivesse acontecido entre abril e outubro, período tradicionalmente seco, não haveria grandes transtornos. Mas ocorreu justamente nos meses em que se espera que chova o suficiente para encher os reservatórios.
A situação levou o governo do estado a decretar uma série de medidas para tentar evitar o pior. Elas vão de desconto de 30% na conta para quem economizar nas torneiras a obras de emergência destinadas a bombear da Cantareira o volume morto, como é chamada a água que fica no fundo das represas. No último dia 18, o governador Geraldo Alckmin foi a Brasília pedir à presidente Dilma Rousseff permissão para usar parte da água do Rio Paraíba do Sul, que abastece o Rio de Janeiro. A ideia enfrenta resistência do estado vizinho. Apesar dos esforços, há um sério risco de racionamento num futuro próximo caso a seca se prolongue por mais algum tempo. “Estamos diante de um fato excepcional, pois é a maior seca dos últimos 84 anos”, afirmou o governador Geraldo Alckmin.
Uma metrópole que tem 12 milhões de habitantes e responde por 11,5% do PIB do país, entretanto, não pode ficar à mercê dos caprichos da natureza na questão do abastecimento de água. Com tecnologia e planejamento, cidades com muito menos recursos hídricos e clima muito mais adverso conseguem garantir o abastecimento. É o caso de Jerusalém, em Israel, que tem um índice pluviométrico anual de cerca de 500 milímetros, o equivalente a quase um terço do registrado normalmente em São Paulo.
A gestão dessa área, a exemplo de todas as questões que envolvem infraestrutura, demanda investimentos pesados e contínuos para prevenir situações que só irão se materializar décadas depois. Do ponto de vista da contabilidade política mais rasteira, implica enterrar recursos significativos em obras invisíveis, cujos resultados só serão notados num futuro distante. Em resumo, é verba que não rende voto imediato. “Em São Paulo, ficou claro que a capacidade dos reservatórios se mostrou insuficiente diante de uma situação de intensa dificuldade climática”, afirma Benedito Braga, presidente do Conselho Mundial de Água, organização que reúne os principais especialistas e autoridades ligadas ao tema de mais de cinquenta países. Peritos como ele têm opinião unânime: os efeitos da estiagem na capital para o abastecimento de água foram agravados pela inoperância de décadas do poder público.
Um dos últimos investimentos ambiciosos feitos na área ocorreu há quarenta anos. Ele envolveu justamente a construção do Cantareira para amenizar na época o problema crônico da escassez em São Paulo, que tem poucos mananciais em seu território. A obra é composta de seis reservatórios, o mais distante localizado em Vargem, a 98 quilômetros de São Paulo, na divisa com Minas Gerais. De lá, a água percorre um sistema formado por túneis e outras represas até chegar à estação de tratamento em Caieiras, na região metropolitana. Depois disso, é distribuída para a capital e outros municípios vizinhos. Cerca de um sexto do volume é enviado a cidades do interior, principalmente Campinas.
Do início dos anos 70 até hoje, a população da capital dobrou e o uso de água aumentou na mesma proporção (atualmente, o consumo per capita é de 140 litros diários). A partir de 2004, o Palácio dos Bandeirantes recebeu pelo menos quatro alertas sobre a fragilidade da política hídrica, sendo que o mais recente deles, de 2013, partiu de um estudo encomendado pelo próprio governo estadual. Em resposta, a Sabesp aumentou em 50% a capacidade de tratamento de água do Alto Tietê numa obra realizada em 2009. Entre 2008 e 2014, a empresa também conseguiu reduzir de 33% para 25% o índice de perdas por vazamentos, provocados por falhas de infraestrutura, como canos velhos e malconservados.
A reação das autoridades diante do problema, no entanto, mostrou-se insuficiente para proteger a cidade. “Investiram, é verdade, mas não o bastante”, afirma Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Segundo ele, a possibilidade de enfrentar situações climáticas adversas precisa entrar na conta dos governos. “Não dá para fazer planejamento quando a crise já está instalada”, complementa. Um passo fundamental, a construção de um novo reservatório para abastecer a cidade, só começou a sair do papel no ano passado — ou seja, quase uma década depois dos primeiros alertas de colapso. Em agosto passado, a Sabesp fechou uma parceria público-privada com empreiteiras para construir a obra em Ibiúna. Quando ficar pronta, em 2018, ela trará para a capital e região metropolitana 4 700 litros de água por segundo, o equivalente a 14% do volume da Cantareira.
Na visão otimista dos técnicos da Sabesp, o pior será evitado graças às ações emergenciais adotadas desde o começo do ano. “Não trabalhamos com a hipótese de fazer um racionamento”, afirma Edson Giriboni, secretário de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo. Esse plano, porém, depende da boa vontade de São Pedro. A conta só fechará se o regime de chuvas nos próximos meses voltar à média histórica dos últimos anos. Caso contrário, a adoção de um esquema de rodízio será inevitável a partir de outubro.
A população da capital vem dando sua parcela de contribuição para amenizar o problema. Desde que o governo ofereceu um desconto de 30% a quem economiza na torneira, o nível de consumo está caindo. Os paulistanos chegaram a poupar 6 220 litros por segundo, volume suficiente para abastecer uma cidade do tamanho de Curitiba. Mas é possível fazer ainda mais nessa questão. O consumo diário per capita de água na capital é de 140 litros, contra os 110 litros da média recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a necessária para que as pessoas se hidratem, mantenham a higiene em dia e a casa em ordem. Países mais avançados nesse tipo de conscientização do uso do recurso consomem 115 litros por dia, como a Bélgica.
O reúso da água ainda ocorre com pouca frequência por aqui. Uma das exceções é o projeto Aquapolo, parceria entre a Sabesp e Odebrecht Ambiental, que recicla água para cinco indústrias petroquímicas do ABC paulista. A economia é suficiente para abastecer uma cidade de 350 000 habitantes todo dia. A companhia de transporte Metra, de São Bernardo do Campo, que é responsável também pela manutenção de 110 paradas de ônibus na cidade, mantém limpos sua frota e os pontos com água reciclada. O Hospital Sírio-Libanês instalou uma estação de tratamento no seu subsolo no começo do ano. Ela garante hoje quase um terço do consumo do local. No acirramento da crise, iniciativas semelhantes vêm se ampliando. Síndico de um prédio na Vila Olímpia, Luciano Pacces chamou recentemente um engenheiro para orçar o aumento da capacidade de armazenamento de água da chuva do reservatório do condomínio. “A obra será uma de nossas prioridades”, diz. Tudo isso ajuda e deve ser feito não só em época de crise. O governo, entretanto, tem de realizar a sua parte, fazendo o planejamento e os investimentos adequados para não precisar depois acender vela para São Pedro.
Veja abaixo como você pode economizar água:
› Fique de olho no hidrômetro. Um aumento brusco no uso de água pode apontar a existência
de vazamentos. Se constatar algum, conserte-o imediatamente
› Se for possível, use o mesmo copo para matar a sede. A cada um que você bebe, gasta o dobro para lavar
› Se você mora em um condomínio sem medidores por unidade, avalie a possibilidade de implantá-los. Assim, fica mais fácil cada família controlar seu consumo
› Feche a torneira ao escovar os dentes ou fazer a barba
› Desligue o chuveiro quando estiver passando xampu
› Espere acumular louça ou roupa antes de acionar a máquina de lavar