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Entramos no circuito de bingos clandestinos da capital

Reportagem de VEJA SÃO PAULO flagrou casas que exigem senhas na entrada, têm mais de 200 máquinas de azar e sorteiam cerca de 1 milhão de reais por mês em cartelas 

Por Sérgio Quintella
Atualizado em 1 jun 2017, 15h52 - Publicado em 4 nov 2016, 23h00
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  • Por volta das 18 horas de uma segunda-feira de outubro, uma senhora com cerca de 80 anos, de cabelo roxo e elegante camisa de seda, circula com um copo de uísque e um cigarro pelo 2º andar de um sobrado insuspeito na tranquila Rua Doutora Neyde Apparecida Sollitto, a 500 metros do Parque do Ibirapuera. No ambiente escuro, ela se instala em uma cadeira giratória e desanda a alimentar duas máquinas de videobingo, batizadas de Pharao’s, com engomadas notas de 100 reais. Em menos de dez minutos, torra 2 000 reais na frenética jogatina.

    A quilômetros dali, em uma casa na Rua Guaicurus, quase em frente à sede do Poupatempo Lapa, um homem de 50 e poucos anos esmurra a parede e beija, extasiado, uma cartela de quinze números, pela qual pagou 2 reais, depois de faturar 600 reais por completá-la. Enquanto garçons servem bolo de fubá no amplo salão iluminado, ele avisa em voz alta que vai ao banco pagar uma conta atrasada, mas voltará em seguida para apostar o resto do prêmio. Na Rua Tuiuti, uma das principais do Tatuapé, uma mulher de 50 anos aperta o interfone de um prédio baixo espremido entre uma butique e um escritório de advocacia e diz seu nome. Do outro lado, o gerente do local confere o monitor da câmera de vigilância, reconhece a freguesa e libera a sua entrada pelo portão eletrônico.

    Bingo
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    Durante quase dois meses, a reportagem de VEJA SÃO PAULO flagrou cenas como essas ao percorrer o circuito de bingos clandestinos da capital. Alguns dos estabelecimentos não demonstram esforço algum para disfarçar a atividade ilícita. Um deles, por exemplo, funciona no 5º andar do tradicional Clube Piratininga, sediado desde 1934 na Alameda Barros, em Higienópolis.

    Qualquer pessoa entra sem dificuldade no local, onde empertigadas moradoras do bairro nobre pagam 2 reais pelo ingresso e 3 reais por uma cartela e disputam prêmios de até 1 000 reais. Outros endereços, no entanto, se escondem atrás de portas blindadas, contratam olheiros para vigiar a rua e exigem uma senha dos frequentadores. No sobrado de Moema, é preciso dizer a seguinte frase: “Vim aqui tomar um sorvete”.

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    Hoje proibidos, os bingos usufruíram quase quinze anos de legalidade no país, entre a década de 90 e os anos 2000. Nesse período, a capital abrigava cerca de oitenta estabelecimentos do ramo, alguns instalados em prédios portentosos e com serviços como cozinha 24 horas. Um dos mais luxuosos era o Imperatriz, na Avenida 23 de Maio, no Paraíso. Conhecido pela exótica decoração africana, que incluía estátuas, máscaras tribais e réplicas de presas de elefante, contava com cinquenta mesas de aposta. Do mesmo dono, o Imperador ocupava um imóvel de 3 400 metros quadrados na Avenida Sumaré, em Perdizes. Na região dos Jardins, destacava-se o trio Paulista, Augusta e Pamplona. Com o setor assolado por denúncias de que as empresas eram apenas fachada para mascarar operações de sonegação fiscal, o negócio foi banido em 2007.

    BINGO
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    Apesar disso, a jogatina continuou rolando solta e atualmente há casas clandestinas de variados tamanhos e perfis de público localizadas em todas as regiões de São Paulo. Há pontos com concorrência acirrada: no entorno da Rua Guaicurus, na Lapa, existem três em um raio de 1 quilômetro. Em suas versões modestas, geralmente em garagens improvisadas na Zona Sul, os apostadores permanecem de pé enquanto acompanham o resultado das rodadas em surradas TVs. Já os endereços mais sofisticados oferecem mimos como estacionamento com manobrista, comida e uísque de graça. Um deles, na Avenida Liberdade, é ornado por chafariz e adereços inspirados no Egito antigo, como múmias e pirâmides. Por ali, há a possibilidade de jogar em uma das 130 máquinas de videobingo ou tentar a sorte nas cartelas.

    Ambientes do tipo chegam a movimentar 1 milhão de reais em premiação por mês, seja por meio de sorteios-relâmpago de 5 000 reais, seja por meio de equipamentos com recompensa acumulada de 50 000 reais. Nesses locais, é comum encontrar mais de 100 pessoas jogando no meio da tarde, em geral mulheres na faixa dos 50 anos, aparentando ser das classes A e B.

    De forma descarada ou envolto nas sombras, todos os negócios têm em comum o fato de operar sob amplo conhecimento da vizinhança. “Da janela da minha casa, vejo todo o movimento dos frequentadores”, diz uma moradora dos arredores de um caça-níqueis na Lapa. O bingo na Liberdade está situado a 600 metros de um DPe de um batalhão da PM. As estatísticas oficiais, da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, sugerem uma forte repressão a essa atividade.

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    Segundo a pasta, nada menos que 743 bingos foram fechados na capital entre janeiro e outubro (o que dá uma espantosa média demais de duas operações do tipo por dia nesse período). Ainda de acordo com o governo, foram apreendidas nas ações 3 328 máquinas, um aumento de 25% em relação ao número de 2015. Uma batida recente, realizada em 11 de outubro, na Lapa, resultou na detenção de seis pessoas.

    O esforço, no entanto, é quase inócuo, pois as casas logo reabrem em endereços vizinhos ou até no mesmo ponto. A jogatina do Clube Piratininga, por exemplo, chegou a ser fechada pela Polícia Civil em abril de 2015, mas voltou a funcionar quase em seguida (hoje, opera diariamente entre 16 horas e meia-noite). “Os funcionários desses estabelecimentos são levados à delegacia, mas são substituídos no dia seguinte, em uma espécie de rodízio”, diz a promotora Mylene Comploier, do Ministério Público, que atuou no combate a esse tipo de negócio até o ano passado. “É um trabalho de enxugar gelo”, completa.

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    Parte do quadro desolador se deve ao envolvimento dos próprios policiais na proteção à atividade. Entre janeiro de 2014 e outubro de 2016, a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo recebeu 29 denúncias de participação de agentes civis e militares na segurança, na cobertura ou mesmo na gestão de clubes clandestinos.  “É impossível manter um bingo aberto sem a ajuda da polícia”, afirma o ouvidor Julio Cesar Fernandes Neves, que remete as queixas para as corregedorias de cada delegacia.

    Hoje, estão em curso 65 investigações contra policiais suspeitos de ligações com a máfia do jogo, sendo 43 militares e 22 civis. “Se comprovadas as acusações, eles serão excluídos da corporação”, diz o secretário da Segurança Pública, Mágino Alves Barbosa Filho. Em 2016, seis PMs foram expulsos por esse motivo e, no momento, 25 são réus em processos judiciais.

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    Nos bastidores de delegacias e quartéis, comenta-se que a maioria das casas de jogatina integra redes de organizações criminosas maiores. Mas o assunto não é tratado abertamente. “Os banqueiros do jogo do bicho dominam o esquema de bingo em boa parte de São Paulo”, diz um delegado, sob anonimato. Os empresários da ilegalidade usariam “laranjas” para abrir as empresas de fachada e atuar como gerentes.

    Os proprietários dos imóveis costumam lavar as mãos a respeito das atividades promovidas nos seus endereços. “Ali funciona um estacionamento, e não um bingo”, desconversa o dono de um prédio na Rua Carlos Vicari, na Água Branca, que o aluga por 10 000 reais. “Apenas alugamos o espaço, não temos responsabilidade alguma se está ocorrendo atividade ilegal”, defende-se João Guímaro, presidente do Clube Piratininga.

    Bingo
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    No Brasil, associar-se a um bingo não é considerado crime, mas uma contravenção, delito que prevê no máximo um ano de prisão (os proprietários de imóveis ou os responsáveis por clubes onde é realizada a jogatina, a exemplo do Piratininga, também podem ser processados). Na maioria dos casos, porém, a pena é cumprida na forma de prestação de serviços comunitários ou com o pagamento de cestas básicas. “A Lei de Contravenções Penais é de 1941, está completamente defasada”, diz Gabriel Zacarias Inellas, procurador de Justiça. “Uma legislação frágil é o principal motivo para a perpetuação dessa ilegalidade”, completa.

    Os frequentadores dos bingos estão sujeitos às mesmas (brandas) punições reservadas a empresários e funcionários. Mas, nesse caso, há outro risco paralelo envolvido: viciar-se no mundo das apostas. “Aquela máquina age sobre o jogador do mesmo modo como o crack influencia o dependente de drogas”, compara o ex-motorista Wilson Dutra. Ele passou oito anos frequentando casas do ramo e viu-se obrigado a vender um carro e o alvará de um táxi para quitar dívidas adquiridas na atividade. “Não estou curado, preciso de tratamento constante”, conta.

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    Bingo
    Bingo ()

    Sem jogar desde 2002, ele escreveu três livros sobre o assunto e, hoje, promove palestras para advertir as pessoas a respeito do perigo das cartelas. Além dessa orientação mais informal, os compulsivos podem buscar ajuda em grupos de apoio, como o Jogadores Anônimos, ou no Programa Ambulatorial do Jogo Patológico, do Hospital das Clínicas. “Conseguimos recuperar a metade dos doentes que nos procuram”, diz o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do grupo de trabalho, responsável pelo atendimento de 1 500 pessoas desde 1997. “Mas cerca de 25% dos meus pacientes chegam a tentar suicídio”, alerta.

    BINGO EX JOGADOR
    BINGO EX JOGADOR ()

    A encrenca relacionada aos bingos remete a 1946, ano em que os templos de jogos de azar foram proibidos pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra. Na época, um dos principais empreendimentos do setor na capital era o Cassino Paulista, localizado na antiga Ladeira São João, atual Avenida São João. Em 1993, a Lei Zico liberou novamente a atividade, de modo a fomentar o esporte amador — parte da arrecadação dos espaços deveria ser destinada a iniciativas na área. Em 2001, no entanto, os estabelecimentos caíram mais uma vez na clandestinidade. Vários deles se mantiveram na ativa por meio de liminares concedidas pela Justiça Estadual até 2007, quando o Supremo Tribunal Federal cassou todas as permissões provisórias.

    Bingo
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    Desde então, a discussão sobre a liberação definitiva dos jogos no país volta ao Congresso Nacional de tempos em tempos. No momento, há dois projetos em tramitação — um na Câmara dos Deputados e o outro no Senado —, que contam com o apoio do próprio Ministério do Turismo e de antigos empresários do ramo. “Na clandestinidade, não há a comprovação de que os prêmios são pagos de forma correta”, argumenta o presidente da Associação Brasileira dos Bingos, Otávio Sales da Silveira. Enquanto a discussão se arrastar em Brasília, muitas bolinhas continuarão caindo dos globos ilegais.

    “Operação Enxuga-Gelo”

    Algumas das ações mais recentes de combate aos bingos

    23 de março de 2015, Rua Itapeti, 809, Tatuapé

    Apreensão de quarenta máquinas, televisores e uma geladeira e detenção de quatro pessoas, liberadas na delegacia depois da assinatura de um acordo

    23 de abril de 2015, Rua Força Pública, 60, Santana

    Equipamentos para o sorteio de bolas, cartelas e máquinas de videobingo são levados pela polícia, que também detém provisoriamente seis pessoas

    11 de outubro de 2016, Rua Guaicurus, 1327, Lapa

    A batida rendeu a apreensão de aparelhos para sorteio e seis pessoas foram encaminhadas ao DP da Lapa e depois liberadas; o lugar reabriu no dia seguinte

    17 de outubro de 2016, Rua Com. Assad Abdalla, Centro

    Promotores do Ministério Público apreendem doze máquinas de videobingo em local que também fabricava DVDs piratas; vinte pessoas foram presas

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