O senhor alto e grisalho abre a porta da escolinha e depara com um grupo de crianças de 5 ou 6 anos rindo e falando alto no corredor. Fingindo estar furioso, esbraveja: “O que vocês estão fazendo fora da sala de aula? E ainda mais sem os dentes!”. A criançada, a maioria banguela devido à perda dos dentes de leite, cai na risada. Estar temporariamente desdentada é, certamente, o menor de seus problemas: todas as crianças ali enfrentam algum tipo de deficiência física, como a falta de uma perna, uma coluna em forma de “s” ou uma medula incompleta que as impede de andar.
Elas fazem parte dos 2 500 pacientes que a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) atende diariamente em sua sede, na Avenida Prof. Ascendino Reis, no Ibirapuera. Já a figura simpática que circula pelo edifício empenhada em alegrar e relativizar as dificuldades da meninada é Eduardo Carneiro, diretor-presidente da instituição. “Deficiência aqui é como cárie para um dentista: quase todo paciente que entra tem”, diz, acrescentando que o que muita gente enxerga como tabu é, dentro do universo da AACD, tema trivial. Pelos corredores, é intenso o tráfego de cadeiras de rodas coloridas com Barbies e Mickeys a bordo e muletas ou andadores decorados com selinhos brilhantes. As crianças correspondem a 70% dos atendimentos, embora adolescentes, adultos e idosos também recorram à entidade.
Superpoderoso
Criada para auxiliar as vítimas de poliomielite, mais conhecida como paralisia infantil, a AACD chega aos sessenta anos, comemorados neste mês, vendo o perfil de seus pacientes se transformar. Com a pólio praticamente erradicada pelas campanhas de vacinação, suas portas se abriram a outros casos. Paralisia cerebral, que, ao contrário do que possa parecer, é uma deficiência física, e não mental, corresponde hoje a 41% dos casos. Esses pacientes compreendem tudo o que se passa, mas não controlam seus movimentos, dando a falsa impressão de estarem alheios. Lesões encefálica e medular também estão entre os casos mais frequentes.
Seis anos de espera
Vítimas de acidentes de trânsito, de armas de fogo e de quedas lideram as principais causas de danos à medula. Com o passar dos anos, de centro especializado em pólio, a associação se transformou em uma das principais referências do país no tratamento de deficiências físicas. Dez mil pessoas aguardam para ser atendidas na Grande São Paulo (outras 8 000 no país), formando uma fila de espera em que apenas risco de vida iminente justifica que um paciente passe à frente dos demais.— em média, os tratamentos infantis duram seis anos consecutivos.
Ao contrário de boa parte das ONGs, a AACD criou mecanismos próprios de arrecadação de dinheiro. Os custos da maioria dos atendimentos são bancados por ela. “É o projeto Robin Hood: cobramos dos que podem pagar para cobrir o tratamento dos que não podem”, diz Carneiro. Há nove anos na instituição, desde 2006 na presidência, ele é um dos 1 360 voluntários. Sem experiência médica, lançou mão dos conhecimentos administrativos que adquiriu no mercado imobiliário para incorporar novas formas de criar receitas e buscar mais eficiência operacional na AACD.
Por causa de um celular
Hoje, 70% do orçamento de 190 milhões de reais provém da própria entidade, principalmente do Hospital Abreu Sodré, referência em ortopedia, e da oficina de próteses; 17% vêm do Sistema Único de Saúde (SUS); e 13% são doações de pessoas físicas e jurídicas (o Instituto Votorantim e os bancos Itaú Unibanco e Bradesco estão entre os maiores colaboradores). Carneiro fez com que médicos passassem a pensar não só no atendimento, mas nos seus gastos implícitos. Exigente, foi jocosamente apelidado pela equipe de “homem de lata”. A fama de durão, porém, é logo desmentida pelas lágrimas que lhe vêm aos olhos quando conta as histórias dos heróis atendidos ali.
Quem consegue uma vaga, seja para terapias, seja para procedimento hospitalar, costuma agarrar a oportunidade e desafiar suas limitações na árdua rotina de atividades. O garotinho da capa, Matheus Dimitri Cavalcanti, de 5 anos, que na última terça-feira (10) escolheu a fantasia do Super-Homem para fazer seus exercícios, frequenta há um ano a AACD. Ele e a mãe vieram de Manaus, no Amazonas, e se instalaram numa casa de apoio em São Paulo. Dimitri, como é chamado, sofre de mielomeningocele, o que significa que parte do sistema nervoso central contido em sua coluna vertebral não se formou completamente. Tem também hidrocefalia, um acúmulo de líquido na cabeça que é drenado por válvulas. Nada disso, porém, o impede de ser um dos pacientes mais espevitados. Até ajustar as fivelas, prender todas as tiras de velcro e se assegurar de que o andador não vai apertar a pele do filho, Darcley Santos da Silva leva dez minutos.
Para retirar, são outros dez. Isso tudo sem que ele pare de se mexer por nenhum minuto. Durante essa operação de monta e desmonta, qualquer belisco faz com que o garoto reclame. Isso, porém, em vez de chateação, é motivo de comemoração. Ao nascer, Dimitri não tinha sensibilidade nas pernas. Brincando, chegou a arrancar uma unha do pé sem nem se dar conta, já que não sentia dor. A conquista é resultado de sete cirurgias e uma rotina intensa de terapias, que hoje lhe permitem sair em disparada assim que se apoia no aparelho.
Caminhada automática
No edifício-sede, há piscinas, máquinas para praticar a locomoção e salas especiais, como a de música, onde os pacientes utilizam os instrumentos para treinar concentração e coordenação motora. Na porta em frente, entre pincéis, tesouras, telas e tintas, reinam as artes plásticas. É ali que há seis anos a voluntária Enny Pacco auxilia os pacientes nas tarefas artísticas. Trata-se de sua segunda passagem pela AACD; a primeira ocorreu há 35 anos, quando a maioria dos atendidos era vítima de pólio. Alguns pernoitavam na própria instituição e, nos fins de semana, eram levados para passeios organizados pelos voluntários. “Fretávamos um ônibus e íamos todos à praia”, relembra Enny.
Cada voluntário se dedica por cerca de quatro horas a atividades como levar os pacientes ao banheiro e ajudar em tarefas administrativas e na recepção. Médicos, terapeutas e gestores que compõem o quadro de 2 077 funcionários são remunerados, o que garante um serviço profissionalizado.
Boneca de cristal
A dona de casa Sônia Pires dos Santos Silva derrete-se em elogios à equipe que cuidou de seu neto, Pedro Gabriel da Silva, de 12 anos. Internado desde a semana passada, ele viveu no último dia 6 um momento pelo qual esperou por seis anos: uma operação para corrigir uma escoliose acentuadíssima. A demora deveu-se principalmente ao preço de 30 000 reais da cirurgia. Há quatro anos, o valor era ainda maior, em torno de 60 000 reais, e transcorriam nove anos até se chegar à mesa de operações.
Hóspede e paciente
Além da sede, a AACD possui duas unidades na Grande São Paulo, na Mooca e em Osasco, e se prepara para inaugurar no ano que vem outras duas, em Santana e Campo Limpo. Fora da região metropolitana de São Paulo, conta ainda com quatro unidades, no Recife (PE), Uberlândia (MG), Porto Alegre (RS) e Nova Iguaçu (RJ), e mais duas filiadas, uma em Joinville (SC) e outra em São José do Rio Preto (SP).
Essa expansão tem sido bancada pelo montante arrecadado anualmente pelo Teleton, mutirão de solidariedade transmitido pelo SBT, que em novembro chega à sua 13ª edição. Durante 24 horas, artistas vão ao ar pedir doações que, ao fim do programa, somam 20 milhões de reais. O valor é suficiente para construir um hospital, o que consome cerca de 3 milhões de reais, e permitir seu funcionamento por três anos. Isoladamente, no entanto, o evento não garante autonomia financeira à entidade, o que Carneiro promete conquistar nos próximos anos. Mais um desafio entre os milhares vividos diariamente ali.
Que tipo de problema têm os pacientes tratados pela AACD (em %)