É uma cena comum em qualquer sábado, no frio ou no calor, com sol ou com chuva: homens de barba longa, vestindo capote preto e com a cabeça coberta por chapéu ou quipá, acompanhados por mulheres de saia comprida e levando os filhos pelas mãos circulam pelas ruas de bairros como Higienópolis, Jardins e Bom Retiro. O jovem joalheiro Benjamin, personagem da novela global Caras & Bocas interpretado pelo ator Sidney Sampaio, poderia estar entre eles. Isso porque a trama de Walcyr Carrasco apresenta o cotidiano de um clã paulistano que cumpre ao pé da letra os mandamentos da Torá, o livro sagrado do judaísmo – sendo o principal deles o respeito ao Shabat, período de orações e descanso que vai do pôr do sol de sexta ao início da noite seguinte. “As pessoas nos veem mais pelas ruas nesse dia porque não usamos carros, uma vez que é proibido gerar qualquer tipo de energia”, diz o rabino Shie Pasternak, da sinagoga Talmud Thorá Lubavitch, no Bom Retiro. Para Carrasco, cronista de VEJA SÃO PAULO, o folhetim retrata a cultura de um povo que ajuda a formar a diversidade da capital. “Costumamos achar que nossos valores são os únicos corretos e verdadeiros”, afirma. “Mas os judeus ortodoxos mostram que há outros caminhos para a felicidade.”
Embora formem apenas 15% da comunidade judaica da cidade, estimada em 60 000 pessoas, os ortodoxos representam sua face mais visível, por carregar no rosto e no vestuário as marcas da fé. Para viver o personagem, Sampaio visitou sinagogas e teve aulas de cabala e hebraico. “Aprendi que eles são um povo que dá provas diárias de disciplina e devoção”, conta. Mas nem todo ortodoxo usa roupa escura, barba e peiot, os tais cachinhos laterais, como os que aparecem na novela. Na verdade, essas características estão relacionadas exclusivamente aos hassídicos, uma vertente do ramo asquenazita, originária da Europa Central e Oriental. Há ainda os sefarditas, vindos da Península Ibérica e do norte da África, e os orientais (da região da antiga Babilônia, atual Iraque), com aparência e rituais diferentes. O que os qualifica como observantes, como são igualmente denominados os ortodoxos, é o fato de se disporem a cumprir tanto as leis da Torá quanto as do Talmude, outro livro sagrado do judaísmo (veja algumas delas). Entre essas regras, estão as que se referem à relação homem-mulher. A separação de sexos começa na escola e se estende por todos os ambientes sociais – namoros e até mesmo apertos de mão são proibidos. Em nome do recato, as ortodoxas têm de usar roupas que escondam o colo, os joelhos e os cotovelos. As casadas cobrem os cabelos com peruca. Durante as rezas na sinagoga, eles se sentam perto do altar, enquanto elas ocupam um recinto à parte, separado por um biombo. “Essas normas servem para protegê-las, pois os homens são criaturas fracas, passíveis de ser distraídas”, argumenta o rabino Shabsi Alpern, da sinagoga Beit Chabad Central, nos Jardins.
Judeus ortodoxos não podem nem apertar o botão do elevador durante o Shabat. Por isso, nos últimos quinze anos, cerca de vinte edifícios residenciais da cidade, a maioria em Higienópolis, ganharam os chamados elevadores-shabat. “Eles são programados para parar em todos os andares e ficar abertos por alguns segundos para dar tempo de as pessoas entrarem e seguirem até o piso desejado sem ter de mover um dedo”, diz José Luís Mundim Soares, responsável por novas instalações da Atlas Schindler. Considerados guardiões de sua tradição, os ortodoxos têm trabalhado para renovar a religião na cidade. Segundo a Federação Israelita do Estado de São Paulo, em vinte anos o número de sinagogas paulistanas passou de 25 para 55. Dessas, catorze são do movimento Chabad-Lubavitch, vertente nascida na Europa, no século XVIII, que deu origem ao hassidismo e revitalizou a ortodoxia ao enviar emissários a diversos países com o objetivo de divulgar sua filosofia. Com a terceira maior população judaica das Américas – atrás apenas de Nova York, com 1,6 milhão de adeptos, e de Buenos Aires, com 165 000 – , a capital paulista hoje registra a presença de templos e casas de oração em bairros sem raízes hebraicas, como Vila Mariana, Morumbi, Perdizes, Pompeia, Pinheiros, Brooklin e Itaim Bibi. “Os ortodoxos se esforçam para atrair jovens que nasceram na comunidade mas não cumprem os rituais”, afirma a antropóloga Marta Topel, professora da Universidade de São Paulo e autora do livro Jerusalém & São Paulo: a Nova Ortodoxia Judaica em Cena. “Desde os anos 80, rabinos dos Estados Unidos e de Israel têm vindo para o Brasil trabalhar nesse processo que eles chamam de retorno ao verdadeiro judaísmo.”
É o caso do rabino Nathan Ruben Silberstein, de 36 anos. Nascido em Nova York, ele chegou a São Paulo em 1993, acompanhado de sua mulher, Hani, e constituiu uma família numerosa: o casal tem oito filhos, de 2 a 16 anos. As crianças frequentam escolas religiosas em período integral e, em casa, comunicam-se em iídiche e hebraico. Sem acesso à TV nem à internet, recorrem a amigos para acompanhar os jogos do time do coração, o São Paulo. Embora viva em Higienópolis, Silberstein decidiu abrir uma sinagoga em Moema. “Para atrair aqueles que não tiveram educação religiosa efetiva, é preciso sair do nosso reduto e buscar fiéis em outros bairros”, explica. “É claro que ninguém precisa ter uma vida regrada como a nossa, mas ir à sinagoga já é um bom começo.”
Atividades culturais também fazem parte desse processo de aproximação. O Espaço K, em Higienópolis, reúne mais de 2 000 associados com programas convidativos como palestras em faculdades, rodadas de pizza, baladas e viagens. A maioria deles não é ortodoxa, já terminou os estudos e sentia falta de um lugar para encontrar pessoas que compartilham a mesma crença. Já o Centro Novo Horizonte, no mesmo bairro, que concentra seu foco nas crianças e em suas mães, promove cursos de culinária e música. A maior parte dessas instituições é financiada por empresários judeus filantropos. “Para que a religião tenha continuidade, precisamos ajudar aqueles que propagam nossas tradições”, diz Meyer Nigri, proprietário da construtora Tecnisa. Ele calcula já ter contribuído para a construção de dez sinagogas e ajuda a custear despesas de rabinos, cujos salários, estimados entre 5 000 e 20 000 reais, seriam insuficientes para alimentar e pagar boas escolas a famílias numerosas. “É nosso dever auxiliar quem dedica a vida a atividades religiosas e educacionais”, comenta Ivo Rosset, presidente do Grupo Rosset, que contribui para escolas e ONGs judaicas. A família Safra, por sua vez, banca 100% das atividades de uma sinagoga em Higienópolis e outra na Consolação, além de ajudar na manutenção de algumas instituições. Esther, filha de Joseph e Vicky Safra, por exemplo, é diretora e mantenedora da escola Beit Yaacov, na Barra Funda.
Uma prática comum entre os empresários é patrocinar a instalação de restaurantes kosher (do hebraico, permitido), dieta que, entre suas regras, proíbe o consumo de carne de porco e frutos do mar e a mistura de laticínios com qualquer tipo de carne. Há um ano, um grupo de judeus praticantes procurou o chef Daniel Marciano, dono do restaurante Nur, em Higienópolis, com a proposta de adaptar o menu de seu estabelecimento às regras da religião. Eles pagaram a reforma e os utensílios, mais o salário de um supervisor. “O movimento da casa triplicou e eu fiquei tão animado que abri uma rotisseria kosher”, comemora Marciano. A crescente demanda por esse tipo de culinária explica o sucesso do McKosher, evento realizado anualmente pelo McDonald’s em parceria com a Con-gregação Monte Sinai. Na ocasião, o menu da rede é preparado segundo os preceitos kosher. O último evento, ocorrido em abril, na lanchonete da Avenida Ermano Marchetti, na Lapa, reuniu 4 500 pessoas e nele foram vendidos 7 000 sanduíches – um movimento 200% superior ao de um domingo comum. “Algumas pessoas compram mais de cinquenta sanduíches para congelar e consumir depois”, revela Pedro Palatnik, ge-rente de relações institucionais do McDonald’s. Esse sucesso, aliás, fez com que a rede aceitasse repetir o cardápio em mais quatro domingos de maio na unidade que fica na esquina da Alameda Santos com a Rua Augusta, nos Jardins. “Agora vamos propor à rede que tenha um corner kosher no Shopping Higienópolis”, conta Selim Nigri, presidente da Congregação Monte Sinai. Será, com certeza, um bom negócio para todos.
Nas escolas ortodoxas, pelo menos 50% do conteúdo é lecionado em hebraico, e meninos e meninas frequentam espaços separados. No colégio Iavne, nos Jardins, fundado em 1946 por imigrantes húngaros e poloneses, o uniforme das garotas é composto de saia longa de algodão. Por motivo de praticidade, nas aulas de educação física elas usam calças corsário. “Mas isso só porque a quadra é coberta e não existe o risco de alguém de fora da classe nos ver”, explica Karen Rosemberg, 14 anos. Corintiana roxa e fã de Ronaldo, na escola ela é artilheira dos times de futebol e handebol femininos. Não vislumbra, porém, uma carreira no esporte. “Seria impossível me destacar, pois não poderia jogar nem treinar aos sábados.”
Morador de Higienópolis, o rabino Nathan Ruben Silberstein (no centro) abriu uma sinagoga em Moema para atrair os judeus do bairro, que não tinham nenhum templo. Ele e a mulher, Hani, nasceram nos Estados Unidos, têm 36 anos e são ortodoxos da linha hassídica. Seus oito filhos – da esquerda para a direita, Jaime, de 12 anos, Re-beca, 10, Jacob, 15, Malka, 4, Joel, 13, Sara, 8, Moisés, 2, e Isaac, 16 – só se comunicam em iídiche e hebraico em casa.
Os ortodoxos só comem comida kosher, preparada sob a supervisão de rabinos. Para atender à comunidade, uma vez por ano o McDonald?s realiza o Dia Kosher, em que seu cardápio segue os preceitos judaicos. Amanda Stulman (à dir.), 27 anos, reuniu toda sua família – três filhos, mãe, irmão e marido – para ir à terceira edição do evento. “Venho todo ano aqui e peço o mesmo sanduíche: Big Mac”, diz ela, que é professora da pré-escola do colégio Gani Talmud Thorá, no Bom Retiro. As crianças, Meyr (à esq.), Chaya e Yossi (à dir.), experimentaram o McLanche Feliz. “Mas o hambúrguer veio sem queijo, porque não misturamos carne e laticínios na mesma refeição”, conta Amanda.
Em nome do recato, as ortodoxas têm de usar roupas que cubram os joelhos, os cotovelos e o colo. Prestes a se casar, Tisipi Eskinazi (à dir.), 17 anos, recorreu à estilista Esther Bauman para criar um vestido de noiva de renda e saia plissada com essas características. As futuras cunhadas, Dina Schildkraut e Miralle Mazuz (sentada), ajudaram a aprovar o modelo. “Ninguém precisa abrir mão da vaidade por ser religiosa”, comenta Tisipi.
Depois de casadas, as judias ortodoxas cobrem os cabelos com uma peruca, que só pode ser retirada na intimidade, diante do marido. Casada com um rabino, Yaffie Begun (com sua filha Feiga, de 1 ano, no colo) fabrica modelos com fios naturais, que são vendidos por 1 000 dólares cada um. Mãe também de Nina, 12 anos, e Chaya, 18, ela as ensinou a ter orgulho desse acessório. “Para nós, ortodoxas, é como usar uma coroa: indica que somos realizadas por termos nos tornado esposas e mães.”
Aos 28 anos, o rabino Moishy Libersohn (sentado) dirige o Espaço K, instituição que realiza palestras em faculdades, viagens e atividades culturais para atrair jovens de volta à religião. O local também é conhecido como uma balada judaica e ajudou a formar casais como Irina e Beny Schuchman (à esq.) e Daniel e Patrícia Olszewer (à dir.). “Depois que saem da escola, eles não têm mais onde encontrar seus pares”, diz o rabino. “A gente dá uma forcinha.”
ser judeu ortodoxo é…
…se dispor a seguir os mandamentos da Torá e do Talmude, livros sagrados do judaísmo. Eis os principais:
Rezar ao menos três vezes por dia: pela manhã, antes do pôr do sol e quando as primeiras estrelas começam a despontar no horizonte
Respeitar o Shabat, o período de descanso e oração que começa no pôr do sol de sexta-feira e se estende até o início da noite de sábado
Cumprir o mandamento bíblico “Crescei e multiplicai-vos”. Métodos contraceptivos só podem ser usados com permissão do rabino
Ingerir somente comida kosher, preparada com a supervisão de rabinos, segundo regras específicas, como jamais misturar carne com laticínios na mesma refeição
Manter espaços separados para homens e mulheres nas sinagogas
Jamais tocar em uma mulher que não a sua, nem mesmo com um aperto de mãos
Manter nas portas das casas, escritórios e escolas um mezuzá, invólucro com trechos da Torá, que deve ser tocado ao entrar e ao sair
Aceitar regras de recato como a que proíbe o namoro.Garotos e garotas podem sair para se conhecer, mas só devem se beijar ou se tocar após o casamento
Fontes: Cecilia Ben David, coordenadora pedagógica do Centro de Cultura Judaica; David Azulay, rabino da Congregação Monte Sinai; Marta Topel, pesquisadora de cultura judaica da Universidade de São Paulo; e Shie Pasternak, rabino da sinagoga Talmud Thorá Lubavitch