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Artigo: Sem incentivo para doar

No Brasil, não há estímulo para abrir a carteira e quem mais sofre são o terceiro setor, a cultura, o esporte, a educação e a assistência social

Por Jairo Saddi
Atualizado em 14 fev 2020, 15h59 - Publicado em 24 ago 2018, 06h00
O Palacete Franco de Mello, na Avenida Paulista (Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo)
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No Brasil, paga-se mais quando se doa ou herda do que quando se vende. O imposto sobre transmissão de bens imóveis (ITBI) é um tributo municipal que deve ser pago quando ocorre uma transação de imóveis onerosa, uma venda, e não uma doação. O porcentual de imposto, ou seja, sua alíquota, no município de São Paulo é de 3% da transação, a partir de 88 714,99 reais. Já o imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD) é um tributo estadual que deve ser pago na transferência de bens (móveis ou imóveis) por herança ou doação e sua alíquota no Estado de São Paulo é de 4% sobre o valor total da transmissão. Esse último pode ter alí quotas diferenciadas para heranças e doa ções, com o limite de 8% para ambas. A média nos estados é em torno de 6% e apenas cinco têm alíquotas mais baixas para doações do que para heranças.

Essa diferença entre as alíquotas mostra que não há incentivo para potenciais doadores. E quem mais sofre são os setores que mais precisam de doações e dependem quase exclusivamente do Estado: o terceiro setor, a cultura, o esporte, a educação e a assistência social. Em outros países, as experiências são muito diferentes. No Reino Unido, paga-se um tributo de transmissão que não incide sobre valores até 150 000 libras. As alíquotas são escalonadas, começando em 2% e atingindo o máximo de 12% do valor da venda, quando este excede 1,5 milhão de libras. Existe também o imposto de transmissão de herança ou antecipação, que é de 40% sobre o que excede 350 000 libras, ou 425 000, se a antecipação for para filhos ou netos. Há completa ausência de tributação quando os bens são transmitidos a instituições de caridade ou clubes esportivos comunitários amadores.

No Canadá, a tributação sobre transmissão é estadual. Nem existe em alguns estados e, naqueles em que existe, as alíquotas variam de 0,5% a 3%. O porcentual máximo é cobrado quando os valores excedem 2 milhões de dólares canadenses. No entanto, com exceção de dois estados, não há incidência de imposto sobre doação de qualquer tipo de bens imóveis. Em relação a heranças, o Canadá não tem impostos de incidência, é tributado apenas o ganho de capital, com alíquotas que variam de 22,25% a 27%, dependendo do estado. Mas, nesse país, existe um programa de desoneração fiscal nacional, que permite gerar créditos tributários para doações a instituições de caridade, associações atléticas amadoras, moradias populares, entre outras sem fins lucrativos cadastradas pelo governo federal.

O Brasil apresenta programas similares de isenção fiscal do imposto de renda, caso da Lei Rouanet e da Lei Federal de Incentivo ao Esporte. Mas a falta de divulgação e de facilidade em doar e receber os incentivos prejudica tanto as instituições que querem cadastrar projetos quanto os potenciais doadores. O Estado de São Paulo isenta do ITCMD as doações e heranças deixadas para entidades cujos objetivos sociais sejam vinculados à promoção dos direitos humanos e da cultura ou à preservação do meio ambiente. Por outro lado, exige que o reconhecimento dessa condição seja feito por uma secretaria estadual, além da apresentação de requerimento à delegacia regional tributária, dificultando tais transações. A experiência internacional mostra que está vigente no Brasil um sistema pouco racional, caro e pior, que não incentiva ninguém a doar. A tributação pode ser sim um fomento à cultura e a outras atividades. Quanto mais doações houver para entidades sem fins lucrativos com finalidades de interesse social relevante, como cultura, esporte e educação, melhor será o nosso país. Considerando o estado das contas públicas, a retomada lenta da economia, o cenário internacional desfavorável e as incertezas políticas, há que supor que a cultura ficará em segundo plano. Isso está errado. Precisamos de uma reforma tributária ampla, que simplifique o sistema, uniformize a cobrança de impostos conforme a capacidade contributiva e que incentive as doações.

Jairo Saddi. Pós-doutor pela Universidade de Oxford, doutor em direito econômico (USP), professor da Escola de Direito da FGV-Rio e membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura)

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