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Cidade Matarazzo reinventa a paisagem de São Paulo

O empresário francês Alexandre Allard adquiriu a área tombada por 117 milhões de reais

Por Arnaldo Lorençato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 dez 2018, 06h00 - Publicado em 28 dez 2018, 06h00
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  • Menos de 200 metros separam o antigo Hospital Umberto I, conhecido como Hospital Matarazzo, da Avenida Paulista. O complexo neoclássico dedicado à saúde, cujo prédio original foi inaugurado pelo industrial italiano Francisco Matarazzo no início do século XX, teve falência decretada em 1993 e permaneceu abandonado por quase duas décadas. Parecia ter destino inglório, como a própria residência do empreendedor, situada a poucos metros dali, que ruiu por descaso dos herdeiros e do poder público, dando lugar a um shopping e a um arranha-céu. Melhor sorte teria o hospital desde que o empresário francês Alexandre Allard lançou olhos, em 2008, para o portentoso terreno de 27 419 metros quadrados. Três anos depois, driblando todos os impedimentos da burocracia brasileira, o Groupe Allard adquiriu por 117 milhões de reais a área tombada, que conserva uma mancha verde remanescente da Mata Atlântica. Esqueça o antigo conjunto hospitalar. Com ousadia e atrevimento, Allard está produzindo uma vertiginosa revolução por lá sem descaracterizar as feições dos prédios centenários, graças a modernas técnicas construtivas. “Fui ao Condephaat para preservar o complexo. Teria sido muito mais fácil derrubá-lo para fazer cinco ou seis torres gigantes”, diz.

    Alexandre Allard
    Allard: “Fui ao Condephaat para preservar o complexo. Teria sido muito mais fácil derrubá-lo para fazer cinco ou seis torres gigantes” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    As transformações pelas quais passa o empreendimento, rebatizado de Cidade Matarazzo e prometido para funcionar parcialmente no fim de 2019 e ser inaugurado em maio de 2020, impressionam por se tratar de um conjunto de três construções históricas. Além do hospital, inaugurado em 1904 e ampliado com mais dois edifícios, há a capela Santa Luzia, de 1922, e a Maternidade Filomena Matarazzo, de 1943. Hoje a igrejinha, que voltará a ter missas e casamentos terminada a obra, parece um templo flutuante sobre o abismo — ou melhor, um vão de mais de 30 metros de altura —, apoiada em oito pilares que atingem 60 metros de profundidade. Para que se conseguisse tal feito, inédito no Brasil, foi aplicada uma remoção controlada e manual do terreno original para a execução da nova estrutura.

    Imagem mostra igreja suspensa por oito pilastras, com enorme vão abaixo
    Capela de Santa Luzia: apoiada por oito colunas de concreto com 60 metros de profundidade (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Posteriormente, a passagem das cargas da antiga base para a nova foi realizada por jateamento de água. Um processo mais complexo é usado na maternidade. “Nesse caso, a coisa é mais complicada, já que a capela pesa 1 400 toneladas e a maternidade, 11 000 toneladas”, explica Allard, que tem 52% do negócio e como único sócio o grupo CTF, do ramo imobiliário de Hong Kong — juntos, eles estão investindo cerca de 2 bilhões de reais no projeto faraônico. É na maternidade que ficarão 46 suítes, que se completam com os apartamentos da torre de ocupação quamista, de hospedagem e residencial, operada pela cadeia americana de luxo Rosewood.

    Cidade Matarazzo
    Maternidade-hotel: colunas apoiadas em sapatas de concreto e 46 suítes (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    O novo espigão ocupa os fundos daquele que será o maior parque privado da cidade, onde havia um esqueleto inacabado que seria uma extensão para consultórios do antigo hospital. Este foi demolido para dar lugar ao hotel com 25 andares e oito pavimentos de subsolo projetado por dois craques franceses da arquitetura, Jean Nouvel e Philippe Starck. Dono do mais famoso prêmio da profissão, o Pritzker, Nouvel é responsável pelo desenho da torre, que terá árvores em seus pisos, formando um jardim suspenso. O arquiteto, cuja obra mais recente é a belíssima Filarmônica de Paris, é um raro estrangeiro laureado com essa honraria a ter uma obra de impacto em terras paulistanas. No final, a área construída original saltará de 33 000 para 105 000 metros quadrados. O design de interiores da torre e da maternidade está nas mãos do badalado Starck, amigo com quem Allard já havia trabalhado na revitalização do parisiense Royal Monceau, um hotel decadente que fez sucesso na primeira metade do século XX. Também participam da empreitada os escritórios Triptyque e SPOL — este norueguês.

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    Interior da Capela de Santa Luzia: após a obra, voltará a receber missas e casamentos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Como a torre não receberá pintura, o concreto é parte do visual. Depois de a cor ter sido decidida por Nouvel, era necessário manter a mesma tonalidade em todos os andares. “É muito difícil. Até agora, no país de Oscar Niemeyer, ninguém conseguiu vencer esse desafio”, provoca Allard. Cada laje é feita em um único dia, ao limite de 750 metros cúbicos, para manter a uniformidade. Usou-se concreto autoadensável, de colocação mais rápida, mas também mais caro. Para chegar a esse resultado, há uma fila de 120 caminhões betoneira que abastecem a obra num mesmo dia.

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    O estacionamento subterrâneo para 1 500 carros nos fundos do terreno (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Os oito pavimentos subterrâneos têm lajes de 3 000 metros quadrados e capacidade total para abrigar 1 500 carros. No térreo da torre, elas passam a 2 000 metros quadrados e seguem assim até o 10º andar. Uma redução para 1 200 metros quadrados se verifica do 11º ao 15º andar. Até o 20º, as lajes terão 800 metros quadrados e do 21º ao topo há uma redução para 500 metros quadrados. Esse formato piramidal permite, nos espaços livres, plantar árvores que atingem até 15 metros de altura. Para chegarem a esses platôs, as espécies selecionadas pelo paisagista Louis Beneche serão levadas de helicóptero. “Essa torre vai virar o símbolo de São Paulo. Será o equivalente do Empire State Building”, garante o sempre superlativo empresário ao comparar seu xodó a um dos ícones de Nova York.

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    Cocares indígenas emoldurados combinam com almofadas revestidas com obras de Pablo Picasso: luxo das suítes (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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    Confiado à firma Atelier de France, o acabamento primoroso pode ser conferido em dois apartamentos do showroom e que estão entre as 124 plantas disponíveis para compra. Podem ter ou não terraço, deque e jardim em tamanhos que variam de 109 a 411 metros quadrados. Os maiores, dúplex de até 600 metros quadrados, estão esgotados. Além disso, Allard reservou para si a cobertura de 800 metros quadrados.

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    Suíte showroom: desenhada por Starck, as paredes são de madeira brilhante ou foscas (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Os apartamentos menores, de até 165 metros quadrados, fazem parte obrigatoriamente do sistema de locação e devem seguir a decoração proposta por Starck. São 150 no total, todos eles com o metro quadrado a partir de 41 500 reais. Acima dessa metragem, os outros 124 apartamentos remanescentes podem entrar ou não no serviço de locação. Nesse caso, a metragem parte de 35 000 reais, sem a obrigatoriedade de manter o padrão visual.

    Nas suítes desenhadas por Starck, paredes são revestidas de madeira e, no topo delas, há caixilhos invisíveis que permitem fixar quadros sem fazer um único furo. São pelo menos oito tipos de madeira brilhante ou fosca, como nogueira, goiabão, zebrano e freixo, além de opções como itaúba para o piso. Cocares indígenas emoldurados combinam com almofadas revestidas com obras de Pablo Picasso e espalhadas sobre os sinuosos sofás. Nada impressiona tanto quanto o revestimento de granito dos banheiros. “O granito pode ser definido como uma pedra pobre porque tem pequenos cristais brilhantes. Isso é bom quando se faz joalheria, mas é terrível no trabalho de acabamento”, ironiza Allard.

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    As pedras brancas de granito foram selecionadas por um especialista francês (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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    Para usar pedras nacionais sem esses, digamos, defeitos, ele trouxe um especialista da França, que visitou 780 jazidas para selecionar cinco, localizadas no Paraná, de onde vêm as pedras brancas, em Minas Gerais, as marrons, e, no Ceará, as pretas e ônix. Importou-se de Portugal um escâner para realizar a paginação dos blocos antes de cortá-los e reduzir de 40% para 20% a perda de material. “Se se analisa o acabamento que oferecemos, ele não é bom, é o melhor do mundo. Os bilionários do Brasil não têm uma casa com um nível de acabamento como este”, provoca.

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    Escada com peças de granito selecionadas em suítes de puro luxo (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Atravessado por um corredor de 180 metros que não pode ser modificado nem obstruído por causa do tombamento, o corpo do antigo hospital também passa por uma delicada mudança. Haverá um rebaixamento de todos os pisos para aumentar o pé-direito das sessenta futuras lojas. Em vez de shopping ou mall, essa ala do empreendimento é denominada de retail e inclui ainda um centro de artes. A chamada Casa da Criatividade, concebida por Rudy Ricciotti, terá um espaço para artes plásticas com três mostras anuais organizadas por Marcello Dantas, ex-curador da Japan House, além de um teatro com 600 lugares e um espaço de concertos para 1 500 pessoas. A Agence Malherbe é responsável pelo design de uma superloja de departamentos.

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    Torre com 25 andares, construída no fundo do terreno, com apartamentos de até 600 metros quadrados (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Estarão espalhados pelo jardim 69 quiosques ou nanoshops, onde serão encontradas peças de artesanato. Essa também será a sede da primeira loja física na América Latina da badalada empresa internacional de comércio on-line de luxo Far fetch. Sucesso garantido? Um especialista em luxo especula que o empreendimento está “do lado errado” da Paulista, numa área menos chique. Além disso, o Cidade Matarazzo deverá enfrentar a concorrência direta do Shops, versão compacta do Shopping Cidade Jardim, em plena Haddock Lobo, com sessenta lojas e restaurantes da grife Fasano, com inauguração prevista para o segundo semestre de 2019.

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    Projeto do francês Jean Nouvel, prêmio Pritzker em 2008 (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Dono de um entusiasmo em alta voltagem, nada parece abalar Allard, que defende seus projetos apaixonadamente. Parece que, quanto mais se sente desafiado, melhor, e nunca arrefeceu diante da ambição de imprimir sua digital na metrópole. Filho de engenheiro e de professora de matemática, nasceu em Washington D.C. cinco décadas atrás. Passou a infância em Abidjã, a antiga capital da Costa do Marfim, onde cresceu. Foi para a França na década de 80 para completar os estudos e também dar os primeiros passos numa carreira em que vários negócios catapultaram seu perfil de gênio precoce. Pavimentam seu currículo uma empresa de edição digital, a publicação de revistas e a atuação como publicitário.

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    Complexo do antigo hospital: fachada preservada (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    A fortuna sorriu para Allard em 1994, quando ele passou a armazenar informações obtidas em cupons-formulários publicados em uma revista de descontos distribuída a clientes de supermercados. Conseguiu, dessa forma, reunir não apenas dados pessoais do público como saber detalhes sobre suas preferências, uma preciosidade. A partir desse banco de dados, montou a Consodata, considerada, na época, a maior base de informações de clientes do planeta, com 1,7 bilhão de usuários em doze países.

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    Escada preservada em sua forma original (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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    “Descobri o mundo digital antes de todos. Vinte anos atrás, estava sozinho e vi a competição do retrovisor”, diz, sem modéstia. E guarda um ensinamento desde então: “O que muda na vida das pessoas é coisa mais importante para o data base, e não a descrição do que elas são”. O empresário reconhece também que o stress era enorme. “As coisas que eu criava ficavam pré-históricas em cinco anos.” Vendeu a Consodata à Telecom Italia por mais de 500 milhões de euros em março de 2000.

    Allard conseguiu ficar distante do mundo dos negócios por dois anos, período em que fez um giro pelo mundo de barco ao lado da mulher, a advogada Laure Leservoisier. Em vez de Paris, radicou- se em Londres, onde também vivem os dois filhos. Nessa época, fã declarado de arquitetura, arrematou a prestigiosa revista L’Architecture d’Aujourd’hui, fundada em 1930 e dedicada ao tema.

    Homem que não engole um “não”, Allard passou a se dedicar à empreitada paulistana depois de ouvir sonora negativa em Paris quando se dispôs a adquirir o La Marine, na Place de la Concorde, com a ambição de fazer do prédio do Ministério da Marinha um hotel de luxo e um polo para o artesanato francês.

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    Corredores preservados em suas formas originais mais o piso rebaixado (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    As grifes de luxo que pretende atrair para o shopping — ele prefere manter sigilo sobre elas — estão longe de ser novidade na vida do empreendedor. Allard chegou a ter participação de 30% na Balmain, reconhecida hoje pelos vestidos bordados, e comprou, em 2010, a marca de streetwear Faith Connexion. Mesmo com essas relações com o mundo da moda, um concorrente direto até o elogia e considera válida a iniciativa, mas alfineta que Allard é um player menor e dependerá de vendas online. Também devem garantir movimentação na área do retail 34 restaurantes. Na conversa com Allard, ele deixou escapar um nome: Le Jazz Brasserie, com três filiais paulistanas, uma delas no concorrente Shopping Iguatemi.

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    O restauro preservou os corredores do antigo prédio como eram (Alexandre Battibugli/Veja SP)

    Parece muito? Não para Allard. O empresário pretende completar a obra grandiosa com um projeto de reurbanização do entorno, com um túnel a ser aberto na Rua São Carlos do Pinhal, um parque linear e uma feira de produtos orgânicos de hortas urbanas a ser concebida pelos irmãos Campana. Ficará no trecho da Alameda Rio Claro entre a Avenida Paulista e a Rua Pamplona, via que passaria a ter apenas trânsito local. Completa o circuito um misto de hotel e coworking para millennials na mesma calçada, encomendado ao escritório Andrade Morettin. “Há mais dólares na cabeça dos brasileiros criativos do que no pré-sal. Quero colocá-los lado a lado com os ricos”, profetiza. “O Cidade Matarazzo sem dúvida vai ser um sucesso porque não temos compromisso com pequenas coisas como fazer dinheiro a curto prazo. É uma máquina do business moderno, sustentável.”

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