As 7 horas do domingo (21) a arrumadeira Antonia Neuma de Moura ouviu um estrondo vindo da entrada da pensão onde mora há doze anos com dois filhos e dois sobrinhos, no Largo Coração de Jesus, no centro. Era a polícia iniciando uma megaoperação na Cracolândia. “Sai, sai”, ouviu dos homens armados no momento em que acordava com os chutes nas portas do local. “Foi um susto enorme”, lembra.
Houve corre-corre nas imediações e gritaria por causa do uso de bombas de gás lacrimogêneo. Cerca de 900 policiais faziam uma varredura em outros imóveis e, ao lado de funcionários da prefeitura e de máquinas retroescavadeiras, desmantelavam as barracas de lona armadas na Rua Helvétia e na Alameda Dino Bueno.
Nesses abrigos utilizados como residência improvisada pelos viciados também ocorria o “feirão das drogas”, sob o controle de bandidos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Ali, os criminosos sentiam-se em casa e expunham suas mercadorias sobre mesinhas de metal.
Segundo cálculos de profissionais do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), o comércio movimentava por mês 600 quilos de entorpecentes, o que gerava um faturamento de 8,4 milhões de reais. No fim da manhã do domingo, as autoridades festejavam o resultado da iniciativa.
Na ação, 53 pessoas foram presas, incluindo 48 traficantes, e apreenderam-se 12,3 quilos de crack e três fuzis. Geraldo Alckmin e João Doria acompanharam de perto a movimentação e comemoraram o êxito do trabalho, ressaltando a ausência de feridos e de confrontos mais graves. “A Cracolândia acabou”, afirmou o prefeito.
Ao longo do mesmo dia, entretanto, foram surgindo sinais claros de efeitos colaterais da intervenção. Dos cerca de 800 usuários retirados do fluxo, nome que se dá ao aglomerado de dependentes que circulam pelas ruas da região, pouco mais da metade recebeu abrigo emergencial no Complexo Prates e no Centro Temporário de Acolhimento (CTA), inaugurado no início de maio por Doria.
Foram internados, ainda, sessenta usuários no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) e na unidade do Programa Recomeço, do governo estadual, na Rua Helvétia, e outros 24 na Casa de Saúde São João de Deus, na Vila Jaraguá.
Os demais se espalharam pela vizinhança e seguiram consumindo drogas. Na segunda (22), a confusão tinha aumentado. Com medo de arrastões e saques, os comerciantes deixaram as lojas fechadas ou trabalharam a meia-porta. Houve tentativas de invasão de estabelecimentos e furtos a pedestres. Aos poucos, uma nova Cracolândia surgiu na Praça Princesa Isabel.
Em mais uma visita à região, Doria amenizou o discurso da véspera. “Do ponto de vista físico, a Cracolândia acabou e não volta mais”, disse. “Agora, o atendimento e o combate ao tráfico são ações contínuas, policial e medicinal.” Na última campanha eleitoral, o prefeito elegeu a recuperação do centro como uma de suas prioridades e bateu firme na política do antecessor, Fernando Haddad, que implementara por ali o De Braços Abertos.
Baseado na ideia de redução de danos, o projeto oferecia abrigos em pensões e remuneração aos viciados em troca de serviços como o de varrição. Na prática, as moradias foram destruídas por roubos e furtos promovidos por seus ocupantes e boa parte dos inscritos só aparecia no dia do pagamento. Com mais dinheiro circulando na área, o preço do crack aumentou.
Doria prometeu acabar com o negócio e, no lugar, implantar outro programa, o Redenção. Nos últimos meses, a equipe do prefeito vinha discutindo com o Ministério Público a implementação da ideia, que previa, de forma gradativa, cadastrar usuários, desapropriar imóveis irregulares e criar serviços ambulatoriais para atendimento, entre outras medidas.
Quando tudo ficasse pronto, haveria uma intervenção final conjunta com o governo estadual na área. No último dia 12, Alckmin concedeu entrevista na qual dizia que iria ocorrer uma operação grande no lugar. Um trabalho de investigação do Denarc, no entanto, apressou a chegada da polícia ao local.
Segundo grampos telefônicos realizados com autorização da Justiça, os traficantes do PCC já estavam se preparando para reagir à altura. “Falar, todo mundo fala. Quero ver fazer acontecer”, diz um bandido em um dos áudios, obtido com exclusividade por VEJA SÃO PAULO. “Os irmãos falaram que é para meter bala de doce”, completa o criminoso, referindo- se a ordens dos comandantes do grupo. A expressão “doce” é gíria para chumbo grosso.
Diante disso, tomou-se a decisão de agir rápido. A prefeitura teve de correr atrás para enviar os caminhões de lixo e as retroescavadeiras ao local. Elas iniciaram as primeiras demolições no espaço em pleno fim de semana da Virada Cultural. Em público, autoridades da prefeitura e do governo estadual garantiram que tudo fora alinhado com antecedência entre as partes.
Nos bastidores, porém, integrantes da equipe de Doria dizem que o aviso do dia “D” chegou apenas alguns dias antes e reclamam de que a implementação do Redenção, que deveria ocorrer aos poucos, precisou ser acelerada. Os resultados da pressa ficaram evidentes.
No Complexo Prates, no Bom Retiro, pessoas vindas da Cracolândia não foram bem recebidas pelos residentes mais antigos, e houve quem optasse por retornar às ruas. Moradores e comerciantes que ocupavam imóveis incluídos na lista negra da prefeitura tiveram de abandonar esses lugares em poucas horas.
Na terça (23), no início da demolição de um desses endereços, o operador de uma retroescavadeira recebeu a ordem de pôr abaixo uma parede, sem saber que havia ali dentro dez pessoas. Uma delas era Marcos Francisco Zambuzi, que descansava em seu quarto quando foi surpreendido. Os destroços voaram em sua direção, e ele ficou com o tornozelo direito machucado. “Senti como se minha vida não valesse nada”, conta.
Ele, que pagava uma diária de 20 reais para ficar ali, faz bicos de eletricista para sobreviver e sustentar o vício. “Perdi praticamente tudo o que eu tinha, só recuperei meu RG, uma muda de roupa que estava no varal e minha caixa de som com três baterias.”
Sem ter para onde ir, Marcos e os vizinhos retornaram no dia seguinte para o mesmo endereço e passaram a dormir em colchões esticados num espaço do imóvel que ficou intacto.
Para os responsáveis por essa ação, o desastre aconteceu porque os moradores desobedeceram aos avisos de alerta. “Foi isolado o terreno, foi passada a fita, foi removida a energia elétrica, foi informado à população o que seria feito.
Só não nos demos conta de que havia uma entrada clandestina no fundo que dava acesso ao local onde essas pessoas estavam”, disse Marcos Penido, secretário municipal de Serviços e Obras.
A Defensoria Pública obteve na quarta (24) uma liminar que proíbe novas remoções e demolições do tipo, sem que sejam tomados cuidados mínimos.
A prefeitura diz que não vai recorrer da decisão. Na noite do mesmo dia, a secretária municipal de Direitos Humanos, Patricia Bezerra, entregou o cargo, depois de classificar de “desastrosa” a ação da prefeitura na Cracolândia.
Não é a primeira vez que se faz uma intervenção espetacular nessa área. Em 2015, por exemplo, na gestão de Fernando Haddad, a Guarda Civil baixou na Praça Júlio Prestes para retirar a “favelinha”, o apelido da aglomeração de barracas montadas na região.
Os usuários de drogas reagiram com pedradas, atearam fogo em latas de lixo, e duas pessoas ficaram feridas. A GCM retirou as cabanas. Haddad parabenizou a ação e afirmou que 126 dependentes haviam sido cadastrados no Braços Abertos. Quatro meses depois, as lonas voltaram a ser erguidas na Alameda Dino Bueno, a poucos metros do antigo local.
Na recente operação de Doria e Alckmin, pela primeira vez, conseguiu- se a prisão de um número grande de traficantes. A investigação levou oito meses e resultou em um inquérito de 3 500 páginas. Segundo o Denarc, o peixe mais graúdo apanhado na operação é Fábio Lucas dos Santos, apontado como uma das lideranças do PCC e tido como o responsável por coordenar o mercado de crack no centro.
Com quatro passagens pela polícia por tráfico, receptação, furto e adulteração de chassi de veículo, Santos acabou preso na manhã de domingo (21), com 300 gramas de cocaína, em sua residência, num condomínio fechado em Caraguatatuba, no Litoral Norte, comprada com o pagamento à vista de uma entrada de 100 000 reais em dinheiro.
Para os investigadores, ele chefiava de longe a operação na Cracolândia, o que o preso nega. “Fui batizado pelo PCC em 2008, comandei o estado, mas não tenho nada a ver com aquilo lá”, disse a VEJA SÃO PAULO na segunda (22), em uma sala no Denarc, enquanto aguardava transferência para o CDP Pinheiros. “Agora eu ‘tô’ fora do partido, fui expulso recentemente”, completou.
Os grampos telefônicos realizados pela polícia, no entanto, contêm diálogos em que Santos dá ordens relativas à distribuição de crack aos seus funcionários no centro. O número 2 do tráfico no pedaço também foi detido na operação. Leonardo Monteiro Moja, o Leo do Moinho, estava em sua residência, na Zona Leste.
Ele é dono de uma pensão nas redondezas da Cracolândia e suspeito de envolvimento na morte do socorrista Bruno de Oliveira, que havia entrado no fluxo no início de maio para resgatar uma mulher de 27 anos a pedido da mãe da jovem.
Depois da denúncia do desaparecimento de Bruno e de quatro dias de buscas, seu corpo foi encontrado no centro, com vários ferimentos e mãos e pés amarrados com fitas. “Confundiram o Bruno com um policial por causa de um documento do Corpo de Bombeiros que ele tinha na carteira”, diz Osvany Zanetta, delegado titular do 3º Distrito Policial de Campos Elíseos, responsável pelo caso.
A prova mais robusta contra Leo é a interceptação de um diálogo no qual o traficante decide o local onde o socorrista será morto na Favela do Moinho, que fica a dois quarteirões da Cracolândia. De acordo com o Denarc, o PCC assumiu o comando da área em 2013.
Para monitorar a região, o grupo tinha três seguranças armados, incluindo o atirador profissional Anderson Alves, que é desertor do Exército e ainda não foi preso. Ele dava “expediente” na cobertura dos hotéis da área ou nos andares mais altos dos prédios. Em foto encontrada pela polícia em sua rede social, Alves aparece em uma postagem chamando sua metralhadora de “Lurdinha”, ao lado de um pit bull.
Com a chegada do PCC, o tráfico ficou mais pesado e profissional na Cracolândia. Os antigos caixotes improvisados deram lugar ao “feirão das drogas”. A venda de entorpecentes dobrou no período, atraindo mais consumidores. O fluxo cresceu de 300 para 800 pessoas nas manhãs, com picos de 1 200 à noite.
Houve também um aumento de 56% na quantidade de furtos e roubos no entorno. “Os criminosos passaram a usar os dependentes químicos como escudo e os insuflavam contra a polícia”, diz Ruy Ferraz, diretor do Denarc.
Profissionais de saúde que atuam na área notaram uma mudança de comportamento importante dos usuários. “Eles foram acolhidos pelo PCC e ficaram ainda mais arredios a aceitar tratamento”, afirmou um deles a VEJA SÃO PAULO, com a condição de não ser identificado.
A exemplo do que ocorreu em ocasiões anteriores, as autoridades prometem não arredar pé da área e prosseguir no combate ao crime e no atendimento aos usuários. Na sexta, 26, a Justiça deferiu o pedido da prefeitura para internar compulsoriamente os casos mais graves de dependentes, após avaliação de uma equipe médica multidisciplinar e autorização de um juiz. A medida vale por trinta dias.
Ao mesmo tempo, Doria trata de tirar do papel as etapas previstas do Redenção. As ações do poder executivo municipal receberam críticas duras. “É o pedido mais esdrúxulo que vi em toda a minha vida”, afirmou o promotor da Saúde Arthur Pinto Filho, referindo- se à questão da internação compulsória. “É uma caçada humana que não tem paralelo no mundo.”
Ainda que alguns dos atropelos recentes mereçam mesmo fortes e indignadas objeções, a gritaria exagerada desvia o foco do principal: não há mais como uma cidade civilizada conviver com as cenas do “feirão das drogas” e o estado de abandono dos dependentes.
Chegou-se a um ponto em que a coleta de lixo foi interrompida no local porque os empregados das companhias de limpeza tinham medo de pôr o pé no lugar. Nem mesmo a polícia comunitária conseguia fazer seu trabalho. A cabo Roseane Beserra promovia semanalmente um grupo de oração que chegava a contar com 100 pessoas. “De dezembro para cá, as reuniões foram proibidas pelos traficantes”, revela. “Os bandidos não deixavam mais ninguém chegar perto da gente.”
Para a maioria dos paulistanos, o que interessa agora é que medidas práticas possam ser tomadas de forma a não repetir os erros dos últimos dias e que as autoridades persistam nos planos de combate ao crime e de desenvolvimento de programas sociais e de saúde mais eficazes.
Ninguém que conhece de perto essa realidade tem a ilusão de que o problema será resolvido a curto prazo. “Tudo de que eles precisam é alguém que lhes dê atenção e carinho e não os deixe em um canto”, diz a pastora Nildes Nery, fundadora da ONG Ação Retorno e com um trabalho de quase catorze anos dedicado aos moradores de rua e usuários de drogas.
“Vamos ver se o atendimento clínico na rua melhora, pois antes era difícil circular com todas aquelas barracas e o lixão propagava doenças”, afirma o médico Gilmar de Almeida Santos, da Associação Saúde da Família, entidade que presta serviços ao município.
O engenheiro Flávio Torres, dono de três casarões nas redondezas, sonha com uma mudança radical no panorama. “A gente não aguentava mais sentir o cheiro de crack pela janela”, diz. “Tomara que resolvam mesmo essa situação.”
LUTA SEM FIM
Várias ações foram tentadas na região, mas não resolveram o problema
Fevereiro de 2010
A Polícia Civil, sob o comando do governador José Serra, prendeu 300 pessoas próximo à Estação da Luz. A maior parte dos detidos acabou voltando às ruas logo depois.
Janeiro de 2012
Após a Polícia Militar expulsar o “fluxo” da Rua Helvétia, viciados passaram a perambular por outras vias do centro.
Abril de 2015
Depois de a gestão Haddad retirar barracas em uma “favelinha” na Praça Júlio Prestes, usuários reagiram atirando pedras e ateando fogo em latas de lixo. Duas pessoas acabaram feridas. Quatro meses depois, a “favelinha” ressurgiu em um ponto próximo do local original.