É impossível não prender a respiração quando o presidente da casa de leilões Christie’s ameaça bater o martelo e concretizar a venda de uma tela de Picasso por quase 18 milhões de libras esterlinas (46 milhões de reais). No centro de Londres, a bela sala de paredes azul-marinho, pé-direito altíssimo e impecável carpete creme está lotada de potenciais compradores e jornalistas. Com os ouvidos colados em telefones, representantes de colecionadores de arte recebem instruções para dar lances mais altos ou abandonar a disputa.
É palpável a excitação causada pela obra Femme Assise, Robe Bleue, o retrato de Dora Maar, uma das amantes do pintor espanhol. Em uma acirrada competição, o milionário grego Dimitri Mavrommatis, por telefone, arremata o quadro. Depois de momentos de agitação, o leilão de Impressionismo e Arte Moderna segue vendendo criações de Monet, Degas, Gauguin, Renoir e Rodin, muitas vindas da coleção particular do importante galerista e mecenas suíço Ernst Beyeler.
Assim é o mundo da Christie’s, fundada em 1766 pelo inglês James Christie. São dez salas de venda ao redor do mundo: Londres, Nova York, Paris, Genebra, Dubai e Hong Kong, além de escritórios em 32 países, inclusive o Brasil. Com mais de 450 leilões por ano, trocam de mãos não só obras de arte, mas também joias, móveis, fotografias e vinhos. Só no primeiro semestre de 2011, a empresa movimentou o equivalente a 5,2 bilhões de reais. Isso representa um crescimento de 15% em relação ao mesmo período do ano passado.
+ Como se calcula um lance mínimo em um leilão
É um universo, por vezes, surreal como as telas de Magritte ou Dalí. Durante o café da manhã de apresentação da temporada de vendas Masterpieces (Obrasprimas), em junho último, chás e croissants eram servidos em meio a tesouros dos maiores mestres das artes. Tomar um cafezinho a um palmo de distância de uma tela do impressionista francês Claude Monet faz qualquer um suar frio, com medo de um tropeço milionário. Na sala vizinha, um curador casualmente tira da parede um desenho de Michelangelo para mostrar o verso da obra. Um visitante acaricia uma escultura de cera de um bebê gigante do contemporâneo Ron Mueck. Os méritos dos Kandinskys, Goyas e Mirós disponíveis são discutidos com naturalidade. Com um “quem é quem” das artes mundiais, a sala parece um museu. Há uma diferença, porém: as obras podem ser tocadas sem broncas da segurança. Tudo, absolutamente tudo, está à venda.
Essas mostras que precedem os leilões servem para potenciais compradores verem de perto os trabalhos que têm interesse em adquirir. Pouca gente sabe, mas também são abertas ao público. Apesar da suntuosidade da matriz londrina — leia-se: um porteiro vestido como um lorde que saúda os visitantes no melhor estilo inglês, amplas escadarias e banheiros de mármore —, qualquer um que queira entrar é bem-vindo. A maioria dos pregões também pode ser acompanhada de perto.
As mostras e leilões, no entanto, representam apenas o grand finale de um longo e árduo trabalho. Vender obras de artistas conceituados é a parte mais fácil. O maior desafio consiste em encontrar tais tesouros, um garimpo que fica a cargo de experts como Giovanna Bertazzoni, chefe do departamento de Impressionismo e Arte Moderna da Christie’s London. Energética, apaixonada pelo que faz, com um aperto de mão forte e aquela rara habilidade de se vestir de forma ao mesmo tempo chique e casual, ela traduz perfeitamente o estilo da empresa. A especialista conta que muitos dos colecionadores interessados em vender acabam vindo a ela, atraídos pela reputação da casa. “Temos uma marca poderosa, que invoca prestígio”, diz ela.
Por estar no mercado há quase 250 anos, a Christie’s também se beneficia dos laços fortes e duradouros que cultivou com herdeiros de alguns dos colecionadores mais importantes do mundo. Relações que passam de geração a geração. “Dispomos de muita informação sobre quem tem o que em termos de arte, estamos em contato permanente com as famílias, refazemos as avaliações das obras constantemente, damos conselhos sobre o que comprar e até criamos coleções para eles”, afirma Giovanna. Quando uma peça de determinado artista atinge preço recorde num leilão, os especialistas da Christie’s podem, por exemplo, avisar quem possui trabalhos semelhantes de que se trata de uma boa hora para vender.
+ Museus particulares mantêm obras de artistas contemporâneos
Encontrada a obra de arte, o próximo passo é checar sua autenticidade e fazer uma avaliação financeira para determinar o preço mínimo. O item é, então, fotografado para ser incluso no catálogo — a sede em Londres tem um estúdio especialmente para esse fim. Quando está prestes a ser vendida, a peça é trazida de um galpão nos arredores de Londres para um depósito interno. Como era de esperar, o espaço que abriga milhões de libras em artes, joias, móveis e outras relíquias está fora dos limites dos visitantes. De lá, o destino seguinte é a sala de leilões, onde os objetos são mostrados aos interessados por funcionários de avental e luvas brancas, enquanto acontecem os lances. Após o arremate, o comprador pode pagar alguns milhões por seu Renoir em caixas localizados no térreo.
Sim, obras-primas, diamantes raros e transações milionárias fazem parte do cotidiano de quem trabalha na Christie’s. Mesmo assim, há momentos em que até eles precisam se beliscar para acreditar no que estão vendo. Giovanna conta que assim foi quando visitou o apartamento de Yves Saint Laurent, em outubro de 2008, logo após a morte do estilista francês. Em uma das vendas mais memoráveis da empresa, a extensa coleção de YSL e de seu companheiro, Pierre Bergé, foi leiloada por mais de 333 milhões de libras (860 milhões de reais). A venda bateu o recorde de preços de uma coleção particular. “O imóvel, em si, era pequeno. Uns 200 metros quadrados, num prédio comum em Paris”, lembra Giovanna. “Mas, logo que entrei, tive certeza de que se tratava do lugar mais bonito, valioso e sofisticado em que já pisara. Foi incrível, encantador.”
+ Seis artigos vendidos por altos valores
Jussi Pylkkänen, presidente da Christie’s para Europa, Oriente Médio, Rússia e Índia, recorda com carinho uma venda que fez há 25 anos, pouco depois de contratado. Nada menos que os famosos Girassóis, do holandês Vincent van Gogh. “Representou uma mudança importante no mundo das artes, com a preferência passando do classicismo para o modernismo”, explica. Nos últimos dez anos, segundo Pylkkänen, houve uma nova transformação, dessa vez para obras contemporâneas, com os compradores mais interessados no estilo do que na nacionalidade dos artistas.
Com uma filosofia de buscar sempre a inovação — o fundador, James Christie, que havia feito fortuna no ramo de livros, foi um pioneiro, o primeiro a leiloar obras de arte —, a casa mantém um pé na modernidade. Hoje aceita lances de qualquer lugar do mundo pela internet, por meio do Christie’s Live. É possível, por exemplo, comprar um Picasso utilizando a conexão via satélite de um jatinho particular. Outras novidades são os aplicativos para iPhone e iPad, que permitem ver os catálogos e aumentar as fotografias para conferir as obras nos mínimos detalhes.
Todos esses caminhos para arrematar deverão ficar congestionados quando rolar um dos mais esperados pregões dos últimos tempos: a venda da coleção de peças (diamantes inclusos) da atriz Elizabeth Taylor, morta em março. Serão várias rodadas de lances, entre dezembro deste ano e fevereiro de 2012.
A Christie’s também tem os olhos firmes no mercado internacional. Já promove turnês para mostrar coleções em países que vão da Ucrânia ao Cazaquistão e pretende continuar viajando. “Vamos organizar exposições em lugares onde nunca estivemos, como o Brasil”, promete Pylkkä-nen. Preparem os corações. E os bolsos.