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Campo de Marte: Bolsonaro assina acordo com Nunes e São Paulo encerra litígio judicial de seis décadas

Acerto precisa ser homologado pela Justiça e oposição vê desvantagem para São Paulo

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 Maio 2024, 22h18 - Publicado em 17 mar 2022, 06h00
Foto mostra Campo de Marte, uma área arborizada, de cima
Vista aérea de terreno que é objeto de disputa judicial desde 1958 (Marcelo Sonohara/Divulgação)
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Com 2,1 milhões de metros quadrados (uma área equivalente aos parques Ibirapuera e Villa Lobos juntos), o Campo de Marte é uma grande barreira de transposição para a Zona Norte. Pertencente ao município, mas em posse da União desde o fim da Revolução Constitucionalista de 1932, o terreno abriga um aeroporto, instalações da Aeronáutica, campos de futebol, uma área de Mata Atlântica e um espaço usado como estacionamento de carros alegóricos em época de Carnaval no vizinho Sambódromo. Desde 1958 a prefeitura tenta reaver a terra, em um dos processos judiciais mais longos de que se têm notícia. Mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal dizer que o Campo de Marte é da cidade e que a União deveria devolvê-lo aos paulistanos (e pagar uma indenização pelos noventa anos de uso), o caso segue sem um desfecho nos tribunais.

Nesta quinta-feira (17), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) acertaram o seguinte acordo para encerrar a disputa: em troca da dívida da cidade com a União (25 bilhões de reais), o governo federal não precisaria pagar o “aluguel” de nove décadas (calculado “por baixo” em 49 bilhões de reais) e ainda ficaria com 81% da área total. Os 19% a que a capital teria direito seriam transformados em um parque de 406 000 metros quadrados, o quinto maior da metrópole. Mas esse acordo, que ainda não foi homologado na Justiça, é bom para a cidade?

O prefeito Ricardo Nunes e o presidente Jair Bolsonaro após assinar acordo sobre o Campo de Marte
O prefeito Ricardo Nunes e o presidente Jair Bolsonaro após assinar acordo sobre o Campo de Marte (Divulgação/Veja SP)

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“Claro que é. Deixaremos de pagar 250 milhões de reais por mês, 3 bilhões de reais por ano com a dívida”, disse na época o prefeito Ricardo Nunes. “Quem nos garante que receberíamos tão facilmente a indenização pelo uso do Campo de Marte desses anos todos?” Os cálculos sobre o montante exato poderiam levar a uma nova judicialização, ou seja, mais tempo e impasse.

A justificativa do prefeito, no entanto, não é bem recebida por quem esmiúça os números. “Temos uma dívida de 25 bilhões de reais e eles têm uma de pelo menos 49 bilhões conosco. Por que vamos abrir mão do excedente? Usaram o argumento de que haveria dificuldade para cobrar o valor no futuro. No fim das contas, a Câmara deu cheque em branco para o prefeito”, afirma o vereador Celso Giannazi (PSOL), que votou contra a aprovação do Projeto de Lei que autoriza a negociação, apreciado rapidamente pela Câmara no fim de 2021. “O município já ganhou a ação, é questão de esperar mais cinco, seis, nove anos? Tudo bem, esperamos. A prefeitura nunca teve tanto dinheiro em caixa como agora. Aprovamos empréstimos de 8 bilhões de reais e temos outros 24 bilhões nos cofres.”

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Terreno ocupado por campos de futebol
Parte do terreno é ocupado por campos de futebol amador (Leo Martins/Veja SP)
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Além da troca das dívidas, há outro fator que pode deixar o acordo desfavorável para São Paulo: a posse definitiva do terreno. “Um inquilino fica noventa anos morando de graça na sua casa. A Justiça o condena a pagar 49 000 reais pelo uso e determina sua devolução imediata. Mas o tolo proprietário, que é devedor do inquilino em 25 000 reais por algum motivo, zera as dívidas de ambos e ainda entrega a casa para o malandro do locador, que a invadiu, usou e abusou e sai com todo o patrimônio”, metaforiza o ex-vereador José Police Neto (PSD). “Medíocre negociação.”

Enquanto o acordo não é confirmado judicialmente, prefeitura e União se movimentam para dar novas destinações aos seus terrenos. Ambos têm pressa para carimbar os acertos, pois as eleições presidenciais estão chegando e nada impede que, se houver um novo presidente, ele mude de ideia e desfaça o que estava apalavrado e não homologado. Enquanto isso não ocorre, o governo federal planeja incluir o Aeroporto Campo de Marte em uma rodada de concessões. A ideia é aumentar o volume de movimentações de aeronaves no pedaço, em declínio ao longo dos anos. Em 2017, …

Outra ideia do governo Bolsonaro em curso é a construção de um colégio militar. Já em obras e com um custo de 130 milhões de reais, a unidade, que ocupará 82 500 metros quadrados do terreno, contará com prédios administrativos e escolares, auditório, ginásios, pista de atletismo e área externa para solenidades. “O colégio abrigará os filhos de todos: militares das Forças Armadas, da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros, da Polícia Civil, civis de maneira geral, ricos, pobres, brancos, afrodescendentes, amarelos. Aqui terá espaço para todos”, disse o presidente Bolsonaro, no ano passado.

Já o objetivo de Ricardo Nunes é construir uma grande área de lazer nas áreas hoje destinadas aos campos de futebol de várzea. No dia 21 de março vence o prazo para apresentação de propostas preliminares para a criação do Parque Campo de Marte e do Museu Aeroespacial no Município de São Paulo, a ser concedidos à iniciativa privada. Com 406 000 metros quadrados (quase quatro vezes o tamanho do Parque da Aclimação), a área terá duas pistas de caminhada (uma delas por dentro do bosque), quadras poliesportivas, quatro campos de futebol, pista de skate, parquinho e ciclovia integrada com os 7 quilômetros das vias segregadas da vizinha Avenida Braz Leme. O custo da empreitada será de 32 milhões de reais. De fácil acesso por carro, bicicleta e transporte público, o parque ficará a 2,6 quilômetros de distância da Estação Carandiru do Metrô.

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Senhor negro sorri ao lado da grade de um campo de futebol gramado
O aposentado Otacílio Ribeiro: “Ali é um lugar de pertencimento. Jogou bisavô, pai, filho, neto” (Leo Martins/Veja SP)
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Se por um lado o parque será bom para a região, carente de áreas de lazer (a Cantareira fica longe dali), por outro vai desabrigar um time que promete fazer muito barulho para não arredar pé de lá. Um time, não, 180. “Estamos há sessenta anos ocupando legitimamente a área. Fizemos seis campos, damos lazer para 3 000 pessoas nos fins de semana. Essa é a última área que restou da várzea do Rio Tietê. Na parte que ficou com a prefeitura nesse acordo terrível vão construir museus em cima dos nossos campos”, desabafa o procurador federal aposentado Otacílio Ribeiro, 71, sessenta deles frequentando o local. “Somos favoráveis a tudo isso, mas não precisa ser em cima dos nossos campos. Lá tem Mata Atlântica, que cuidamos há seis décadas. Tem dezenas de animais silvestres. Mata Atlântica a 5 quilômetros do marco zero. É a única área de lazer da região. Tem parquinho, futebol, eventos, festas. Ali é um lugar de pertencimento. Jogou bisavô, pai, filho, neto.”

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Campos de futebol de várzea: sessenta anos de bola rolando e ameaça de “despejo” (Leo Martins/Veja SP)

Além das resistências na cidade para que o acordo seja selado, o Ministério Público abriu um inquérito para apurar o fato de a prefeitura “perdoar parte substancial do total (da dívida) em favor da União Federal — eventual prejuízo bilionário ao Município de São Paulo”. Procurada, a promotora Karyna Mori, da Promotoria do Patrimônio Público e Social, não quis comentar o andamento do processo. Em outra frente, o vereador Celso Giannazi oficiou o Tribunal de Contas do Município para que o órgão se manifeste sobre o acordo. Procurado, um dos conselheiros do TCM afirmou, sem querer ser identificado, que os valores totais das dívidas não estão claros e precisam ser mais bem detalhados.

Campo gramado com mata ao fundo
Entrada da mata próxima aos campos: futuro parque terá pista de caminhada em meio às árvores (Leo Martins/Veja SP)

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Na esperança da assinatura do acordo, a prefeitura deixou de pagar a parcela de fevereiro da dívida com a União, de cerca de 285 milhões de reais. Como esperava o desfecho das negociações para extinguir os débitos, a gestão Nunes entendeu que o pagamento não seria necessário e pediu ao Supremo Tribunal Federal para depositar o valor em juízo. A solicitação foi negada pelo ministro Kassio Nunes Marques, o que fez a prefeitura se tornar inadimplente. A reportagem consultou a situação fiscal da prefeitura na sexta (11) e a cidade aparecia como devedora. Na terça (15), no entanto, o município já se encontrava adimplente, ou seja, conseguiu pagar a parcela da dívida. Esse valor será devolvido para São Paulo.

Jair Bolsonaro ao lado de militares em cerimônia de início de obras de um colégio militar no Campo de Marte
Início das obras do colégio militar: 130 milhões de reais (SECOM/Divulgação)

Inaugurado em 1920, o Aeroporto Campo de Marte passou a operar com a instalação da Escola de Pilotos da Força Pública de São Paulo. Durante as décadas, abrigou diversas instituições de ensino voltadas aos ares. A mais importante delas, em atividade até hoje, é o Aeroclube de São Paulo, fundado em 1931. A escola é o maior centro de formação de pilotos da América Latina.

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Campo de Marte – Acidente – SP – 22/03/2016
Residência destruída após queda de avião, em 2016: indenização de 3,3 milhões de reais (Rodrigo Dionisio/Divulgação)
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Hoje instalado às margens do retificado Rio Tietê, o terreno do Campo de Marte recebia no passado suas então límpidas águas. Com a canalização do rio e a criação da Marginal Tietê, o espaço ganhou dois córregos, hoje poluídos. Durante uma vistoria da prefeitura em 2017 para a realização do estudo de criação do parque, os técnicos encontraram os canais sujos e pediram providências ao governo do estado antes que a futura área de lazer fique pronta. “Para a qualificação do parque, bem como para a saúde dos seus futuros usuários, é fundamental um trabalho junto à Sabesp para despoluição desses canais”, disseram os técnicos municipais.

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Mapa da cidade de SP de 1930
Mapa da cidade de 1930 (Divulgação/Divulgação)

Nos últimos quarenta anos, as proximidades do Aeroporto Campo de Marte registraram diversos acidentes aéreos que quase sempre culminaram com mortos, feridos e discussões sobre a necessidade de desativação das pistas em área bastante adensada. Em 2016, um avião monomotor caiu em cima de uma casa localizada na Rua Frei Machado, no Jardim São Bento, a poucas quadras da Avenida Braz Leme. Os sete ocupantes da aeronave morreram, incluindo o ex-presidente da Vale Sergio Agnelli. Cheio de combustível, pois acabara de decolar rumo ao Rio de Janeiro, o avião explodiu e incendiou a residência. Dois anos depois, os moradores do sobrado receberam uma indenização de 3,3 milhões de reais, paga pelo espólio de Agnelli. O acordo compreende danos materiais e morais, incluindo eventuais lucros cessantes. Após o acidente, a Rua Frei Machado, que fica próxima à Avenida Braz Leme, uma das mais movimentadas, foi fechada com grades e portões. Apenas os moradores têm acesso às residências, de alto padrão.

Como será?

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Maquete do Campo de Marte vista de cima com alguns números que indicam espaços
(SMUL/Divulgação)

1. Quatro campos de futebol 

2. Área de esplanada multiúso

3. Museu Aeroespacial

4. Parque, mata e equipamentos

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Publicado em VEJA São Paulo de 23 de março de 2022, edição nº 2781

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