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OLÁ,

Letras e gatos

Confira a crônica da semana

Por Ivan Angelo
Atualizado em 23 mar 2018, 06h00 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00
 (Negreiros/Veja SP)
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Os gatos domésticos estão nos sofás há mais de 4 000 anos. Consta que os antigos egípcios se encantaram com um pequeno felino que encontraram nas guerras contra os núbios, seus vizinhos, e começaram a domesticá-lo. Ao longo de milênios, os gatos se adaptaram à vida caseira, farta de roedores nos depósitos de cereais, e por volta de 2000 a.C. já eram uma divindade no Egito, a deusa Bastet. Quem matasse um gato pagava com a vida. Após a conquista romana, os gatos egípcios se espalharam nas colônias romanas, no Oriente, no Ocidente, cruzaram com felinos silvestres, diversificaram-se.

Dizem que o gato é um animal feminino, tanto quanto o cão é masculino. O andar felino, o olhar cheio de nuances, a sensualidade, a cumplicidade com a noite… Há um pouco de tudo isso, de fascinação e preconceito, na associação que os homens fazem entre gatos e mulheres. O privilégio mudou: hoje, tanto há “gatas” quanto “gatos” no palavreado da sedução e da avaliação física. Mas por que se diz que escritores gostam de gatos? Talvez não seja a “felinidade” que os encanta, é provável que seja o silêncio. Gatos não interrompem.

Nunca tive gatos, mas escritores amigos meus sim. Paulo Francis tinha verdadeira paixão por seus três gatos. A mulher dele, Sônia Nolasco, mandou-me foto de Paulo sem camisa com um dos gatos aninhado em sua confortável barriga. Dormiam, os dois. Lygia Fagundes Telles dividia a mesa de trabalho com sua gata, e às vezes os olhos de uma paravam nas pupilas da outra, até que surgisse uma inspiração ou um bocejo. Aguinaldo Silva tinha um siamês com a ponta do rabo cortada que seguia nossa conversa sobre um capítulo para uma série de televisão, olhando ora para um, ora para outro, até desistir e ir embora, aborrecido com o papo. Machado de Assis ganhou um de uma vizinha de 12 anos e escreveu-lhe uma cartinha carinhosa como se fosse o gato, dizendo que o dono comia à mesa com ele no colo. Dos novos, o ficcionista Luiz Ruffato medita sobre a lição de silêncio de seus gatos neste mundo cada vez mais ruidoso. Manuel Bandeira talvez não tivesse gatos mas, em Pensão Familiar, observa amoroso o fazer xixi de um deles e seus gestos delicados para encobrir o molhadinho: “É a única criatura fina na pensãozinha burguesa”.

O poeta T.S. Eliot amava gatos. Fez um belo poema sobre os nomes deles. Diverte-me imaginar como surgiu essa ideia. Estamos em Londres, numa tarde fria, e uma linda jovem, universitária americana, entrevista Eliot, quando desfila pelo tapete um majestoso gato de farto pelo negro. Eliot olha para a moça e diz:

— Os gatos têm três nomes, you know.

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Really? — diz ela, e faz um gesto de universitária que se prepara para ouvir o famoso poeta falar sobre gatos.

— O primeiro é o nome caseiro, carinhoso, que a família usa para chamá-lo. Chaninha, Pretinha, Mimi etc. O segundo é um nome para as visitas. Faz um belo efeito quando uma pessoa importante olha para ele como você está olhando agora, esse gesto macio e elegante de colocar a pata no chão, e pergunta o nome dele e respondemos: Nabucodonosor, ou Atahualpa, ou Shakespeare, ou Urias. O gato não atenderá quando o chamarmos por um desses nomes, ele nos olhará com indiferença felina.

Nesse momento o gato pula para o colo do poeta e a voz de T.S. torna-se pouco mais que um sussurro:

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— O terceiro nome é o que ele próprio se dá, e pelo qual gostaria de ser chamado, mas que guarda consigo no silêncio aveludado de seus passos, no mistério vertical de suas pupilas.

O poeta sorri para a moça muito branca, enquanto alisa os pelos negros de Akhenaton.

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