De cabelos grisalhos impecavelmente presos num coque, colar de pérolas e blush nas maçãs do rosto, Annamaria Garrone Negrini, de 76 anos, não falta um dia ao trabalho. Filha de Enrico Garrone, um dos fundadores da confeitaria Dulca (variação da palavra doce em latim), a sorridente senhora nascida em Turim, na Itália, lembra-se com detalhes da inauguração da primeira loja, na Rua Dom José de Barros, no centro, em 5 de dezembro de 1951.
“Logo após abrirmos as portas, no fim da tarde, o salão se encheu de gente”, diz a atual proprietária da marca. “Nosso público era muito elegante, e meu pai fazia questão de que toda a família estivesse alinhada atrás do balcão.” De lá para cá, o garbo da clientela deu lugar à informalidade, mas o sucesso dos docinhos só fez crescer. A marca decidiu, inclusive, antecipar em um ano a comemoração de seu sexagésimo aniversário e patrocinar o lançamento de um livro da editora Cosac Naify. Trata-se de ‘Mil-Folhas — História Ilustrada do Doce’ escrito por Lucrecia Zappi, cujo capítulo final traz fotos antigas das lojas da Dulca.
Antes de ver a rede estabelecida como um símbolo da cidade, Annamaria teve de trabalhar duro. Aprendeu sozinha a falar português e não descansou nem no fim da gravidez de Bruno, o primeiro de seus dois filhos. “Com um barrigão de nove meses, eu limpava vitrine na loja.” Há doze anos, a produção está centralizada em uma pequena fábrica na Barra Funda. Ali, setenta funcionários fazem de maneira artesanal os doces e salgados que abastecem as seis lojas da rede.
Eleita pela edição ‘Comer & Beber’ de VEJA SÃO PAULO a melhor doceria da cidade em 2009, a casa segue em parte o cardápio criado na década de 50. Inspiradas em pedidas italianas, as receitas passaram por algumas alterações. O açúcar de beterraba, comum na Itália, por exemplo, foi substituído pelo de cana, mais acessível no Brasil. Introduzido um pouco mais tarde nas prateleiras, o sonho tornou-se o doce favorito entre os clientes. Por dia, aproximadamente 200 unidades grandes são fritas, recheadas com creme de baunilha e cuidadosamente envoltas em açúcar e canela.
Também fazem sucesso as bombas, as tortas e os chocolates. Sem vocação para a cozinha, Annamaria centrou-se na administração da empresa. Escrito em italiano, seu livro de contabilidade está sempre à mão. Hoje, o primogênito auxilia no escritório para que ela possa exercer sua tarefa preferida: visitar as lojas e conferir a qualidade dos produtos e do atendimento.
Avó orgulhosa de cinco netos, torce para a quarta geração da família tomar gosto pelos negócios. “Minha neta Roberta, de 22 anos, está na Itália estudando gastronomia”, conta. Quanto aos planos para o futuro, tem um só: “Quero um busto meu em cada loja. Pode ser de bronze, não precisa ser de ouro não”, diz, gargalhando.
Do arroz-doce ao mil-folhas de 729 camadas
Nascida em Buenos Aires, a jornalista e tradutora Lucrecia Zappi mudou-se ainda criança para São Paulo. Da infância vivida no centro da cidade, lembra-se de parar em frente à confeitaria Dulca da Avenida Doutor Vieira de Carvalho e ficar admirando a vitrine. “Aqueles eram docinhos reservados apenas para ocasiões especiais”, diz Lucrecia. No seu aniversário de 9 anos, ganhou um bolo inteiro de nozes. “Comi no café da manhã, num dia de semana, foi quase uma transgressão.” Desse fascínio pelas sobremesas veio a inspiração para o recém-lançado ‘Mil-Folhas — História Ilustrada do Doce’ (Editora Cosac Naify; 96 páginas; 49 reais).
Indicado para o público infantojuvenil, o livro refaz a trajetória de receitas como quindim, brigadeiro, arroz-doce, sorvete e chantilly. Além de curiosidades — você sabia que o biscoito da sorte ajudou os chineses a vencer uma batalha contra os mongóis e que a receita original francesa do mil-folhas tem 729 camadas de massa? —, a publicação vem recheada de 147 ilustrações. Informações sobre o início do cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e a descoberta do chocolate, mais uma simpática apresentação assinada pela chef Mari Hirata, completam a edição.