Como foi a construção da Verônica, a protagonista?
O Raphael Montes (coautor) queria uma heroína mulher, e eu pedi que ela fosse invisível. Delegadas em destaque temos muitas. A Elisabete Sato (delegada-geral adjunta da Polícia Civil) é um ícone na corporação. Agora, uma escrivã é invisível, e muitos nem consideram polícia. E é. O escrivão é tão importante quanto o investigador.
Como foi abordar a violência de gênero?
Para quem é mulher, esse sempre foi um tema. Nós assistimos a isso nos nossos pequenos núcleos e não percebemos. Quantas mulheres conhecemos cujo marido grita com ela e ela não reconhece como violência? Quantas mulheres trabalham igual ao marido, mas, quando têm de escolher, o emprego dele é prioridade? Na pandemia isso ficou escancarado: o casal está em home office, os dois têm reunião com os chefes no mesmo horário e ninguém para cuidar da criança. Quem fica? É quem ganha mais? A mulher até tem um pouco de culpa nisso porque ela assume a responsabilidade. É o “Deixa que eu faço que vai mais rápido”. Hoje, já vejo casais com bebês que quem troca a fralda é quem está livre. Na minha época, isso nem entrava em pauta.
A Janete, vítima no livro e na série, é real?
Ela é a soma de muitas. Muitas. Hoje existe um questionário de avaliação de risco que uma mulher está correndo dentro de um relacionamento abusivo. Ele mostra as etapas dessa violência até o grau em que ela corre o risco de morrer. A Janete foi construída em cima de todas as etapas dessa violência. É importante que a mulher entenda a própria situação, se é a Janete do primeiro episódio ou do sexto. É a história do sapo: se colocar na água quente, ele pula fora, mas, se colocar na panela e depois acender o fogo, ele não vai saber que está cozinhando. A mulher dentro de um relacionamento abusivo não sabe que está em um.
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As mulheres que caem fora ou denunciam são as que morrem?
Não. Conheço muitas que conseguiram sair e estão bem. Só não tem como saber, não existem garantias, porque o ser humano corre risco o tempo inteiro. Esse violentômetro ajuda muito. É importante buscar amparo. Existem serviços para isso, como o link que a Netflix colocou na série. É difícil sair de casa e fazer um B.O. O Magalu fez um trabalho interessante com botões pelas lojas e a campanha de meter a colher.
O Conselho Nacional de Justiça fez o do X na mão nas farmácias
Isso foi lançado às pressas e não deu muito certo. Quem vai receber a denúncia precisa estar preparado. A vítima chegou lá e a pessoa faz o quê? Liga para o 190 ou 180? Numa dessas, a mulher morre porque o cara descobre. Muitos funcionários das farmácias não estavam sabendo.
Como se forma um psicopata?
Existem três pilares: biológico, social e psicológico. É bem complexo. Nenhum é determinante, e eles não agem sozinhos. São transtornos de comportamento nos quais o indivíduo não sente empatia e existem diferentes graus. Não é doença mental. Não tem quem convença o Pedrinho Matador de que o que ele fez está errado. Ele não vai fazer de novo porque sabe que volta para a cadeia, mas não sente remorso. Um serial killer é raríssimo e extremo e não tem como definir só olhando o comportamento criminoso, por exemplo. Alguns graus de psicopatia são benéficos. Se você vai a um hospital com um ferimento, vai querer alguém que tenha a frieza para fechar e não que chore junto. O termo ficou banalizado, é mais fácil de resolver: matou porque é psicopata. Um canalha, às vezes, é só um canalha.
Tem solução para indivíduos violentos?
Às vezes pode ser pelo controle. Eu vi programas fora do país que mostram tratamentos que fazem o cara entender o próprio ciclo e qual é o gatilho. Uma vez sabendo quando é, ele tem ferramentas para quebrar esse ciclo. Você não pode convencê-lo de que o que faz é errado, mas pode mostrar que, se ele fizer, vai preso. É um bom motivo para não cometer o crime
Focamos em tratar a vítima, que é prioridade, mas na violência doméstica tem de cuidar da família toda. O agressor é o problema e tem de participar da solução
No Brasil poderia funcionar?
Focamos em tratar a vítima, que é prioridade. É correto. Mas, na violência doméstica, é importante cuidar da família inteira, ou vai ter pouco resultado. Se tem filhos, tem de tratar também, porque, no futuro, teremos homens violentos e mulheres que não reconhecerão a violência. O agressor é o problema e tem de fazer parte da solução.
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Os crimes do Brandão (Du Moscovis) na série são violentos. Isso é comum?
Sim, é bem cruel. Um dos mais cruéis que eu vi foi de um estuprador que só pegava casais. Colocava o homem para ver e dizia a ele que ela teria prazer de verdade. Acabava com o casamento e ainda inibia a denúncia. Imagina ser humilhado na delegacia.
São vinte anos acompanhando a polícia. O que mudou?
O caso Nardoni deu muita visibilidade à perícia que eu nem sabia que existia quando entrei. Em São Paulo, ainda falta reconhecimento e equipamento, apesar de hoje os peritos terem uma maleta melhor. Já fui para cena de crime em que os profissionais tinham de tirar do bolso para comprar soro para armazenar prova. Uma vez acabaram os saquinhos de coleta e só tinha o saco do cadáver para guardar tudo. Tem político que acha ainda que segurança é só comprar viatura. Estamos longe de ser CSI.
Como foi a sua primeira vez acompanhando uma cena de crime?
Foi um horror. Era um rapaz que tinha vindo do Guarujá para morar com a tia e tentar a vida como modelo. Ele se engraçou com a namorada do chefe do crime do bairro. Morreu indo para a padaria, às 6 da manhã, de short, chinelo e mão no bolso. Fiquei uma semana de cama. Nunca vai ser normal. A gente não aprende a não entrar no buraco e sim a sair mais rápido dele. Faço terapia há quarenta anos e é muito importante ter para quem voltar no fim do dia. Busco ajuda. Tomo banho de sal grosso, sete ervas. Tudo que me faz bem. Sou bastante aberta.
Como funciona seu trabalho com a polícia? Você recebe?
Não. Ganho a história. Faço a análise criminal, que é um giro pelas várias etapas da investigação e dos processos. Uma investigação de um crime em série é diferente de um homicídio comum. Fui ajudar no caso do assassino de Contagem, em Minas Gerais. Eram cinco mulheres mortas, sendo que em três delas foi identificado o mesmo DNA e não tinha suspeito. Estudei os inquéritos e percebi que todas as vítimas estavam ao celular. O cara levava o aparelho e deixava o chip. Parece óbvio, mas a informação não era explícita nos relatórios. Conseguimos rastrear pelo Imei e, dois dias depois, o indivíduo estava preso. E tinha dado um dos aparelhos à esposa.
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Publicado em VEJA São Paulo de 04 de novembro de 2020, edição nº 2711