Lavar os próprios cabelos, escrever e caminhar foram alguns dos prazeres cotidianos que subitamente deixaram de fazer parte da rotina de Mariana de Oliveira, de 38 anos, em 2018. Com doença de Crohn, ela teve uma perfuração intestinal seguida de infecção generalizada que causou necrose. Ao completar um ano da amputação das pernas e mãos, Mariana estava de pé e realizando as tarefas que mais gosta, incluindo fazer carinho no filho Dudu, de 9 anos. “Meu filho nasceu com mielomeningocele e acompanho desde pequeno sua reabilitação na AACD, vejo o cuidado dos terapeutas. Quando chegou a minha vez de precisar de tratamento, sabia que queria ir para lá, que eles estavam preparados para receber não só quem nascia com deficiência, mas também quem adquiria alguma”, lembra Mariana. “Na AACD foi onde vi histórias de sofrimento e de voltas por cima.”
Prestes a fazer aniversário na próxima segunda (3), a Associação de Assistência à Criança Deficiente chega à marca dos setenta anos com grandes voltas por cima no seu próprio histórico — e ainda há desafios a superar. Fundada como entidade sem fins lucrativos pelo doutor Renato da Costa Bomfim, especialista em ortopedia, teve como primeira grande batalha o auxílio a quem tinha poliomielite, doença eliminada do país desde 1994 graças às campanhas de vacinação.
Em meio à pandemia no novo coronavírus (para o qual ainda não há vacina disponível), a organização que realizou 10,5 milhões de atendimentos só na última década viu sua unidade de reabilitação do Ibirapuera esvaziar em março. Amedrontados, os pacientes deixaram de ir às consultas e o número de cirurgias despencou. “A pandemia veio para dar uma rasteira em todo mundo, este será um ano atípico”, constata Valdesir Galvan, superintendente-geral. Depois de três meses praticamente parado, o centro de reabilitação voltou a funcionar.
10,5
milhões de atendimentos na última década
Na unidade no Ibirapuera, porém, os avisos para não realizar corridas de cadeiras de rodas nas rampas parecem menos necessários em tempos de ocupação com capacidade reduzida. Os atendimentos, antes marcados a cada 45 minutos, agora ganharam um período extra de quinze minutos, só para a limpeza. A máscara é obrigatória. Por isso, a queridinha fisioterapia aquática, que molharia o equipamento de segurança individual, permanece suspensa. “Instituições de saúde estão preparadas para evacuar o prédio, enfrentar catástrofes, mas não havia simulado para a pandemia. Nessa hora, comecei a lembrar muito da frase ‘Na crise, tire o S, crie’ ”, completa o presidente voluntário, Carlos Eduardo Moraes Scripilliti.
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Para não deixar sem assistência os pacientes (só no ano passado 62 396 pessoas passaram por uma das nove unidades de reabilitação no país e no hospital paulistano), a AACD correu para gravar e pôr no ar, no seu canal do YouTube, instruções de médicos e fisioterapeutas para que os pacientes pudessem dar continuidade aos tratamentos em casa na quarentena.
61 232
*só no ano de 2019
produtos ortopédicos entregues*
“Para minimizar os impactos, nossa oficina móvel levava próteses e órteses até a residência dos pacientes e fazia ajustes”, conta Scripilliti. “As cadeiras de rodas que estavam prontas também foram entregues, não queríamos deixar esperando aqueles que já estavam ansiosos para receber o produto.” No último ano, a oficina entregou 61 232 produtos ortopédicos. Uma cadeira, feita sob medida, leva até três meses para ficar pronta. Os equipamentos podem ser personalizados. Para coletes, por exemplo, dá para pedir uma versão rosa com borboletinhas.
“Vimos de perto o impacto de campanhas como a do cinto de segurança, que diminuiu o número de pacientes com lesãomedular.”
Continua após a publicidadeDra. Alice Ramos
Nos últimos anos, a entidade conquistou certificações internacionais, profissionalizou a governança com seis superintendentes contratados e investiu para se tornar referência de ortopedia para adultos e crianças. “Quem quebrar o braço, por exemplo, poderá fazer uma cirurgia ou fisioterapia na AACD”, explica Edson Saab de Brito, superintendente de marketing e relações institucionais. Diversos planos de saúde cobrem o atendimento lá, mas a maioria dos tratamentos chega via SUS. O sistema público cobre 6 reais dos 98 reais que custa uma consulta com fisioterapeuta, e vale lembrar que muitos tratamentos chegam à casa dos cinco anos de duração, com sessões semanais.
“O que o SUS paga pelas consultas não cobre os custos dos longos tratamentos. Por isso buscamos recursos com a sociedade, para manter e aumentar os atendimentos.”
Valdesir Galvan, superintendente-geral
Como fechar a conta? A maior parte da receita vem do próprio hospital, mas as doações têm papel fundamental. Desde 2010 foram arrecadados 500 milhões de reais, grande parte via Teleton. Hebe Camargo foi a primeira madrinha do programa, que estreou em 1998 e desde então ocupa um fim de semana anual da grade do SBT com auditório lotado, shows de artistas e depoimentos de pacientes. Esse plano também precisou ser revisto em 2020: a aglomeração na plateia está fora de cogitação. Mas o evento está confirmado para 6 e 7 de novembro, em modelo praticamente digital, com apresentação remota e distanciamento no estúdio.
O formato será novidade para todos, mas uma voluntária antiga da AACD já está sentindo falta do burburinho dos bastidores da produção. “Sempre fui muito participativa, linha de frente mesmo. No Teleton, nunca fiquei na plateia acompanhando, estava sempre trabalhando”, compartilha Daisy Ripani, que desde 1988 dedica horas semanais à instituição. Em 2019, a proporção era de 2 013 funcionários para 1 185 voluntários na ativa. Quem quer ajudar logo aprende que a função nada tem a ver com brincar com as crianças no colo. “Na fisioterapia, o voluntário auxilia o profissional, economiza o tempo buscando um brinquedo, enquanto ele não pode sair do tablado para não deixar o paciente sozinho”, ensina Daisy. “O papel também não é falar de religião ou opinar sobre a possibilidade de cura. Só amparar a família, ouvir.”
1 185
*só no ano de 2019
voluntários trabalharam*
Filha do doutor Pedro Alberto de Moraes e Silva, que era membro do conselho da AACD junto com o fundador, Vera Moraes e Silva foi voluntária por anos até se tornar ela própria paciente. “Tive que fazer uma cirurgia radical, abrir a calota cerebral. Estive cinco meses internada no Hospital 9 de Julho, metade deles na UTI. Fiquei com paralisia do lado esquerdo, saí sem poder andar”, lembra Vera. “Eu não podia fazer as coisas, ficava brava.” Seu marido, Marcio Gonçalves Moreira, que na década de 50 chegou a arrecadar doações em troca de selinhos para a Campanha Pró Criança Defeituosa (sim, essa era a denominação original, deixada de lado definitivamente em 2000), foi quem esteve ao seu lado durante o tratamento. “Era um sacrifício. A gente acordava antes das 6 horas, ela com essa dificuldade, eu a ajudava a se vestir e íamos”, lembra Marcio.
Entre as comodidades oferecidas no hospital ortopédico estão quartos com dispositivos de cromoterapia. Luzes de LED atrás da cama mudam de cor para ajudar na promoção de estados mais tranquilos ou despertos. Em casos de maior complexidade, são realizados no centro de diagnóstico por imagem exames como a análise tridimensional de marcha. Para identificar patologias ortopédicas ou neurológicas, o paciente deve caminhar (mesmo que de muletas ou andador) sobre três placas de metal com eletrodos por baixo. A sua imagem é captada por oito câmeras. As placas captam o peso da pisada e como ele é distribuído. A partir daí, é gerado um gráfico em um computador, depois analisado pela equipe médica.
“Para expandir o atendimento, não vamos construir unidades, mas fazer parcerias técnicas.”
Carlos Scripilliti, presidente voluntário
No Bloco E, que recebe pacientes em tratamento de fraturas cotidianas e acidentes (não há pronto-socorro no local), ficam os espaços para aulas de fono, pilates e colocação de gesso. “Aqui é onde a gente vem relaxar no fim do dia”, brinca Alice Ramos, superintendente de práticas assistenciais. Na parte clínica, ela está à frente de cerca de 600 funcionários só em São Paulo. “Os melhores aparelhos são inúteis se o profissional não sabe usar. Esse olhar para as capacidades do paciente, saber aonde ele quer e pode chegar, é o mais importante”, afirma Alice.
No passado, a abertura de novas unidades espalhadas pelo Brasil era vista pela AACD como a melhor forma de levar o conhecimento a quem mais precisa. Os altos custos de manutenção — e as dificuldades de parcerias com prefeituras e estados — mostraram que não se tratava da estrategia mais viável. “Nossas nove unidades de reabilitação são deficitárias, cada unidade nova aumentaria o déficit. O plano é seguir com parcerias técnicas. Vamos identificar instituições locais que façam trabalhos nessa linha e dar todo o suporte e treinamento. Os protocolos serão como se fossem unidades AACD, mas montadas como parcerias”, explica o superintendente Galvan.
9 unidades
de reabilitação
Fora dos limites da AACD e das unidades parceiras, Mariana de Oliveira, a mãe do Dudu que ainda está em processo de adaptação às próteses das pernas, sonha com uma cidade de São Paulo verdadeiramente acessível. “Moro no Jaguaré e as calçadas não têm condição para caminharmos, meu filho com as órteses e eu com as próteses ou a cadeira.” Ela agradece pela tecnologia de comando de voz, que exclui a necessidade de apertar botões, mas sente falta de mais facilidade para frequentar os lugares. “Tem pessoas que só vão parar para pensar nisso quando acontecer com ela. A gente ainda tem muito a evoluir.” Pessoas dispostas a dar esse primeiro passo, felizmente, não faltam na AACD desde 1950.
O GRANDE DESAFIO DAS CAPTAÇÕES
A maioria dos atendimentos da AACD, 80% deles, é feita pelo SUS. Para a instituição, uma consulta de fisioterapia custa 98 reais — dos quais apenas 6 reais são pagos pelo sistema público. “É um enorme gap financeiro. Aí que entra a captação de doações de pessoas físicas e empresas”, conta Edson Saab de Brito, superintendente de marketing e relações institucionais. “No Brasil, não há a cultura da doação recorrente, por isso historicamente é preciso fazer campanhas.” O Teleton, que foi ao ar pela primeira vez em 1998, e desde então é transmitido anualmente pelo SBT, foi responsável por 30% dos 81 milhões arrecadados em 2019. Devido à crise gerada pela pandemia, que derrubou drasticamente o número de cirurgias, por exemplo, a necessidade de captação de recursos saltou de 80 milhões para 130 milhões de reais neste ano. “A instituição tem alto impacto social. É preciso despertar para a cultura de ser melhor muitos doando pouco do que poucos doando muito.”
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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698.
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