O sol vai embora quando Fernanda (o sobrenome é omitido para preservar a identidade da família), de 40 anos, se debruça sobre a mureta, olha as centenas de casinhas que ornam a paisagem em forma de vale à sua frente e comenta: “Eu não deixo os meus filhos me verem chorar”.
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Cinco dias depois de a filha Bárbara, 16, ser alvo de agressões de dezenas de colegas de escola em Mogi das Cruzes, a Vejinha encontrou a família em casa, no andar de cima de um sobrado, em uma rua tranquila na cidade da região do Alto Tietê, a uma hora da capital paulista.
Os vídeos que mostram a adolescente transexual desnorteada após ser alvo de socos e chutes saíram dos muros azulados da Escola Estadual Galdino Pinheiro Franco e transformaram a vida daquela casa.
Na segunda-feira em que conversou com a reportagem, Fernanda estava cansada. Havia passado duas horas e meia em uma reunião com membros da Secretaria de Educação, representantes de movimentos sociais e parlamentares sobre as cenas bárbaras que viralizaram nas redes sociais.
Mais cedo, tinha levado a filha para avaliação em uma dentista que faz parte da ONG Turma do Bem, entidade que possui projetos para adolescentes com problemas bucais e mulheres vítimas de violência. Quando chega em casa, faz um café doce, para acompanhar a conversa no sofá de sua sala.
“Eu perdoo eles”, diz Bárbara, tranquila, sobre os agressores. Com 1,83 metro de altura, uma postura ereta e fã de João Gomes e Marília Mendonça, gosta de falar. Sobre tudo, mas, principalmente, sobre sua recente transição ao gênero feminino.
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Faz um ano que começou a tomar hormônios e três que emergiu como mulher, no novo nome. Mas o mergulho é mais antigo. Aos 7 anos, em um Ano-Novo na casa de uma tia, pulou na piscina enquanto gritava: “Mãe, sou uma sereia!”. O desejo da transição foi por volta dos 13, quando assistia com uma das irmãs a vídeos de “antes e depois” de outras mulheres transexuais.
Tudo começou em segredo, comprando os remédios escondido na farmácia, gestando a mulher que idealizava por nove meses, até a mãe encontrar os frascos. Não para frear, mas buscar orientação dentro da família. “Minha tia é enfermeira e me explicou os riscos, vou começar o acompanhamento médico”, conta a adolescente.
A mudança é o que guia seus sorrisos e traquinagens. Acompanha, com gosto, a própria transformação e dá o seu jeito para acelerar o processo. Chegou a cortar pedaços de espuma da cama para usar como enchimento nas nádegas. “Os meus colchões…”, lembra a mãe, rindo, mas os olhos mostrando que ficou um pouco brava também.
Agora, Bárbara malha, malha e malha. “Em um dia chego a fazer 500 agachamentos”, conta. Mas não é o que seria, na sua visão, o corpo ideal o que a faz subir a dezena de degraus até a área externa de casa e encontrar conforto. São os braços da mãe, sua cobaia da futura profissão: cabeleireira.
“Faz uns dois anos que não vou no salão”, diz Fernanda, que cria sozinha três filhas (de 19, 16 e 9 anos) e um filho, de 21, com a companhia da mãe, que também mora ali. Diarista, cozinheira e o que mais surgir, esbanja energia. Com o pouco tempo que sobra, quem mantém os cômodos em ordem é Bárbara, que também ajuda a mãe nos bicos.
A jovem conta que alguns dias atrás arquitetou, com orgulho, um bolo de sete andares. Entre sorvete e shopping center, dá uma escapulida de trem para a capital. Às vezes para encontrar um namorado. Mas também para vislumbrar o futuro. “Quero montar um salão de beleza em São Paulo.”
Enquanto ainda precisa se formar no ensino médio, no entanto, 2022 é uma incógnita. No dia 8 de fevereiro, Bárbara relata ter sido atingida por bolachas e ofensas transfóbicas por parte dos colegas.
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Contou à polícia que, no dia 9, foi agredida com um copo, jogado contra seu rosto. Em reação, chutou cadeiras na sala de aula e acertou outra estudante. Os vídeos mostram o momento em que diversos jovens partem para cima da adolescente.
A família ainda não decidiu se Bárbara vai seguir na mesma escola ou se pedirá transferência. “Ficou acordado que (ela) vai continuar afastada e fazer as aulas de forma remota”, diz o advogado Alexandre Gonçalves.
Procurada, a Secretaria Estadual de Educação confirmou que a aluna estuda temporariamente em casa. “Foi dada a opção de continuar na E.E. Galdino Pinheiro Franco ou a transferência para outra unidade estadual”, diz a pasta, que afirma que segue, em conjunto com a Diretoria de Ensino de Mogi das Cruzes, “à disposição e empenhada na conclusão do caso e pelo combate a qualquer tipo de violência e preconceito, dentro ou fora das unidades de ensino”.
Em nota, a Polícia Civil informa que o episódio segue em investigação no 2º DP de Mogi e “realiza diligências para esclarecer todas as circunstâncias relativas aos fatos registrados”.
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Publicado em VEJA São Paulo de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777