Controle parental: como proteger sem invadir
Escolas e pais formam rede para proteger crianças e adolescentes das ameaças do uso de telas e acendem debate sobre controle parental e privacidade

Você deixaria uma criança circular sozinha em uma cidade desconhecida? Essa é a principal metáfora que os especialistas usam para a internet, um mundo onde esses jovens não conhecem as regras de convivência, de segurança, os riscos ou prevenções. A preocupação se intensifica conforme o número de menores conectados aumenta: em 2015, uma pesquisa do TIC Kids Online Brasil apontou que 79% das crianças e adolescentes participantes, entre 9 e 17 anos, haviam acessado a internet nos três meses anteriores. Em 2024, essa porcentagem alcançou 93%. É essencial que elas sejam guiadas nesse universo, mas até onde os pais devem ir? E como saber o momento de respeitar a privacidade dos jovens?
A ficção dá respostas desastradas. De um lado, a série “Adolescência“, lançada pela Netflix em março, assustou pais ao redor do mundo ao apresentar um menino de 13 anos que, após ser vítima de cyberbullying e entrar em contato com ideologias perigosas on-line, mata uma colega de sala. Do outro, a supervisão excessiva pode chegar a consequências preocupantes — caso do episódio “Arkangel” da série “Black Mirror“, também da Netflix, em que uma mãe monitora cada passo dado por sua filha adolescente com um chip cerebral.
Não é preciso chegar a tanto. Especialistas apontam a possibilidade de balancear proteção e respeito à privacidade dos jovens, um equilíbrio que pode ser atingido a partir da união entre pais, filhos e escolas — e que só se sustenta com um diálogo transparente.
Deixá-los sem supervisão é impensável. O excesso de telas apresenta riscos graves à saúde mental, contribuindo para o estresse, a desatenção e a agressividade (saiba mais no quadro abaixo). Os dispositivos também oferecem uma gama diversa de conteúdos e interações, nem sempre adequados para a faixa etária. “As crianças muitas vezes não têm maturidade para enxergar a maldade por trás das interações”, explica a psicóloga de crianças e adolescentes Dani Fioravante, autora de “Eduque sem Medo de Errar (Nem de Acertar!)” (Editora Planeta, 224 páginas), lançado em junho. Contato com pedófilos e ideologias violentas são alguns dos principais riscos, ela aponta.
Em 2024, brain rot, que significa “apodrecimento do cérebro”, foi eleita a palavra do ano pelo Oxford English Dictionary. Segundo o dicionário inglês, trata-se de uma “suposta deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa, especialmente vista como resultado de consumo exagerado de materiais (agora, particularmente conteúdo on-line) considerados triviais e sem desafios”. O fenômeno é uma das consequências da exposição de crianças e adolescentes às telas. “Conteúdos de baixa qualidade desestimulam o cognitivo deles”, explica a psicóloga Dani Fioravante. O excesso de uso também causa a liberação de três neurotransmissores que podem ser prejudiciais ao cérebro infantil: cortisol, adrenalina e dopamina. “O cortisol deixa-os estressados, irritados e agressivos. A adrenalina causa agitação, desatenção. A liberação da dopamina, que é o hormônio do prazer, é dez vezes maior no uso de telas do que numa outra atividade, por exemplo. Então, as crianças e adolescentes perdem o prazer nas outras interações e se viciam no celular”, explica. Apatia, estresse, perda de foco, isolamento e falta de motivação são alguns dos efeitos do brain rot, que pode ser um gatilho para comportamentos autodestrutivos. Os riscos da saúde mental nem sempre são claros para os jovens, e parte dessa conscientização deve acontecer nas escolas. “Precisamos fazer com que o adolescente perceba o risco das telas e reflita sobre o uso, para evitar que vire uma dependência química”, explica Meire Nocito, diretora educacional do Colégio Visconde de Porto Seguro.
O consenso entre os especialistas é: jovens com dispositivos sempre devem ter algum grau de monitoramento parental — tanto na quantidade quanto na qualidade do uso de tela. Para isso, surgem alguns aliados tecnológicos, ferramentas on-line que permitem que os responsáveis controlem o tempo que o filho passa nas telas e o tipo de site que podem acessar. Os pais também podem acessar a localização dos filhos e monitorar as conversas por mensagem. Mas não basta vigiá-los. “A base da relação tem que ser de confiança”, explica a psicóloga. Ela reforça a importância de ser transparente quanto ao monitoramento, de jamais acessar o celular da criança sem que ela saiba e de explicar os motivos por trás das proibições. “Quando explicamos o porquê, os ajudamos a se tornarem cada vez mais autônomos”, acrescenta.
Confira: Dicas e aplicativos de controle parental
A autonomia é a grande meta do processo, mas requer um trabalho extra. “Limitamos muito a independência dos jovens, porque o mundo hoje está muito perigoso, na vida real e on-line, e também porque, na correria, ficamos sem tempo para ensinar”, continua Dani. Importantes aliadas nesse processo são as escolas.

Para Gislene Almeida, permitir que Nicolas, hoje com 12 anos, usasse o celular foi uma necessidade. ela e o marido, Rogério, trabalham fora e precisavam de um meio para manter contato com o menino durante o dia — fosse para garantir que ele havia chegado em casa com segurança, fosse para lidar com eventuais emergências. Nicolas ganhou o primeiro celular aos 9 anos. Atualmente, ele tem acesso ao WhatsApp e ao TikTok, mas não possui contas em outras redes sociais. “Todos os amigos dele tinham TikTok, e ele quis muito ter também, aí deixei”, conta a mãe. Apesar disso, o menino não sente falta das demais plataformas. “A única coisa que sinto falta é de acompanhar as informações do curso de música que faço, mas aí vejo na conta do Instagram da minha mãe”, explica. A preocupação com o uso do WhatsApp é constante, e Gislene adota algumas precauções. “Sempre sei com quem ele está conversando e tenho acesso à senha do celular dele”, afirma. De tempos em tempos, ela checa o conteúdo do aparelho e, ocasionalmente, questiona o filho sobre trocas de mensagens específicas. nicolas, por sua vez, não se incomoda com a vigilância. “eu me sinto mais seguro. e acho importante, porque na internet tem tanto coisas boas quanto ruins”, pondera. Além da supervisão digital, a mãe também busca equilibrar o tempo de tela com outras atividades. ela incentiva o filho a participar de cursos extracurriculares, como as aulas de música, e a colaborar com tarefas domésticas, evitando que ele passe o dia inteiro conectado. “Estou tentando fazer com que ele se sinta incluído, porque eles são jovens digitais, mas com controle e limites”, resume Gislene.
O papel das escolas
Em fevereiro deste ano, uma lei proibiu o uso de celulares nas instituições de ensino. Ainda assim, os perigos da internet atravessam as paredes da escola e afetam a saúde mental e o desempenho dos alunos. Foi o que percebeu Jeferson Barreto, professor de informática na EMEF Dias Gomes, em Guaianases. Ele notou que os alunos chegavam cansados à aula, alguns até dormiam em sala, após passarem madrugadas na frente de telas. “Eles falam para os pais que ficaram jogando no celular, mas nem sempre é só isso. Às vezes passam a noite em fóruns com conteúdo impróprio”, alerta. Barreto também notou crianças jovens com linguagens violentas, adquiridas em grupos on-line. Por isso, no fim de junho, decidiu convocar os pais para uma conversa na escola sobre os riscos da internet e começou a abordar o assunto também com os jovens, em aulas interativas.

Outra escola paulistana que reafirmou seu compromisso com a educação dentro e fora da sala de aula foi o Colégio Visconde de Porto Seguro, no Morumbi, que em março deste ano inaugurou a Academia da Família, série de encontros mensais que oferece formação para os pais dos alunos, com workshops e palestras que discutem as questões atuais trazidas pelos responsáveis. “Os pais não são especialistas, eles também precisam aprender”, explica Meire Nocito, diretora educacional e institucional do colégio. Um desses encontros foi justamente sobre controle parental e riscos do mundo digital.

Claudia e Marcelo da Costa tentaram resistir. Mas, após muita insistência, deram um celular para o filho mais velho, Gustavo, quando ele completou 10 anos. Hoje ele tem 13. Quase todos os amigos já tinham celular, o menino ficava de fora de grupos da sala de aula no WhatsApp e não conseguia se comunicar com os pais. O uso, desde o começo, foi bem controlado, só podia usar WhatsApp e YouTube, com restrição de idade. Aos 12 anos, durante um show de Bruno Mars, foi autorizado a baixar o Instagram. “Se eu não tivesse Instagram esse ano, ia ficar sem vida social”, compartilha. “O plano inicial era esperar até os 13, mas não consegui”, conta o pai, que tem acesso à conta do filho e o proibiu de aceitar que desconhecidos o sigam. “Agora ele está tentando trabalhar a minha cabeça para ganhar TikTok”, comenta. Rafaela, 11, seguiu os passos do irmão e, aos 9 anos, ganhou seu próprio celular, que usa para assistir a tutoriais de maquiagem no YouTube e a séries de drama coreanas. Ela conta os dias para janeiro do ano que vem chegar, quando poderá criar um perfil no Instagram. “Fico sabendo de tudo depois que acontece… É horrível, porque sou muito curiosa”, conta ela. Para controlar o acesso dos dois pré-adolescentes, Claudia e Marcelo usam o aplicativo Qustodio. Com a ferramenta, estabeleceram um limite de 2h30 de uso de tela — dos quais apenas 45 minutos podem ser gastos no Instagram, no caso de Gustavo. “Minha maior preocupação é o conteúdo que eles vão acessar”, conta o pai. A tecnologia oferece alertas sociais de pesquisas e mensagens possivelmente perigosas identificadas por inteligência artificial. Mas nem sempre dá certo. Cláudia diverte-se lembrando de quando combinou de dar carona ao filho e a mensagem “Te pego hoje às 18h” apitou como de assédio. Ou quando Gustavo pesquisou “A Rússia vai entrar em guerra?” e ela recebeu um sinal devido ao possível teor ideológico do tema. Quando a preocupação é real, os pais chamam os filhos para conversar. “É difícil porque, quando perguntamos qualquer coisa, eles acham que é sermão, que fizeram alguma coisa errada”, diz Marcelo.
A escola também oferece cursos de letramento digital para os alunos em diferentes faixas etárias e um curso sobre implicações legais e riscos do uso de certos aplicativos para jovens a partir do 6° ano. “Restringir o uso de telas é apenas parte da solução. É preciso ensinar crianças e adolescentes a lidar com as emoções que surgem nesse mundo”, defende.
Mas até que idade os jovens devem ser monitorados? Dani Fioravante alerta que não existe resposta certa. A tão sonhada autonomia só chega após um processo longo e progressivo, que exige muita cautela por parte dos pais. A psicóloga recomenda que os responsáveis aumentem os intervalos entre as supervisões e, conforme o uso estiver sendo adequado, ir aos poucos deixando de fiscalizar.
Unindo esforços, pais, filhos e escolas podem navegar por essa onda ainda pouco conhecida. Nunca antes o provérbio africano foi tão atual: “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.
Publicado em VEJA São Paulo de 25 de julho de 2025, edição nº2954.