No Carnaval, enquanto muitos aproveitaram para cair na folia ou descansar, a advogada Janaína Barreto optou por apostar no futuro. Acordou cedo todos os dias, abraçou suas apostilas e estudou por pelo menos oito horas. A jornada anticonfetes e antisserpentinas tem uma explicação. Neste domingo (13), ela disputará com 18.000 inscritos uma das 193 vagas para juiz substituto no Tribunal de Justiça de São Paulo. Ou seja, são 93 candidatos por vaga, quase o dobro do índice para o curso de medicina no vestibular da Fuvest. “É uma escolha de vida. Perco hoje para ganhar amanhã”, diz ela, que segue para seu oitavo concurso.
O “ganhar” significa exatamente 19.643 reais de salário inicial por mês. Janaína alimenta o sonho de tornar-se funcionária pública, assim como milhões de jovens de classe média recém-saídos das universidades e de profissionais que não se sentem atraídos pelas oportunidades (e riscos) do setor privado. No ano passado, 10 milhões de brasileiros (estima-se que, entre eles, 800.000 paulistas) inscreveram-se em concursos para preencher vagas em órgãos federais, estaduais e municipais — 40% a mais que em 2005, de acordo com a Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anpac).
Apesar de o governo federal ter anunciado no mês passado a suspensão de todos os concursos programados para o Executivo em 2011, ainda haverá cerca de 80.000 postos em jogo neste ano para os poderes Legislativo e Judiciário, empresas de economia mista, como o Banco do Brasil, e estatais com orçamento próprio, caso dos Correios. Sem contar as vagas nas esferas municipal e estadual.
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“O bom emprego não está mais só na indústria, no mercado financeiro ou no comércio”, afirma Lia Salgado, autora do livro “Como Vencer a Maratona dos Concursos Públicos”. “Os governos voltaram a ser os maiores e melhores empregadores do país, com salários interessantes acompanhados de benefícios.”
Há postos que oferecem vale-babá, auxílio-moradia e bolsa de estudo para os filhos. As gratificações por tempo de serviço, por funções exercidas e outro imenso rol de possibilidades também podem multiplicar o salário inúmeras vezes. Um consultor legislativo do Senado, por exemplo, tem salário-base de 5.675 reais, mas chega a garantir remuneração de até 23.826 reais. Os atrativos da máquina pública são imensos. Para efeito de comparação, segundo levantamento do Grupo Catho, empresa de recrutamento para o setor privado, e do Ministério do Planejamento, um advogado no serviço público federal ganha a partir de 14.970 reais, quatro vezes o salário desembolsado pela iniciativa privada para esse profissional.
Assim como o treino dos corredores de provas de longa distância, a preparação para encarar os concursos requer planejamento. Em média, as pessoas levam dois anos até conquistar o governo como patrão. “Ninguém levanta da cama e diz que vai fazer uma maratona”, afirma o professor Carlos Alberto De Lucca, coordenador do curso Siga, um dos doze principais da cidade, com 4.000 matrículas anuais. Ao contrário dos vestibulares, programados para o início e o meio do ano, os concursos não obedecem a um calendário fixo. São cerca de três meses entre a publicação do edital — documento que apresenta o regulamento — e a data do exame. É pouco tempo para estudar o conteúdo de doze, quinze ou até dezoito disciplinas, quantidade que varia de acordo com o cargo desejado. “O candidato precisa se dedicar o ano inteiro para chegar ‘aquecido’ na hora de enfrentar os testes e as questões dissertativas”, afirma De Lucca.
O interesse no assunto é tamanho que existem no mercado paulista dois periódicos especializados no setor: o “Jornal dos Concursos” e a “Folha Dirigida”. Publicados semanalmente, com tiragens de 80.000 e 60.000 exemplares, respectivamente, eles trazem novidades sobre legislação, vagas abertas e editais de âmbito federal, estadual e municipal. “De dez anos para cá, a organização desta área se tornou mais profissional”, acredita o diretor de marketing do “Jornal dos Concursos”, José Ricardo de Oliveira. Outro termômetro que dá uma ideia de quanto esse mercado está aquecido: no mês passado, 42.000 pessoas estiveram no Palácio das Convenções do Anhembi, lotando aulas e palestras durante os três dias da 2ª Feira da Carreira Pública. Sim, Feira da Carreira Pública.
A dedicação aos estudos é essencial para o sucesso. O administrador de empresas Bruno Lekecinskas trocou a família, a namorada e os amigos por uma temporada de dez meses no Rio de Janeiro. Sem internet nem televisão, ele estudava dezoito horas por dia e só deixava sua quitinete, no bairro do Botafogo, para frequentar as aulas do cursinho preparatório. Em seu quinto mês de clausura, chegou a conquistar no ano passado o 14º lugar na disputa por uma vaga para analista de compras na seleção da São Paulo Turismo. Foi apenas um treino, pois seu objetivo, ainda não atingido, é se tornar analista do Tribunal Regional Federal, emprego que poderá lhe garantir renda mensal de 6.551 reais, além de benefícios.
Histórias de obstinação não faltam nas salas dos cursinhos. O deputado estadual Fernando Capez, que em 1988 passou em primeiro lugar no concurso para o Ministério Público de São Paulo, lembra da dele. “Meu método de estudo era simples e rígido: selecionei a bibliografia que precisava estudar, contei o total de páginas e dividi pelos dias que restavam até a prova”, diz. Capez lia oitenta páginas por dia, sem descanso. Detalhe: acompanhava o texto com uma régua, sem deixar de fazer um resumo ao lado de cada parágrafo. “O ideal é que o aluno leia pelo menos duas vezes o conteúdo”, afirma o procurador de Justiça licenciado, que na época ainda trabalhava em período integral no Tribunal de Justiça.
O serviço público é também uma alternativa para quem está desempregado, já atingiu os 40 anos e vê o mercado profissional se fechar cada vez mais. Se a opção é voltar ao batente o mais rápido possível, os concursos que exigem apenas formação em ensino médio são os mais indicados. Os exames pedem conhecimento de duas a cinco matérias e os salários variam de 2.500 a 4.500 reais.
Foi o que atraiu Cristina Koyama, de 41 anos, que se sentia com poucas chances de ser contratada por uma empresa privada depois de morar por vinte anos no Japão, de onde voltou há seis. “Quando for aprovada, vou fazer um pé de meia e deixar para a minha filha.” Nessa situação também estão candidatos com bons currículos e pós-graduação em universidades conceituadas. Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, o engenheiro mecânico Rogério Mascarenhas, de 54 anos, foi funcionário de uma subsidiária da Petrobras em Santo André por dez anos. Casou-se e deixou a estatal para tocar os negócios da família. Afetado pela crise de 2009, resolveu reinvestir na carreira pública: o objetivo é ser fiscal tributário ou da Receita Federal. “Como não tenho tempo a perder, estudo com a mesma disciplina de um lutador de caratê”, conta.
Se para uns se trata de uma saída para se recolocar no mercado, para outros a inclinação nasce em casa. O promotor Francisco Cembranelli, famoso por sua atuação no caso Isabella Nardoni, acompanhou a trajetória do pai como delegado de polícia e depois na promotoria pública. “O exemplo do meu pai continua vivo. Penso nele quando estou atrás das provas nos processos em que atuo”, diz ele, casado há catorze anos com Daniela Cembranelli, filha do também servidor Paulo Sollberger, subprocurador-geral da República que morreu em 2000. “Concorri com 8.000 inscritos para oitenta vagas”, lembra.
A vida é mais dura para quem enfrentará a seletiva para o Instituto Rio Branco, a escola responsável pela formação dos diplomatas brasileiros, em Brasília. Para os testes que ocorrerão em abril, estão sendo oferecidas apenas 26 vagas. No ano passado foram 8.869 inscritos para 108 postos: ou seja, proporção de 82 para um. Essa acirrada disputa não aflige Camila Surian, estudante do último semestre de relações internacionais da Anhembi Morumbi, que na semana passada fazia sua inscrição no curso preparatório da Escola Superior Diplomática. “Sei que ainda estou dando os primeiros passos, mas é questão de tempo. Um dia vou chegar lá.”
LONGE DO ALTAR
Ao perceber que precisaria de pelo menos dez horas diárias de estudo para conquistar a sonhada vaga de juíza, a advogada Janaína Barreto tomou uma atitude radical: desmanchou com o noivo, com quem já se relacionava havia oito anos. No Carnaval, sua única companhia foram as apostilas do curso preparatório. “Tenho 29 anos e muito tempo pela frente para me divertir e namorar”, diz.
MAIS SALÁRIO E MENOS EMOÇÃO
Depois de ir parar no hospital por causa de uma crise de stress sofrida quando era estagiário em uma multinacional, Bruno Lekecinskas resolveu dar uma reviravolta na sua trajetória profissional. Deixou para trás os planos de ser um executivo para buscar uma jornada fixa de trabalho, bom salário e “menos emoções”. Formado em administração de empresas, ele estuda doze horas por dia para alcançar uma vaga de analista no Tribunal Regional Federal, cujo salário é de 6.551 reais. “Estudo muito agora para ter tranquilidade no futuro.”
CARREIRA PÚBLICA NO DNA
Casados há catorze anos, Francisco e Daniela Cembranelli se acostumaram desde cedo com a dura rotina da carreira pública. Filhos de funcionários do Poder Judiciário, conviveram com as mudanças constantes de endereço, provocadas pela promoção dos pais, e jornadas de trabalho de até doze horas. Mesmo assim, a vocação falou mais alto. Daniela se tornou defensora pública, e Cembranelli, promotor – há dezoito e 23 anos, respectivamente. Para ela, a boa formação obtida na Universidade de Brasília fez a diferença na hora dos exames. “Naquela época eu tinha acabado de chegar a São Paulo e não conhecia ninguém. Por isso, trabalhava o dia inteiro e à noite mergulhava nos livros”, conta. Já Cembranelli chegou a fazer um ano de curso preparatório no Damásio de Jesus. “Concorri com 8.000 inscritos para oitenta vagas”, lembra. “Foi duro, mas realizei um sonho que era também do meu pai”, diz o promotor, célebre pelo caso Isabella Nardoni.
MAIS UMA CHANCE
Uma das vantagens da carreira pública é que não há discriminação por idade ou sexo no processo de seleção. É por causa dessa igualdade que Rogério Mascarenhas, de 54 anos, resolveu regressar ao funcionalismo público. Depois de trabalhar em uma subsidiária da Petrobras logo após se formar em engenharia, ele agora estuda para ser fiscal tributário ou da Receita Federal. “Sou síndico do meu prédio, estudo e ainda tenho muita energia para trabalhar.”
ASPIRANTE A DIPLOMATA
Camila Surian sabe que ser fluente em inglês e espanhol não é suficiente para quem espera ingressar no Instituto Rio Branco, único caminho para seguir a carreira diplomática. Cursando o último semestre de relações internacionais, ela não se apavora diante da dura concorrência que enfrentará nas provas. Além de dedicar-se aos estudos, não pretende, por enquanto, largar o emprego em uma multinacional do setor químico. “Meu caminho é longo e sei que vou chegar lá. É apenas uma questão de tempo.”
SOLUÇÃO PARA O DESEMPREGO
Aos 41 anos, Cristina Koyama nunca trabalhou no Brasil. Depois de ter voltado há seis anos do Japão, onde morou por duas décadas, ela busca no serviço público uma renda que lhe permita criar a filha. Embora tenha cursado apenas até o ensino médio, e sem experiência profissional, Cristina não entra em desvantagem na hora de brigar por uma vaga de agente administrativo. “No concurso, o que vale não é o seu currículo, mas o número de questões certas na prova.”