Andar pelas ruas de Paraisópolis, a maior favela da metrópole, com 100 000 habitantes (o equivalente à população de Moema e Higienópolis juntos), é uma tarefa lenta para o líder comunitário Gilson Rodrigues, 35, baiano de Itambé e presidente da União de Moradores dali desde 2009. Não por causa do trânsito difícil e do “caos funcional” do vaivém pelas ruas estreitas. Seu maior desafio é superar o assédio dos moradores do bairro, encravado no Morumbi e com 800 000 metros quadrados de área — 10% do tamanho da Vila Mariana. Os pedidos variam: vão de um trocado para completar o almoço e comprar fraldas, passando por botijão de gás e ajuda para enterrar um parente a, claro, uma paradinha para selfie. “Quando tem incêndio, as pessoas ligam primeiro para mim”, diz ele.
Mesmo atuando no “varejo”, Rodrigues estabeleceu como meta de vida transformar Paraisópolis em um grande polo de negócios. Urbanisticamente, a área conta com a vantagem de ter ficado fora do zoneamento dos bairros tradicionais: residências, trabalho e lazer se misturam. Em meio ao pujante varejo instalado no térreo das edificações, de lojas de 1,99 a bares e salões de beleza, os moradores moram em cima dos comércios e fazem muita coisa a pé.
Atualmente, há na região 42 ações sociais bancadas por empresas privadas, 24 das quais gerenciadas pela União de Moradores. Nenhuma outra comunidade da cidade alcançou tal organização, nem mesmo Heliópolis, a segunda maior favela de São Paulo. Estima-se que as companhias engajadas em projetos sociais façam aportes de 17 milhões de reais por ano em Paraisópolis, o equivalente a 14 reais por mês para cada morador. O Instituto Coca-Cola, por exemplo, desde 2014 mantém um projeto que beneficiou 1 800 jovens, dos quais 40% conseguiram emprego. A mais nova a chegar foi a Cultura Inglesa, que instalou em abril uma unidade para 1 100 alunos — ninguém paga mensalidade.
Enquanto tenta atrair mais empresas voltadas para a questão social — o Hospital Albert Einstein e o Colégio Visconde de Porto Seguro são dois dos principais agentes nesse sentido —, o “rei de Paraisópolis”, como Rodrigues chega a ser chamado, quer aproveitar as iniciativas internas que deram certo para gerar negócios sustentáveis economicamente. Um dos exemplos começou a ser consolidado na laje da associação. Inaugurados há dois anos, o bistrô e a horta Mãos de Maria foram batizados com o nome do projeto criado em 2007 para capacitar as mulheres da região. Hoje são vendidas cerca de 100 marmitas por dia. Parte dos insumos sai da horta.
A empreitada, tocada pelas sócias Elizandra Cerqueira e Juliana Gomes, prevê a criação de uma franquia chamada Marmita das Marias. “Vamos desenvolver um aplicativo e capacitar mulheres de toda a cidade para aprender nossas receitas saudáveis”, afirma Elizandra, que viajou a Paris em 2018 para receber um prêmio oferecido pelo Instituto Stop Hunger, organização social da empresa Sodexo, que bancou a horta. “Seremos o Uber das marmitas na favela.” Outro projeto que pode ganhar o mercado é o Costurando Sonhos, que começou como curso de costura e está prestes a virar uma grife.
O negócio mais ambicioso de todos é a criação de um banco comunitário, voltado para a oferta de micro crédito, com juros mais baixos que os de mercado. Atualmente existe um cartão de crédito com o nome do bairro que gera para a associação uma renda em torno de 15 000 reais por mês — dinheiro usado na manutenção do prédio. Ainda sem prazo para começar a operar, a iniciativa tem a intenção de oferecer aos comerciantes conta-corrente, cartão de débito e maquininhas. “Um terço do lucro do banco será revertido para a favela”, promete Rodrigues. Ele pretende se tornar um dos sócios e expandir o negócio para outras comunidades. “Já pensou se virarmos o primeiro unicórnio da favela?”, sonha, referindo-se às startups que atingem o valor de mercado de 1 bilhão de dólares.
Enquanto estuda para abrir o banco — ele e os demais diretores da associação recebem capacitação da Fundação Dom Cabral —, o presidente da entidade começa a ver os frutos de ações sociais iniciadas há mais tempo. No último dia 8, onze alunos do Ballet Paraisópolis, escola inaugurada em 2012 pela bailarina Monica Tarragó, viajaram para Nova York, a convite da BrazilFoundation, para uma semana de aulas nos mais badalados espaços da cidade.
“Esperamos que nessa viagem surjam de dois a três convites para nossos bailarinos estudarem no exterior”, afirma Monica, que precisa equalizar a procura pelas aulas — a fila de espera tem 2 000 nomes — com o dinheiro sempre apertado para tocar o projeto, orçado em 50 000 reais por mês. Neste ano, o principal patrocinador da escola reduziu a um terço o montante que pagava até o ano passado. Situação parecida vive o rúgbi, que conta com 200 alunos e está apertando os cintos para ficar no azul.
Nem só de alegrias como ir para Nova York vivem os projetos sociais dali. Sem conseguir fechar o caixa da Orquestra Filarmônica de Paraisópolis, criada em 2010, o maestro Paulo Rydlewski precisou dispensar a maior parte dos 200 alunos em julho. “Eles entenderam as circunstâncias. Quem sabe possam voltar no começo do ano”, lamenta. Apesar disso, as apresentações continuam. A última delas ocorreu no domingo (8), na Casa das Rosas, na Avenida Paulista. Um dos artistas que participaram do evento é o estudante Acácio Reis, 26.
Nascido e criado em Paraisópolis, ele quase foi parar no tráfico antes de optar pela música, há dez anos. “A sedução para o mundo do crime é sempre muito grande, e para mim não foi diferente. Mas, quando apareceu a orquestra, eu decidi qual caminho seguir”, comemora. Hoje ele cursa faculdade de música e está sendo preparado por Rydlewski para ser o primeiro maestro da região. Enquanto isso, atua como assistente do chefe e dá aula de flauta doce na orquestra. Por ora não conseguiu juntar 300 reais para comprar uma batuta, nome da varinha que os maestros usam para reger. “Vou treinando com o lápis.”
A história de Reis é parecida com a de muitos jovens do pedaço (e do Brasil), e com Gilson Rodrigues não foi muito diferente. De família numerosa, o principal líder de Paraisópolis tem treze irmãos, mas só conviveu com um e conheceu apenas sete. Nunca soube quem é seu pai. Sua mãe, Maria Lúcia Rodrigues, era muda e vista em casa como louca. À medida que tinha filhos, a mãe e as irmãs dela se encarregavam de entregar os bebês sem seu consentimento a quem quisesse levá-l os. Foi assim com Gilson, que foi morar com um casal de italianos, mas por algum motivo acabou devolvido dias depois. Ainda na Bahia, apanhava do avô. “Ele nunca suportou os filhos da muda”, lamenta. Quando veio para São Paulo morar com uma tia em uma casa com mais de vinte pessoas, Paraisópolis foi o destino. Sem lugar para dormir, pois fazia xixi na cama (e apanhava depois), o garoto achou refúgio embaixo de uma mesa de sinuca no bar que funcionava na frente da casa. Perdeu a mãe com 9 anos.
A etapa seguinte, sob a rigidez de muitas tias, porém com liberdade, também foi difícil. “Convidaram-me várias vezes para roubar, mas nunca fui. Essa foi minha sorte.” O caminho para ser o dono do pedaço começou a ser trilhado na escola, quando Rodrigues foi eleito para a presidência do grêmio estudantil. De lá para a associação que hoje comanda foi uma questão de tempo. Pai de dois filhos e divorciado, ele é padrinho de 59 crianças da favela, muitas das quais agora quase adultas. “Se eu me esforçar, recordo o nome de todas.”
Sobre a presença do tráfico de drogas na comunidade, Rodrigues afirma que em Paraisópolis existe a lei da favela, como em qualquer outro lugar. “Eles sabem que estamos dando um futuro às crianças, que inclusive podem ser as crianças deles.”
Apesar de a popularidade de Rodrigues ser muito grande, tanta reverência não se concretizou em votos. Nas três eleições que disputou — duas para vereador e uma para deputado estadual —, ele obteve no total menos de 17 000 votos. As causas, diz, são a falta de recursos próprios e a interferência de políticos famosos na região. “Sem falar nos vereadores de outros estados que mandam ônibus para as pessoas que nasceram no Nordeste e não transferiram o título de eleitor para cá. Já vi dez ônibus saindo de uma vez só.”
A história do filho da muda daria um filme, Rodrigues costuma dizer, mas por enquanto ele se contenta com o fato de ter inspirado o personagem de Danton Mello em I Love Paraisópolis, novela global de 2015 que proporcionou a maior visibilidade da história à favela. No último capítulo, outra personagem, Ximena, interpretada pela atriz Caroline Abras, faz um discurso na Organização das Nações Unidas (ONU). Ela foi inspirada em mais uma história real, a de Renata Santos, que ficou dois anos presa por tráfico e hoje dá palestras a meninas infratoras, além de dirigir uma produtora de vídeo, a Quebrada. “A Ximena se transformou, e eu também. Não sou vítima e assumi meus erros.” O trabalho mais recente de Renata foi nas filmagens em Paraisópolis de parte da série Conquest, produzida e estrelada por Keanu Reeves e ainda sem data de estreia. O astro não passou por lá, mas a região estará retratada na obra.
“Nosso final feliz ainda não chegou. O monotrilho prometido parou no meio do caminho e a canalização do Córrego do Antonico, uma demanda de décadas, nunca ocorreu. Enquanto a prefeitura gasta uma fortuna com aluguel social, temos 5 000 pessoas sem casa por aqui”, queixa-se o Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores de Paraisópolis.
PARAISÓPOLIS TEM…
12 000 pontos de comércio, como bares e salões de beleza
23 ruas
2 000 vielas
1 campo de futebol
53 times de futebol
52% de mulheres
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652.